Por Roberto Antonio Liebgott, para Desacato. info.
O que esperar de um desgoverno que caminha sobre quatro patas – tipo quatro pés de bois – uma da mentira, outra da ignorância, a terceira da maldade e a quarta da intolerância?
É nesse ambiente que a administração pública, a proteção à vida e à dignidade humana, são relativizadas sempre que (quando) se exige uma ação determinada e concreta do governo, para melhor cumprir os direitos e deveres nelas contidos, em vista da promoção do bem comum.
Na administração pública o investimento é no olheiro, ou seja, enxertam-se no seu estafe público os estafetas, geralmente milicos ou reverendos – cabos, sargentos, tenentes, generais e pastores, irmãos – que controlam a execução das ações, dos serviços e do servidor público – seu lazer, sua privacidade, suas redes sociais, seus amigos – pois deles querem saber com quem andam, o que dizem e o que fazem.
Quanto a proteção à vida, o desgoverno busca estabelecer o discurso da relativização, já que todos um dia morrerão. Ou seja, se a pessoa morrerá, não tem porque se preocupar com ela e, nesse sentido, o melhor é deixá-la perecer. E, nada mais adequado e importante, neste ambiente da Covid-19, que o vírus mate indistintamente (de acordo com dados da imprensa, morreram, até a primeira quinzena de março, quase 300 mil pessoas por causa da pandemia e da omissão do desgoverno federal) obviamente, desde que não sejam o presidente da República e seus estafetas.
No que tange a dignidade humana, parece que ela se constitui numa figura de linguagem, porque, na concepção do atual desgoverno, nem todos têm dignidade, portanto não há que se falar em respeito a ela, especialmente aos pobres das periferias, dos quilombolas, dos povos indígenas, dos sem-terra e sem teto. Nem mesmo um ex-aliado, o Major Olímpio, vítima da covid-19, mereceu alguma atenção do inquilino do Planalto.
Vive-se no Brasil o pior dos tempos. E não há, mais adiante, depois do caos, a sinalização de que venha a ocorrer uma coalizão de forças políticas, sociais e populares pela reconstrução. A sensação que se tem é de um dramático aprofundamento das desigualdades – educacionais, culturais, econômicas – e de repressão política em nosso país.
A contenção aos descontentes, de todos aqueles que, por ação ou omissão do Estado, tiverem suas vidas e suas dignidades descartadas, será a tônica do futuro. As pessoas – os pobres e excluídos, os desumanizados – tendem a ser repelidas pelas forças opressoras dos que precisam se proteger destes desumanizados – autorizando-se o “humano, cheio de dignidade”, a armar-se, dentro de casa e pelas ruas, com 60 revólveres e espingardas; contratando-se milícias para proteger os ricos; e/ou pela liberalização das forças de segurança do Estado, polícias e Exército, para agirem e matarem, porque haverá o excludente de ilicitude da conduta criminosa.
Ao que parece, a pandemia da Covid-19 não veio para redimir os ricos e criar um ambiente de paz, harmonia e solidariedade. Nota-se, pelas relações estabelecidas, que ela vem sendo utilizada para dividir e acentuar as desigualdades e criar ambientes de profunda exclusão e morte. O capitalismo, neste contexto, será reajustado para gerir e proteger as riquezas entre os de cima da pirâmide social e lançar seus dejetos sobre os corpos cansados e doentes dos de baixo.
A saída é a rebelião. Os de baixo, mesmo sob as patas dos de cima, precisam se levantar, organizar e combater as injustiças. Só assim haverá, no futuro, um horizonte humanizado onde se conseguirá semear a paz. Mas o caminho precisa ser aberto e pavimentado. Estamos sob os escombros de um desgoverno associado ao sistema capitalista que produz a cada dia, como essência de sua natureza, o desprezo à vida.
Porto Alegre, 21 de março de 2021.
_
Roberto Antônio Liebgott é Missionário do Conselho Indigenista Missionário/CIMI. Formado em Filosofia e Direito.