No momento em que esboço as linhas deste texto, já se contabilizam em torno de 12.000 civis palestinos mortos pelos bombardeios das forças militares do Estado de Israel. Um número sabidamente abaixo da cifra real, uma vez que supõe-se que haja muitos outros corpos humanos soterrados entre os escombros dos edifícios destruídos pelo poder de fogo israelense.
Não nos esqueçamos que mais da metade das construções de Gaza, incluindo seus hospitais, suas escolas e suas mesquitas, foram arrasadas pelos disparos de morteiros provenientes de um dos mais bem equipados exércitos do planeta.
Um pequeno detalhe a acrescentar a este horror: quase 5.000 das vítimas já confirmadas são crianças, ou melhor, eram crianças.
No entanto, ao comentar com tristeza esse quadro com uma de minhas conhecidas, ela prontamente me veio com uma resposta simples, mas devastadora. Segundo suas palavras, era a vontade de Deus que estava se impondo, posto que assim estava estipulado na Bíblia. Sim, como era esperado, ela é seguidora de uma dessas igrejas que se autodenominam cristãs.
Por ter nascido e ter sido criado dentro de uma compreensão de Jesus como o símbolo maior da justiça, da bondade e da solidariedade, não posso de modo algum aceitar que seu nome esteja sendo empregado para justificar, apoiar e alentar atrocidades monstruosas contra seres humanos indefesos. Em meu entender, esse é um comportamento que poderia fazer sentido para adeptos do diabo, nunca para os de um Deus bondoso e justo.
Lamentavelmente, há algum tempo, no Brasil, as forças mais retrógradas do capitalismo, aquelas agrupadas em torno do nazismo-bolsonarismo, têm tido em igrejas dito evangélicas-cristãs, assim como entre os católicos carismáticos, sua principal fonte de aderentes. Como é possível aceitar que tanta gente que, certamente, tem uma motivação sincera de busca da prática da bondade, caia nas garras de facínoras monstruosos que se locupletam com a morte de outros seres humanos e de sua exploração?
Por mais que não nos agrade a ideia, não podemos deixar de reconhecer que muitas igrejas se transformaram em típicos partidos políticos de extrema direita. E os dirigentes desses partidos políticos religiosos nazistas-bolsonaristas são todos aderentes da principal corrente ideológica que sustenta a extrema direita nos países capitalistas na atualidade: o sionismo cristão.
É esta ideologia política de extrema direita disfarçada de religiosa que dá sustentação ao que de mais deplorável existe nas forças políticas que representam os interesses dos setores pudentes em contraposição aos das maiorias trabalhadoras. O caráter racista e supremacista incorporado pelo dito sionismo cristão é intolerável e precisa ser combatido sem vacilação. Não se pode ter condescendência no debate com uma ideologia nefasta que cresce a partir da intimidação de seus oponentes.
O visível receio de muitos ativistas do campo popular de se indispor com os numerosos seguidores dessas igrejas falsamente cristãs, em lugar de viabilizar o estabelecimento de vínculos que possibilitem uma aproximação com os mesmos, produz resultados que vão exatamente no sentido oposto ao desejado. Ao abandonarmos a disputa ideológica junto a essa gente, os manipuladores da fé consolidam ainda mais seu domínio e passam a ser vistos como os detentores da visão correta. Portanto, longe de suavizar o problema, seu não enfrentamento apenas o agrava.
Não tenho o mínimo interesse em travar guerras religiosas em torno a dogmas ou crenças espirituais. O que não podemos aceitar passivamente é a transformação de sentimentos religiosos em instrumentos políticos da extrema direita, do nazismo-bolsonarismo. Como nós temos a certeza e a convicção de que defendemos as posições mais justas para a humanidade, por que razão deveríamos nos sentir debilitados na disputa por questões de ética e moral?
É evidente que os setores reacionários não se sentem confortáveis para tratar de temas diretamente relacionados com a vida concreta de nossa população. Seus representantes intelectuais procuram fugir dos temas referentes às condições de trabalho, de moradia, de assistência médica, do custo de vida, etc. Sua preferência é manter-se circunscritos à discussão sobre tópicos de cunho pseudomoralista. Com isso, eles esperam angariar apoio daqueles a quem eles exploram e espoliam.
Porém, embora não seja por nossa iniciativa que questões morais ou religiosas apareçam na linha de frente do debate, devemos ter clareza de que também em relação a eles nós podemos derrotar essa extrema direita nazista-bolsonarista que se apresenta como religiosa de viés cristão.
A primeira medida que nos corresponde é tornar evidente a irrefutável contradição existente entre o que apregoam os defensores do sionismo-cristão em seus sucedâneos nazista-bolsonaristas com o legado de vida do próprio Jesus. E, para garantir nossa vitória neste embate, nós dispomos de uma arma de imenso potencial: os ensinamentos deixados em vida pelo próprio Jesus.
É imperativo que tenhamos a mesma coragem que Jesus demonstrou ao refutar e rechaçar claramente vários usos malignos que se faziam dos textos bíblicos. Não podemos concordar com a maldade tão somente porque em algum dos escritos do Velho Testamento, ou mesmo do Novo, algo nesse sentido esteja colocado. Por isso, Jesus jamais se dispôs a defender a aplicação de passagens de textos bíblicos que feriam seu sentimento humanitário. Todos os que têm algum conhecimento sobre os relatos de vida de Jesus nos Evangelhos sabem de inúmeros casos nos quais ele se opôs resolutamente a vários entendimentos que eram tidos como determinações por estarem inseridos em escritos considerados sagrados.
Com Jesus nós aprendemos que Deus só pode existir e fazer sentido se for um ser justo e bom. E o único instrumento com o qual poderíamos atestar suas justeza e bondade é a capacidade racional com a qual estamos dotados. Portanto, seria impossível que um ser justo e bondoso nos orientasse a praticar atos em sentido diametralmente contrário a isso. Por exemplo, poderia uma mãe determinar a priori sua preferência por um de seus filhos e dar a ele um tratamento mais favorável em detrimento dos outros? Logicamente, todos devem concordar que uma mãe que assim agisse estaria cometendo uma violação flagrante a tudo o que tenha a ver com justiça e bondade. Ela estaria claramente indo contra os preceitos de Deus.
Analogamente, vamos analisar o caso de que um Deus criador de toda a humanidade decida dar a um dos povos por ele criado a qualidade de “povo escolhido”, de seu preferido. Independentemente do que esteja escrito seja lá onde for, eu jamais consideraria um deus assim como um ser justo e digno de ser seguido. De acordo com a racionalidade com a qual estamos dotados, temos totais condições de concluir que um Deus justo e bondoso jamais poderia ser um racista tão empedernido. Se estivéssemos nos referindo ao diabo, tudo bem, daria para aceitar, mas em relação a Deus, jamais.
Muito provavelmente, foi por também fazer uso de sua racionalidade que Jesus se recusou a aceitar os termos bíblicos que alçavam os judeus como o povo escolhido pelo Criador. Nada disso! Conforme muito bem expressou Jesus, o povo digno de fazer parte do reino de Deus seria constituído por todos os que dessem provas de aceitar e praticar os ensinamentos de justiça e bondade que ele nos estava ministrando. Todos, absolutamente todos, poderiam alcançar esse objetivo, independentemente de sua origem racial, étnica, nacional, ou o que fosse.
Em vista disto, considero um verdadeiro crime contra as aspirações de Jesus que usemos certos trechos do Velho Testamento para justificar a desapropriação do povo palestino e sua expulsão de suas terras com a desculpa de estar agindo em conformidade com os desígnios de Deus. Nada mais falso e perverso do que se amparar em tal argumentação. Nada mais anti-Jesus do que isso!
Se com as aberrações já mencionadas não fosse suficiente, há também os que pretendem justificar a terrível matança de crianças palestinas por parte das forças militares do Estado de Israel como uma analogia com o extermínio ordenado pelo deus do Velho Testamento contra os amalequitas, no qual não deveriam ser poupadas nem mesmo as crianças. Concordar e aprovar a posta em prática de tal filosofia em relação com a atualidade do povo palestino é uma monstruosidade equiparável à cometida pelos nazistas no século passado. Só um serviçal do diabo poderia entender como aceitável tal comportamento. Nunca pudemos saber de nada vindo de Jesus que desse aval a tanta sordidez.
Chega a ser indecente que pessoas vinculadas a igrejas formalmente cristãs constituam a maioria dos apoiadores de um genocídio cruel, impiedoso e devastador como o que está sendo executado pelo sionismo assassino do Estado de Israel no preciso momento em que tento concluir este texto. Como associar a figura de Jesus com o massacre de um povo desarmado, que já vem sendo vítima de violento processo de perseguição há mais de 75 anos? Como concordar em nome de Jesus com a demolição das moradias de milhões de seres humanos que já viviam em condições de extrema precariedade? Como normalizar por meio de Jesus a matança em escala industrial daqueles que sempre foram sua prioridade em vida, ou seja, as crianças?
Em resumo, queria ressaltar uma vez mais que todo sentimento religioso pode e deve ser tolerado. Mas, a validade desta proposição se justifica quando o objetivo maior das religiões seja contribuir para a construção de um mundo melhor para toda a humanidade. As proposições que recorram à terminologia religiosa com o propósito de semear o ódio e provocar a morte, essas devem sempre ser taxativamente rejeitadas.
Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.