Desenvolvimento e soberania: conceitos centrais de um programa popular

Por Rita Coitinho, para Desacato.info. 

Em nosso artigo da semana passada resgatamos a ideia de Mao sobre a transmutação da luta de classes em luta nacional. O filósofo Domenico Losurdo, que nos deixou este ano, deteve-se nesta questão na obra “A luta de classes – uma história político-filosófica”, onde mostrou que a clássica dicotomia Capital e Trabalho assume, ao longo da história moderna, facetas diversas, onde questões como gênero, raça e nacionalismo imbricam-se com a luta de classes.

De fato, o olhar de Marx e Engels, a partir do centro de expansão do capitalismo no século XIX, compreendia a questão do Trabalho como iminentemente internacional, uma vez que daqueles países partia a expansão do capital. Se os trabalhadores ingleses, franceses, estadunidenses e alemães desejavam assumir o controle político, deveriam colocar a questão de classe acima das questões nacionais. Do contrário, serviriam como carne barata para as guerras interimperialistas travadas entre esses países.

Nas periferias, porém, onde desenvolveu-se o pensamento de Lênin, de Mao e, mesmo de Antonio Gramsci, a questão coloca-se de outra maneira. As classes dominantes periféricas fundam seu domínio sobre as classes subalternas de seus países em aliança estreita com o imperialismo. Os interesses nacionais são submetidos aos interesses externos, cuja manifestação mais concreta é o capital financeiro e, no mundo que emerge do pós segunda guerra, as instituições econômicas internacionais, como o FMI e o Banco Mundial, que impõem seus receituários em troca de financiamento e, por meio de programas de treinamento em estreita cooperação com os Estados, contribuem para formar um pensamento médio, neoliberal, entre altos funcionários governamentais.

Diante deste fato, as soluções de soberania nacional são, por si mesmas, desafios ao domínio pleno do imperialismo e é por essa razão que a fórmula de Mao serve tão bem para interpretar o problema central da crise política brasileira: o absoluto desinteresse de setores expressivos da burguesia interna brasileira por soluções de garantia da soberania nacional. Esse desinteresse expressa-se na política de lesa-pátria do governo Temer e da coalização golpista, traduzida na destruição da indústria nacional a partir da Operação Lava-Jato, no desmonte da política nacional para o Petróleo e de todas as iniciativas de reestruturação do parque produtivo nacional, como  bem ilustra a rápida decadência da pujante indústria naval a partir do golpe de Estado de 2016.

Não é exagero, portanto, afirmar que o golpe de Estado de 2016 converge com os interesses do imperialismo, marcadamente do estadunidense, nem extrapolar essa afirmação para os programas das candidaturas dos partidos de direita. Não se trata de uma complexa teoria conspiratória envolvendo espiões e reuniões secretas – embora a espionagem exista, como revelou-se durante o governo Dilma qando vazaram as informações sobre a ação da NSA no Brasil -, mas de uma clara aproximação de interesses entre os setores políticos antinacionais, as agências internacionais e o Departamento de Estado do EUA. A recente visita de Jim Mattis, secretário de Defesa dos EUA, com sua retórica de Doutrina Monroe, é a expressão perfeita dessa convergência. O giro de Mattis pela América do Sul tinha como principal objetivo reabrir canais de interlocução que foram fechados pelos governos do ciclo progressista, especialmente em matéria de cessão de territórios para instalação de bases militares – caso da Base de Alcântara, no Maranhão – e pressionar os recém instalados governos pró-EUA a reduzir o escopo da cooperação com a China. Até poucos anos atrás, a maioria dos países sul-americanos voltava-se para a ampliação dos mecanismos de cooperação regional, de maneira que os canais de interlocução com Washington, que nunca foram encerrados, mantiveram-se basicamente no plano do comércio – uma vez que os EUA são parceiros comerciais importantes da América do Sul. A agenda política regional deslocara-se, nas duas primeiras décadas do século XXI, da OEA para instâncias como a UNASUL e a CELAC, reduzindo grandemente a margem de manobra estadunidense. O ciclo de golpes de Estado e as derrotas eleitorais da esquerda recolocaram a OEA, onde é histórica a preponderância dos EUA, no centro do tabuleiro regional.

O fato novo, porém, é que a hegemonia econômica dos EUA tem agora um adversário de peso. Os  investimentos chineses em infraestrutura e a crescente importância comercial do gigante asiático na América Latina dificultam a retomada da liderança estadunidense, ainda que no plano político/cultural ela tenha se reestabelecido com certa velocidade com o chamado “fim do ciclo progressista”. O empresariado local, ainda que tenha o inglês e American way of life no comando de seus corações e mentes, não pode se dar ao luxo de prescindir da crescente presença chinesa na região, pois dela depende, em larga medida, para seguir vendendo produtos primários ou importando a preços mínimos mercadorias para revender com lucros enormes.

A diferença entre as duas potências, no entanto, é marcante. A expansão chinesa ocorre de forma pacífica, aproveitando-se dos gargalos dos países subdesenvolvidos, de suas carências e de duas potencialidades comerciais.  De outro lado, a hegemonia dos EUA é baseada no domínio econômico, político e cultural, valendo-se, sempre que necessário, da força bruta para a garantia dos seus interesses. Isso revela-se na atual retomada da agenda militarista, onde destaca-se a adesão da Colômbia à OTAN, a pressão para a cessão de territórios para novas bases militares e o assédio crescente às forças armadas latinoamericanas para que comprem armamentos e reestabeleçam canais de cooperação com os EUA. Essa ofensiva militarista, somada à retórica agressiva em relação aos governos “rebeldes” são a maneira pela qual o imperialismo pretende retomar sua influência regional, visto que no plano econômico já não têm muito o que oferecer.

De todo modo, desde o golpe de 2016, o Brasil tem-se colocado como ator irrelevante no cenário internacional, sem condições de negociar os termos de sua relação econômica, seja com os EUA, seja como a China. Por razões como esta, a questão nacional latinoamericana é, e ainda será por muito tempo, a questão central para a autonomia dos povos. Qualquer projeto que vise um desenvolvimento autônomo precisa, antes de tudo, resguardar a soberania nacional, garantindo o controle sobre os investimentos externos, sobre o território e sobre os recursos naturais. Articulada à essa agenda soberanista, deve-se retomar a cooperação regional, única maneira de obter ganhos de escala que tornem as economias da região fortes o suficiente para fazer valer seus interesses no plano internacional. Esta é a agenda da candidatura Lula/Haddad, que expressa os interesses das classes subalternas que, ao contrário da burguesia interna, não têm relações de dependência com as potências internacionais.

Rita CoitinhoRita Coitinho é socióloga, Dra. em Geografia e membro do Conselho Consultivo do Cebrapaz.

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