‘Despreparo do homem heterossexual branco para lidar com fracasso o leva à violência’

Segundo pesquisador, homens brancos de classe média compõem uma parcela desproporcional dos assassinos em massa
Segundo pesquisador, homens brancos de classe média compõem uma parcela desproporcional dos assassinos em massa

Por André Cabette Fábio.

O noticiário é periodicamente pontuado por relatos de chacinas – homicídio em que há ao menos três vítimas. A violência tende a chocar particularmente quando não há nenhum outro crime associado, como assaltos ou sequestros.

Em um ensaio publicado em 2014 na revista acadêmica “Homens e Masculinidades”, o professor Eric Madfis, do departamento de Trabalho Social e Justiça Criminal da Universidade de Tacoma, busca traçar o perfil dos autores dessa modalidade de assassinato e compreender o que os motiva nos Estados Unidos, onde tiroteios em escolas, centros comerciais e residências ocorrem de forma periódica.

No trabalho, intitulado “Triplo senso de merecimento e raiva homicida: Uma exploração das identidades interseccionais de assassinos em massa americanos”, Madfis destaca que há entre assassinos em massa um número desproporcionalmente alto de homens com um mesmo perfil: brancos, heterossexuais e de classe média, em geral adolescentes ou de meia idade.

Ele exclui desse grupo homens brancos “hispânicos”, ou seja, que têm o espanhol ou o português como língua materna, costumam vir da América Latina e vivem nos Estados Unidos ou no Canadá. Também ficam de fora homicídios em massa ligados a outros crimes, como roubos ou sequestros.

Entre os exemplos estão o massacre ocorrido em 1999 no Colégio Columbine, na cidade de Jefferson County, quando os alunos Eric Harris e Dylan Klebold mataram outros 12 estudantes antes de se suicidarem, ou o de Richard Scott Baumhammers, um advogado desempregado especializado em imigração e direito internacional que matou cinco pessoas de cinco minorias étnicas diferentes na cidade de Pittsburgh em 2000.

Em sua análise, ele afirma que homens americanos que se encaixam no perfil heterossexual branco de classe média são educados de forma a crer que têm direito a estabilidade financeira e prestígio, o que os torna despreparados para lidar com desafios e frustrações nos casos em que não conseguem atingir essas metas.

“Seu senso de privilégio branco masculino não permite que reconheçam seu próprio papel em quaisquer erros, muito menos suas limitações pessoais. Consequentemente, grandes dificuldades da vida ou perdas agudas, como ser despedido ou se divorciar, se mostram particularmente insuportáveis para homens brancos que, no caso da maioria dos assassinos em massa, já viveram vidas repletas de vergonhas e decepções”, escreve.

Perder o emprego, um relacionamento, se descobrir vítima de uma doença ou perder dinheiro no mercado de ações são exemplos de acontecimentos que podem desencadear o comportamento homicida.

“A culpa nunca era minha ou do meu pai… É a mensagem constante que eu recebi enquanto cresci: sempre mantenha o controle, sempre vença. Então, quando algumas coisas deram errado, eu não consegui lidar com elas. Porque eu nunca tive que suportar nenhum desafio antes”

Relato de homem presente no livro “Branco como eu: Reflexões sobre raça por um filho privilegiado”, publicado em 2005 por Tim Wise e citado no artigo de Madfis

O Nexo entrevistou o pesquisador por e-mail para discutir alguns pontos centrais de seu ensaio.

Qual o perfil dos homicidas em massa segundo a sua pesquisa?

ERIC MADFIS Nos Estados Unidos, homens compõem de 94% a 95% dos homicidas em massa. Isso é extremamente alto, mesmo quando comparado com homicídios com apenas uma vítima, que também são realizados predominantemente por homens (90%).

Em termos de raça, homens não hispânicos nos Estados Unidos cometem assassinatos em massa em taxas que tendem a ser ou proporcionais à sua parcela da população ou um pouco maiores do que essa taxa.

Isso chama atenção porque homicídio geralmente é cometido de uma forma menos comum por pessoas brancas, que tendem a matar em uma taxa bem menor do que a de sua parcela da população [nos Estados Unidos].

Quais fatores tornam brancos estadunidenses ‘se sentirem emasculados’, como você coloca em seu trabalho?

ERIC MADFIS Isso tem muito a ver com o senso de merecimento [“entitlement”] e altas expectativas. Tem a ver com a forma como pessoas brancas geralmente têm expectativas maiores para suas vidas do que os membros de grupos mais marginalizados e como pessoas brancas são menos preparadas para lidar com a perda ou fracasso em comparação com outros grupos menos privilegiados, que são repetidamente forçados a lidar com várias perdas e experiências negativas e continuar a tocar suas vidas.

Por isso, quando homens brancos não têm o sucesso que esperavam, essas perdas são vistas como ainda mais vergonhosas.

Por que você acredita que a violência é usada como um antídoto à emasculação?

ERIC MADFIS A sociedade frequentemente associa masculinidade à violência. Por isso, para alguns homens que de outra forma se sentem emasculados, sem poder ou em falta de alguma forma, ser violento serve como forma de se sentir poderoso e masculino.

Essa é uma maneira de performar o próprio gênero, de reafirmar a própria masculinidade, para homens que falharam em fazê-lo de outras formas (como ser um bom provedor, um bom pai, ter uma carreira de sucesso, ter sucesso com mulheres, etc.).

De que formas a frustração econômica tem impacto em tiroteios em massa?

ERIC MADFIS Em geral, um indivíduo realiza um tiroteio em massa após uma série de experiências frustrantes. Essas experiências de vida podem ser divórcio, levar um pé ou ser rejeitado de alguma outra forma, mas isso também tem a ver frequentemente com uma perda econômica, como perder o emprego ou uma promoção.

Além disso, para muitos homens, suas carreiras são uma parte importante do que os define como homens ou pessoas, e por isso perder o emprego ou não ser tão financeiramente bem-sucedido quanto se esperava pode ser uma experiência devastadora.

Você acha que o feminismo tem a ver com esse fenômeno?

ERIC MADFIS Eu certamente não acredito que o feminismo aumentou a violência masculina. Os estudos que trataram desse tema em geral descobriram que, nos últimos 50 anos, a taxa de violência entre homens e mulheres permaneceu bastante estável (com as taxas masculinas sempre muito mais altas do que as femininas).

Não há nem mesmo evidência de que movimentos feministas desde a década de 60 realmente alteraram as taxas de crimes entre homens e mulheres.

Seu artigo foca nos EUA. Você tem recebido retornos de pessoas de outros países que veem similaridades com suas realidades?

ERIC MADFIS Falei para públicos em vários outros países sobre esse artigo. Eu diria que vi a maior parte de respostas positivas por parte de pesquisadores e jornalistas na Alemanha, no Canadá e na Finlândia – onde assassinatos em massa ocorreram e se encaixam em padrões bastante similares aos padrões que eu descrevi em meu trabalho.

Eu ainda preciso falar com muitas pessoas na América do Sul sobre isso, por isso uma conversa seria realmente bem-vinda.

Você acha que pode haver um aumento nesse tipo de assassinato?

ERIC MADFIS Isso depende de uma série de fatores, mas é certamente possível que sim, se nenhuma ação significativa for tomada por legisladores para lidar com as raízes do problema ou limitar a disponibilidade de armas de fogo.

Em um caso no Ano Novo no Brasil, um homem matou sua ex-esposta, o filho e mais dez pessoas antes de cometer suicídio. A Justiça o havia afastado de seu filho após uma alegação, feita pela mãe, de que ele tinha abusado sexualmente da criança. Em áudios e cartas ele se referiu a sua ex-esposa como uma ‘vadia’, criticou uma lei relativamente recente que combate a violência contra a mulher e afirmou que queria matar o maior número de ‘vadias’ da família possível. O que você pensa sobre esse caso?

Acho que o caso de Sidnei Ramos de Araújo está em linha com muitos homicídios em massa.

Familicídio (o assassinato em mata de muitos membros da família) é, na verdade, a forma mais comum de homicídio em massa. Parece que o assassino estava passando por muitas dificuldades na vida (especialmente em sua vida familiar) e esses comentários que você menciona realmente me lembram dos escritos e áudios gravados por outros assassinos em massa que expressaram visões misóginas de mulheres, como Elliot Rodger (que realizou os assassinatos de Isla Vista em 2014) ou Marc Lépine (que cometeu o massacre de 1989 na École Polytechnique de Montreal). Ambos tinham um ódio e ressentimento contra mulheres com raízes muito profundas.

Em um trecho de seu trabalho você afirma que a queda no número de empregos bem remunerados no setor industrial deixou milhões de homens da classe média baixa estadunidense sem emprego, o que contribui para sua frustração. Isso se parece muito com um dos diagnósticos sobre a ascensão de Donald Trump. Você vê um paralelo?

Sim, com certeza eu vejo uma conexão. Muito dessa eleição tinha a ver com questões sobre raça e classe – e é por esse motivo que tantos apoiadores de Trump são homens brancos da classe trabalhadora.

Trump apelava para suas preocupações legítimas a respeito da diminuição do número de empregos industriais nos Estados Unidos, e ele exacerbou seus medos a respeito de um mundo que está mudando, onde mulheres e minorias têm mais poder.

Sua campanha presidencial era economicamente populista (em sua retórica, apesar do fato de que suas políticas favorecerão apenas os mais ricos), além de ser racista, sexista e xenófoba.

E por isso era extremamente atraente para um certo segmento popular estadunidense. Eu certamente diria que muitas das mesmas questões que causam homicídios em massa nos Estados Unidos contribuíram para a ascensão de Donald Trump.

Fonte: Nexo.

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