Devemos comemorar a queda da inflação?

A atual política de redução da taxa de inflação não significa maior poder de compra dos salários, além de não reduzir o desemprego

Devemos comemorar a queda da inflação?
Inflação mais baixa não tem a ver com suposta retomada de credibilidade após troca de governo em 2016

Pela primeira vez desde a introdução do regime de metas de inflação no Brasil a meta foi descumprida para baixo, ou seja, a taxa de inflação observada foi inferior ao piso estabelecido. A inflação medida pelo IPCA para o ano de 2017 atingiu uma taxa de 2,95%, enquanto a meta de inflação que orienta a execução da política monetária fora de 4,5%, com intervalo de tolerância de 1,5 ponto percentual para mais ou para menos.

Esse fato foi comemorado pelos meios de comunicação, que destacaram o resultado da inflação como conquista de uma política econômica bem-sucedida, ainda que tenha sido obtido em um contexto de elevado desemprego, em que ainda não há perspectiva evidente de retomada do crescimento econômico. A recepção positiva a esse resultado também se apoia na concepção difundida de que uma inflação mais baixa em si representa um benefício para os trabalhadores, por evitar a redução do poder de compra dos salários.

Conforme divulgado em nota oficial, o Banco Central atribuiu o descumprimento da meta ao comportamento dos preços de alimentos no domicílio. Esse subgrupo da cesta de consumo do IPCA apresentou uma deflação de 4,85%, decorrente de condições favoráveis da produção agrícola que são alheias ao escopo da política monetária.

Excluindo-se esse subgrupo, o índice de inflação atingiria uma taxa muito próxima da meta para o ano, refletindo, segundo a nota, o sucesso da política monetária. A convergência da taxa de inflação (excluindo-se, aqui, o subgrupo de alimentos no domicílio) para a meta seria explicada pela ancoragem das expectativas pelo Banco Central, processo iniciado em meados de 2016 diante da atuação “firme” da política monetária.

Cabe, então, refletir a partir de uma concepção crítica sobre as causas e as implicações da redução da taxa de inflação nos últimos anos.

Para explicar a trajetória da inflação segundo a nossa abordagem, é útil dividirmos os bens e serviços em três grupos, de acordo com a forma pela qual seus preços são formados. O primeiro grupo de produtos possuem preços administrados, isto é, cujo preço é fixado pelo governo. Em segundo, há produtos que são passíveis de serem comercializados internacionalmente e que têm seus preços formados no mercado internacional. Nesse caso, a inflação é sentida por nós tanto pela mudança dos seus preços em dólares quanto pela mudança da taxa câmbio.

Por fim, há um terceiro grupo de bens e serviços cujos preços são formados domesticamente pelo setor privado. Esses preços são formados acrescentando-se uma taxa de lucro aos custos de produção, sendo que os custos de produção são compostos pelo custo do trabalho – isto é, pelo salário – por insumos cujos preços são administrados e por insumos cujos preços são formados internacionalmente.

Assim, podemos destacar quatro fatores principais que influenciam a trajetória da inflação: a) a inflação dos preços monitorados, b) o crescimento dos preços internacionais em dólares dos bens comercializáveis, c) variações na taxa de câmbio e d) o crescimento dos salários nominais.

Vale destacar também que os preços administrados, os preços internacionais e a taxa de câmbio impactam a inflação doméstica de duas formas: diretamente, uma vez que esses produtos compõem a cesta de consumo, e indiretamente, uma vez que estes influenciam a formação de preços dos demais bens e serviços.

Com isso em mente, podemos explicar a trajetória da inflação brasileira nos últimos anos. O ano de 2015 foi marcado por dois fortes choques de custos: um grande aumento de preços monitorados, com destaque especial para o “tarifaço” dos preços dos combustíveis e da energia elétrica, e uma forte desvalorização do real em relação ao dólar, que provocou um aumento dos preços internacionais em moeda doméstica.

Esses aumentos de custos foram sendo repassados para os preços ao longo do ano de 2015, o que fez a inflação medida pelo IPCA ultrapassar os 10% naquele ano. Nos dois anos seguintes, não ocorreram mais choques de custos desta magnitude, o real se valorizou em relação ao dólar e com isso a inflação foi diminuindo gradualmente. Podemos ver no Gráfico 1 que após aumentar muito em 2015, a taxa de crescimento dos preços monitorados e dos preços internacionais diminuiu por dois anos seguidos, fazendo o IPCA também desacelerar ao longo desse período. Segundo nossa explicação, a suposta retomada da credibilidade e o ajuste das expectativas que ocorreram após a troca de governo em 2016 não desempenharam nenhum papel na queda da inflação.

Após essa explicação, resta discutirmos se a inflação baixa é de fato sempre benéfica aos trabalhadores e aos mais pobres, como diz o discurso dominante. Acredita-se que uma taxa de inflação menor implica na preservação do poder de compra dos salários nominais. No entanto, essa inflação menor pode estar acompanhada ou mesmo ser consequência de uma trajetória de baixo crescimento dos salários nominais, sem resultar necessariamente em elevação dos salários reais.  Portanto, para compreender os resultados distributivos da inflação é preciso olhar o que acontece com os preços, mas também o que ocorre com os salários nominais.

A variação dos salários nominais depende tanto de fatores estabelecidos pelo governo, como por exemplo, o valor do salário mínimo, quanto do poder de barganha dos trabalhadores, sendo que este é afetado pela taxa de desemprego, pelo medo do desemprego, e por características institucionais do mercado de trabalho, como a legislação trabalhista. Assim, quando o poder de barganha dos trabalhadores encontra-se elevado, eles conquistam aumentos do salário real. É verdade que em 2016 e 2017 o salário real aumentou mesmo em meio a um cenário desfavorável no mercado de trabalho. Contudo, é importante ressaltar que esses aumentos ocorreram após uma considerável redução do salário real em 2015. A recuperação nos últimos dois anos também decorre de certa demora da recessão em afetar a capacidade de negociação dos trabalhadores.

Ainda assim, já podemos perceber que de 2015 em diante o crescimento dos salários nominais foi, em média, menor do que nos anos anteriores. Além disso, a valorização cambial e a queda dos preços dos alimentos contribuíram para conter a alta do custo de vida neste período.

Contudo, não esperamos que essa tendência se mantenha nos próximos anos, uma vez que todas as políticas adotadas pelo governo vão no sentido de reduzir o poder de barganha dos trabalhadores. Para citar alguns exemplos, podemos mencionar a política fiscal contracionista, que impede uma recuperação sustentada da renda e do emprego, as flexibilizações na legislação trabalhista e a correção do salário mínimo em 2018 abaixo da inflação de 2017.

Esse conjunto de políticas pode provocar uma redução da taxa de inflação, porém isso provavelmente virá acompanhado de um baixo crescimento dos salários nominais, alto desemprego, aumento da informalidade e enfraquecimento do poder de barganha dos trabalhadores, de forma que nada garante que a baixa inflação provocará um aumento do poder de compra dos salários ou uma melhora das condições dos menos favorecidos.

*Guilherme Haluska é aluno de doutorado em economia na UFRJ e pesquisador do Grupo de Economia Política do Instituto de Economia; e Guilherme Morlin mestre em economia pela UFRJ e também pesquisador do Grupo de Economia Política do Instituto de Economia.

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