Por Patricia Fachin. Para jurista, crise política brasileira tem raízes no fato de ‘uma pessoa oriunda da classe proletária’ chegar ao poder e de o país estar ‘à beira de um colapso’ econômico, somado à preferência do governo aos banqueiros em detrimento da indústria.
“Desde 1985 [o impeachment] foi a forma preferida para a derrubada de presidentes latino-americanos. Entre 1985 e 2005, houve na América Latina 13 processos de impeachment de chefes de Estado”, afirma o jurista Fábio Konder Comparato.
Para o advogado, são duas as razões principais para a crise política vivida pelo Brasil. A primeira delas diz respeito ao fato de que “uma pessoa oriunda da classe proletária” conseguir “se introduzir no quadro político tradicional. (…) O povo brasileiro, desde o Descobrimento, jamais teve poder político efetivo, tem sido mero figurante no teatro eleitoral, pois as campanhas eleitorais são comandadas pelo poder do dinheiro e pela propaganda”.
O segundo motivo tem a ver, em sua opinião, com questões econômicas e com o fato de que “nosso país encontra-se, presentemente, à beira de um colapso. Tal situação é reflexo entre nós de uma mudança histórica da maior importância: a sucessão do capitalismo industrial pelo capitalismo financeiro. Todos sabem que, ao contrário das indústrias, os bancos não criam riqueza alguma (…) e o governo Dilma Rousseff decidiu aliar-se preferentemente aos banqueiros, deixando de dar início ao necessário processo de reindustrialização do país”.
Confira a íntegra da entrevista concedida por Comparato, titular da Medalha Rui Barbosa, conferida pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, ao Instituto Humanitas de Ensino:
Analisando juridicamente, houve ou não crime de responsabilidade fiscal por parte da presidente Dilma? Há ou não, portanto, base legal para o impeachment a partir dessa fundamentação?
A disposição constitucional do art. 85, inciso VI da Constituição Federal, declarando que constitui crime de responsabilidade o ato do Presidente da República que atente contra a lei orçamentária, deve ser completada com o disposto em lei. Eis porque a denúncia aprovada pela Câmara dos Deputados em 17 de abril último qualifica as chamadas “pedaladas fiscais” como crimes definidos no art. 10, alíneas 7 e 8 da Lei nº 1.079 de 1950, e nos artigos 29, inciso III; 32, § 1º, inciso I; e 36 da Lei Complementar nº 101 de 2000.
Acontece que todas as definições penais de ambas essas leis dizem respeito, estritamente, a “operações de crédito” feitas pela União Federal em benefício de terceiros, e as “pedaladas fiscais” nada têm a ver com isso. São retardamentos no repasse de recursos a bancos públicos, privados e autarquias, retardamentos esses depois inscritos na prestação de contas do governo federal como empréstimos tomados àquelas instituições. Ou seja, é exatamente o contrário do disposto nas leis citadas: em vez de a União Federal conceder crédito, ela retarda o pagamento de seus débitos.
Em conclusão, o Presidente da Câmara dos Deputados e seus auxiliares forjaram grosseiramente a existência de um crime de responsabilidade da Presidente Dilma Rousseff.
Como o senhor está acompanhando a discussão sobre o impeachment? Como avançarmos no sentido de compreender e elucidar as razões de ter ou não impeachment, ultrapassando os debates apaixonados pró e contra o governo? Nesse sentido, que questões deveriam ser esclarecidas?
O que importa é saber os fatos que desencadearam a atual crise política. Eles são de duas naturezas.
Em primeiro lugar, o fato de que, pela primeira vez na história do nosso país, uma pessoa oriunda da classe proletária consegue se introduzir no quadro político tradicional, formado exclusivamente pelos membros da classe dominante, e assume a chefia do Estado em dois mandatos eleitorais consecutivos, ao final dos quais, obtém 80% de apoio popular. Trata-se de algo insuportável para a classe dominante, pois anuncia o possível desafio das camadas mais carentes de nossa população, no que se refere ao exercício da soberania política.
Como não se pode ignorar, o povo brasileiro, desde o Descobrimento, jamais teve poder político efetivo. Dir-se-á que agora o povo vota em eleições, mas isso não muda, minimamente, o poder soberano da classe dominante. O povo brasileiro até agora, com raríssimas exceções, tem sido mero figurante no teatro eleitoral, pois as campanhas eleitorais, também com raríssimas exceções, são comandadas pelo poder do dinheiro e pela propaganda deformante dos meios de comunicação de massa, controlados por um oligopólio empresarial.
Sem dúvida, a presidente Dilma Rousseff, eleita após o término dos dois mandatos consecutivos de Lula, revelou-se uma Chefe de Estado inábil, apresentando em 2016 um índice de reprovação popular de cerca de 80%; ou seja, exatamente o contrário do seu antecessor. Tal fato estimulou os representantes políticos da classe dominante a forjar o impeachment, como acima demonstrado. Aliás, desde 1985 essa foi a forma preferida para a derrubada de presidentes latino-americanos, depois que, sem dúvida por pressão dos Estados Unidos, os países latino-americanos abandonaram a reiterada prática do golpe militar.
Entre 1985 e 2005, houve na América Latina 13 processos de impeachment de chefes de Estado. E em 2012, o Presidente Fernando Lugo, uma espécie de Lula paraguaio, uma vez que não pertencia à classe dominante, foi destituído pela oligarquia em 48 horas.
Nesse contexto, é mais do que provável que os plutocratas, tal como fizeram com Dilma, forjem um delito cometido por Lula, a fim de incapacitá-lo a concorrer às eleições presidenciais de 2018. A Polícia Federal, o Ministério Público e, talvez, o juiz Moro provavelmente vão se dispor a atuar com esse objetivo.
Causa econômica da crise
Já no que se refere à causa econômica da crise atual, ela diz respeito ao fato de que nosso país encontra-se, presentemente, à beira de um colapso. Caminhamos para o terceiro ano consecutivo de queda do PIB, o que representa um fenômeno inédito desde que iniciamos o levantamento da contabilidade econômica nacional. Só no primeiro trimestre de 2016, um milhão e 100 mil empregados foram despedidos. Estamos atualmente com mais de 10% da massa trabalhadora sem emprego. No ano passado, segundo dados contidos na PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), pela primeira vez desde 1992 a renda do trabalho dos brasileiros diminuiu e a desigualdade aumentou.
Tal situação, das mais preocupantes, é, na verdade, em grande parte, o reflexo entre nós de uma mudança histórica da maior importância: a sucessão do capitalismo industrial pelo capitalismo financeiro. Todos sabem que, ao contrário das indústrias, os bancos não criam riqueza alguma; na melhor das hipóteses, auxiliam na produção de riqueza, através do crédito. Sucede, porém, que as instituições financeiras, no mundo todo, não se limitam hoje a fazer operações de crédito, mas se dedicam, também (e algumas delas especialmente) à especulação com valores mobiliários. Foi isso que desencadeou a grande recessão mundial em 2007, consequente à quebra do banco Lehman Brothers nos Estados Unidos, quando a cadeia dos chamados “derivativos”, sobre os quais seu capital estava assentado, desmoronou. Segundo previsão do Fundo Monetário Internacional, a expectativa é de que, no mundo todo, este ano, mais de 2,3 milhões de pessoas percam seu emprego, totalizando quase 200 milhões de desempregados.
É óbvio que o governo de Dilma Rousseff não criou no Brasil esse colapso econômico, mas segundo um defeito tradicional dos brasileiros revelou-se incapaz de previsão e planejamento do fenômeno. Ademais, o governo Dilma Rousseff decidiu aliar-se preferentemente aos banqueiros, deixando de dar início ao necessário processo de reindustrialização do país. Com isto, enquanto nossa produção industrial diminuiu 21% desde meados de 2013, nossos dois maiores bancos, Bradesco e Itaú, tiveram no ano passado um lucro líquido de 13 e 14%, respectivamente.
A quem cabe a decisão sobre o impeachment? Alguns dizem que isso cabe ao Congresso Nacional e outros ao STF. Quem decide?
A Constituição Federal determina que a decisão de impeachment cabe ao Congresso Nacional: a Câmara dos Deputados admite a denúncia contra o presidente, e o Senado aceita-a ou não. Mas o STF não pode, de forma alguma, manter-se alheio ao processo de destituição. Não só porque lhe compete, precipuamente, “a guarda da Constituição” (art. 102), como também porque “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (Constituição Federal, art. 5º, XXXVI).
Seria possível convocar novas eleições neste momento? O que determina a Constituição sobre esse ponto e qual deveria ser o procedimento? Quem deveria convocá-la e que atores deveriam participar de sua elaboração?
Novas eleições só serão admissíveis mediante emenda constitucional.
Em seu artigo, intitulado O Poder Judiciário no Brasil, o senhor faz alguns questionamentos sobre a atuação dos órgãos judiciários e uma delas diz respeito ao fato de se eles devem ou não ser controlados. Tendo em vista a política brasileira atual, como responde à questão? Quais órgãos judiciários devem ser controlados, em quais ocasiões e por quem?
A triste verdade — totalmente ignorada no ensino jurídico oficial — é que os Ministros do Supremo Tribunal Federal não se submetem ao controle de poder algum. Eles podem cumprir ou não qualquer norma jurídica, desde o Regimento Interno do Tribunal até os mandamentos constitucionais, sem que sejam minimamente responsabilizados pelo descumprimento.
Deseja acrescentar algo?
Sim. Quero dizer que o atual ambiente generalizado de ódio, preconceito e intolerância política, criado durante o governo Dilma Rousseff, e que culminou com a escandalosa sessão da Câmara dos Deputados do último dia 17 de abril, pôs em foco a falta de formação ética de grande parte do nosso povo para uma convivência harmônica e respeitosa dos direitos humanos.
Faço, portanto, um apelo para que se inicie desde logo, e se consolide, um vasto programa de educação ética em todos os níveis, a fim de que sejamos ao final capazes de rejeitar o espírito de egoísmo, que tomou conta do nosso povo, e que constitui a alma do capitalismo, como assinalou o Papa Francisco. Esse generalizado costume de busca do interesse próprio, em detrimento do bem comum do povo, nos foi insuflado desde o início da colonização. Como bem advertira Frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil publicada originalmente em 1627, “nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela e trata do bem comum, senão cada qual do bem particular”.
Ora, se a razão de ser da vida humana é alcançar a felicidade, individual e social, é preciso frisar que o egoísmo jamais, em lugar algum, produziu esse resultado. A plena felicidade só se alcança com um comportamento altruísta, fundado na compaixão, na solidariedade e no amor ao próximo, sem restrições de qualquer espécie.
Foto: Reprodução/Opera Mundi
Fonte: Opera Mundi