Por Antoni Aguiló, no Público.
Tradução: Rôney Rodrigues.
Em O mal-estar da civilização, Freud defendeu que a sociedade europeia dos princípios do século XX era uma sociedade reprimida e repressora. Reprimida porque praticava um moralismo hipócrita baseado na inibição sexual e afetiva. Repressora porque criou uma mentalidade e alguns códigos de conduta com a intenção de vigiar e punir a satisfação das pulsões eróticas que fossem além da norma estabelecida. No entanto, nos últimos tempos a sociedade reprimida se transformou em uma sociedade hipersexualizada, onde o amor e o sexo se converteram em produtos descartáveis do consumo de massas.
Apesar das mudanças, seguimos vivendo em uma sociedade fortemente repressora. Sistemas de poder como o capitalismo, o patriarcado e o heterossexismo reprimem potencial humano. Os homens, por exemplo, fomos confinados emocionalmente pelo heteropatriarcado. A masculinidade tóxica nos ensinou a ser psicologicamente (ou patologicamente?) fortes, a não sentir, a não sofrer em público. Nosso valor se reduz a quanta merda podemos engolir sem derramar uma só lágrima. Algumas vezes, devido a preconceitos homofóbicos ainda existentes, quando meninos expressam determinados sentimentos e preferências, se exerce contra eles um tipo de violência psicológica que lhes infunde sentimentos de culpa ou vergonha. Nos educam para dominar, para controlar, para fingir, para competir e acumular riqueza e poder às custas dos outros – não para amar, cuidar ou compartilhar.
Diante deste quadro, podemos propor algumas perguntas desafiadoras: que papel o amor pode exercer no atual contexto de crise sanitária global, em que a sobrevivência física e emocional se torna cada vez mais precária? Por acaso, em tempos de incerteza, em que se corre o risco de se recolher em si mesmo e desconfiar do outro, o amor não seria mais que “um fósforo queimado descendo pelo vaso sanitário”, como escreveu Hart Crane? Há lugar para o amor no espaço público organizado sob os parâmetros da nova normalidade, onde os corpos e os afetos obedecem o imperativo do distanciamento interpessoal e grande parte de nossa vida se desenvolve na internet? Como tomar medidas de proteção social e individual sem erodir os laços de cooperação e solidariedade?
O problema é que, no Ocidente moderno, o amor sempre ocupou uma posição subordinada em nossas vidas. O patriarcado se encarregou de confiná-lo na esfera privada. Tende-se, assim, a vê-lo como um sentimento que não vai além do apetite sensível e das emoções individuais, não como um fator de transformação social e espiritual.
Como força social, o amor é um sentimento transgressor, capaz de alimentar o inconformismo, despojar os poderosos de seus privilégios e enriquecer aquilo que é público. É preciso recuperar a ideia de que o amor é uma prática ética e política, de que o emocional é político. Nessa afirmação reside grande parte do poder transformador dos movimentos LGBTI+, feministas e antirracistas. O “eros alado” com que Alexandra Kollontai combateu a discriminação das mulheres trabalhadoras pelo machismo proletário; o amor integrador com que sonhou Luther King, que expôs a realidade crua do racismo e da supremacia branca; e o “amor eficaz” pregado por Camilo Torres, que mostrou sua opção preferencial pelos pobres, são exemplos que apontam nesta direção.
Com força espiritual, o amor é uma energia que existe no interior de cada um e que lhe permite expandir-se para além do eu individual, criar comunidade e fazer surgir em nós um sentido transcendental de união. Necessitamos de uma sabedoria que faça do amor uma experiência enraizada no comunitário. Sobonfu Somé explica que, para o povo dagara, o amor é um fenômeno que se vive coletivamente. A intimidade, o amor e o cuidado são inseparáveis de um mundo cósmico e natural em que tudo está interconectado: a água, o fogo, a terra, o mineral etc. “O avô costumava chamar a chuva de ritual erótico entre o céu e a terra”, explica. Justamente é essa interação entre o ser humanos e os elementos cósmicos o que gera e transmite o amor comunitário.
Assim o entenderam também feministas como Gloria Anzaldúa e Audre Lorde, que nos ensinaram a descobrir a presença de uma espiritualidade erótica na vida cotidiana. “Da mesma forma que meu corpo se abre à música, respondendo a ela, e escuta com atenção seus mais profundos ritmos, assim também o que sinto pode abrir-se a uma experiência eroticamente plena, seja ela dançar, construir uma estante, escrever um poema, examinar uma ideia”, afirma Lorde.
Porém, para grande parte da cultura ocidental, espiritualidade é uma palavra que gera sentimentos de rechaço, devido ao preconceito racionalista que a considera um fenômeno oposto à razão e à realidade material, em nada relacionada ao erotismo. De fato, a indústria do sexo habilmente nos enganou para confundir o erótico com o pornográfico.
Trata-se nos nos liberarmos das heranças emocionais que dificultam amar(-nos). Arundhati Roy afirmou recentemente que a pandemia é “um portal, uma porta entre um mundo e o seguinte”. Podemos escolher manter a porta fechada e confinar o amor nas estreitas margens em que fomos socializados. Ou podemos escolher abrir a porta para transitar para uma experiência mais enriquecedora do amor, uma experiência que resgate as possibilidades esquecidas. Parece-me a melhor escolha para começar a desconfinar o amor no cenário da “nova normalidade”, que, desconfio, pode ser bem pouco amorosa.
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