Por Cristina Pereira Vieceli e Érica Imbirussú de Azevedo, para Desacato.info.
A desigualdade pode ser percebida por fontes múltiplas, não apenas a partir do enfoque da renda, também pode ser analisada sob o aspecto das oportunidades, barreiras ao acesso e às impossibilidades de desenvolvimento das capacidades. Um país com maior igualdade apresenta menos possibilidades de estimular o crescimento/desenvolvimento econômico.
A respeito dos indicadores sobre desigualdade de renda no Brasil, o IBGE publicou neste mês a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2018.[3] Um dos resultados levantados aponta para a elevação profunda da desigualdade de renda no país – o rendimento da população 1% mais rica foi quase 34 vezes maior do que da metade mais pobre naquele ano. Esse quadro decorreu da elevação da renda da população endinheirada em 8,4%, enquanto para os 30% mais pobres, houve uma diminuição da renda. Com isso, o país retrocedeu aos níveis de concentração de 2012, medidos pelo Índice de Gini.
Nesta linha, outra pesquisa publicada pelo mesmo instituto, a Pesquisa de Orçamento Familiar [4]– POF, indica que as famílias com rendimentos até dois salários mínimos comprometem em torno de 61,2% de seus orçamentos somente com alimentação e habitação, ou seja, sobra 39,8%, da renda, ou menos de R$700,00, para outras despesas, com saúde, educação, lazer, vestuário, transporte, etc. No outro lado, para as famílias com rendimentos maiores, acima de 23,8 mil, as despesas com esses grupos comprometem 30,2% do orçamento, restando pouco menos de 17 mil para outras despesas, inclusive para aumentar o patrimônio.
A concentração de renda recente resulta de uma estratégia de governo alicerçada em fortes ajustes fiscais, reforçada pelo teto dos gastos (Emenda Constitucional no 95 de 2016), que impactou na oferta de serviços públicos. Associada ao desmonte dos direitos trabalhistas e das instituições de proteção aos trabalhadores, com a ampla reforma trabalhista aprovada em 2017 e a atual Reforma da Previdência. Todas essas medidas foram tomadas em meio à uma forte crise política e deslegitimação institucional. Ou seja, em um ambiente pouco democrático, foram tomadas decisões que impactam fortemente na realidade da maior parte da população.
Esse cenário ocorre em uma conjuntura de alto desemprego, aumento do subemprego e das formas precárias de trabalho, como o intermitente. Os resultados da Reforma Trabalhista, ao contrário da argumentação propagada de que iria destravar o crescimento econômico e gerar empregos, acarretou na piora dos indicadores. O desemprego permanece alto (11,8%), e a informalidade atinge níveis recordes, abrangendo 41,4% da população ocupada, maior proporção desde 2016. A classe trabalhadora brasileira soma um exército de pessoas sem carteira assinada, que totalizam 11,8 milhões de pessoas, e por conta própria, somando 24,4 milhões[5]. Este cenário é desalentador, e compromete o futuro das gerações de jovens ingressantes no mercado de trabalho.
Em 2018, cerca de 11 milhões de jovens entre 15 a 29 anos não estavam estudando nem trabalhando, o que representa um quarto da população do país nessa faixa etária. O motivo apontado é principalmente a sobrecarga de atividades domésticas não remuneradas, que atinge principalmente as mulheres. Com a diminuição dos recursos voltados para as políticas públicas esse cenário tende a se agravar[6].
Portanto, a desigualdade não apresenta uma relação unidirecional, mas constitui um elemento decisivo no processo de mediação entre os agentes. Tanto a política interfere na desigualdade quanto a desigualdade interfere na política. Isso ocorre porque as políticas redistributivas geram conflitos de interesse, em que os agentes que apresentam características sociais, econômicas e culturais mais favoráveis tendem a criar barreiras a sua implantação. Um exemplo explícito dessa relação é a reação da classe média à lei das empregadas domésticas de 2015, que regulamentou a jornada de trabalho e o FGTS para as trabalhadoras.
Além dos impactos sociais, o aumento da desigualdade reflete na diminuição da capacidade de crescimento do país. Em relatório publicado em 2018[7], a CEPAL destaca que “Um Estado eficaz na produção de bens públicos é acompanhado por uma sociedade civil altamente organizada e diversa e um mercado em que a cooperação é complementada pela inovação e concorrência”. Portanto, a redução de políticas públicas acaba por reduzir a competitividades no país, já que os entraves para o crescimento são maiores, dadas a redução da promoção de renda mínima, educação básica de qualidade, saúde, incentivos à inovação, reduzindo o potencial competitivo e reforçando a exclusão social.
Segundo o mesmo relatório, a cultura do privilégio, pode ser entendida a partir de três traços: i. a naturalização da diferença como desigualdade; ii. uma mediação imparcial entre os agentes que estabelecem a hierarquia; iii. a difusão da hierarquia estabelecida através de atores, instituições, regras e práticas que possibilitam a perpetuação da cultura do privilégio. De modo que a desigualdade é valorizada pela camada privilegiada e a camada menos favorecida é imbuída de subjetividades para aceitarem tais condições e colocam questões como meritocracia ou esforço individual como elementos determinantes do lugar social que se ocupa.
A experiência democrática nos países latino-americanos é recente e frágil. A exemplo disso, segundo o relatório da CEPAL, entre os anos de 1995 a 2016, somente 60% da população considerava que a democracia era preferível a qualquer outra forma de governo, 20% tinham preferência por governos autoritários, e 20% eram indiferentes à governos democráticos ou autoritários. O cenário de crise econômica, somada ao crescimento da desigualdade no país, e a fragilidade de nossas instituições tornam terra fértil para o crescimento de políticas autoritárias. Cabe destacar que uma das conquistas da democracia é justamente a implementação de políticas distributivistas, o que explica a aversão de alguns segmentos sociais a ela.
O problema da desigualdade social não é novidade no país, e está calcada em questões estruturais, como a regressividade tributária, ou seja, quanto menor a renda, maior o comprometimento com o pagamento de impostos, haja vista que os tributos no Brasil incidem principalmente sobre o consumo[8]. Essa realidade dava sinais de avanços nos anos 2000, a partir de políticas distributivas, resultantes principalmente da política de valorização do Salário Mínimo Nacional, e do Programa Bolsa Família. O que enxergamos a partir de 2015 é um desmonte tanto das medidas de combate à fome, à pobreza e à desigualdade social. Há também tentativas de limitar e redesenhar a Constituição Cidadã, de 1988, que assegurava o mínimo de direitos à população que está na base da pirâmide social, como é o caso das supracitadas reforma da previdência, o congelamento dos gastos públicos, a reforma trabalhista.
[1] <https://repositorio.cepal.org/handle/11362/43569
[1]Para uma análise sobre a questão tributária do país, o Movimento Economia Pró-Gente elaborou uma série de PodCasts publicada no portal Colméia – Sul21, além das principais plataformas de podcasts, e podem ser acessados pelos seguintes links: https://www.youtube.com/channel/UCfCSqZ9oDrXDwbAjDIBnhcA; https://colmeia.sul21.com.br/qt-series/outra-economia/
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Erica Imbirussú de Azevedo é doutoranda em Economia na UFRGS, pesquisadora na linha de desenvolvimento econômico e faz parte do Movimento Economia Pró-Gente.
Cristina Pereira Vieceli é doutoranda em Economia na UFRGS, técnica do Dieese e faz parte do Movimento Economia Pró-Gente.
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