Descendente de japoneses é agredida em SP : “Você é o coronavírus”

Fernanda Yumi Tagashira dá seu depoimento à "Marie Claire" sobre o ocorrido no ambiente de trabalho e como é o preconceito amarelo

Uma jovem de 19 anos recebeu uma borrifada de álcool de uma colega de trabalho, na terça (17), em São Paulo. Fernanda Yumi Tagashira é estagiária em uma empresa de segurança virtual e sofreu racismo no ambiente de trabalho.

Em depoimento à Marie Claire Brasil, ela deu detalhes do ocorrido, relata como se sentiu e o que pretende fazer.

”Estou com a coronavírus aqui do lado”, ‘olha a infectada’ e mais outros comentários infelizes que escutei. Meu nome é Fernanda Yumi Tagashira e, não, eu não sou um vírus. Sou mestiça, pai filho de japoneses e mãe negra, sou o que nós, do Movimento Amarelo dizemos: blasian (black+asian). Mas, como embora parte da minha vida não soube do termo, sempre me referi como amarela, é o que está no meu RG, é o que está na boca dos racistas desde sempre.

Tenho 19 anos, um livro de contos e poesia publicado chamado Necrotério de Marte e faço Rádio e TV porque sonho em ser roteirista e cineasta. Quase desisti desse sonho quando percebi como eram as pessoas do meio audiovisual, privilegiadas e em sua maioria, brancas. Também entendi finalmente o que é o mito da minoria modelo, que nem todo asiático é inteligente e passa na federal por ‘mérito’.

E quem nós, descendentes de asiáticos somos, ainda mais no contexto do coronavírus.  Ao contrário do que algumas pessoas nas redes sociais dizem, o coronavírus está sendo falado desde janeiro e com eles os comentários racistas e xenófobos também. Com o coronavírus ficou evidente o verdadeiro significado de perigo amarelo e que o mito da minoria modelo é praticado até certo ponto quando se tem oportunidade de praticar o racismo e xenofobia.

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Trabalho com segurança virtual, é meu primeiro emprego na vida, meu primeiro salário e que posso pagar algumas contas e ajudar nas despesas de casa. Fiquei orgulhosa quando consegui o emprego por indicação de um amigo, só estou lá desde o carnaval, faz pouquíssimo tempo. Logo no meu primeiro dia uma mulher me fez perguntas um tanto quanto inconvenientes. ‘Como fala seu sobrenome?’, ‘Tagashira.’. ‘Como?’.’Tagashira’. ;’Tagashishima shishima?’. “A gente fez aposta pra saber como fala seu nome e de onde você veio’. Foi a primeira vez em muito tempo que fui tratada como se fosse um animal exótico. Já me disseram ‘Tagashira ou Cag**NaChina?’ e  ‘volta paro seu país”. Isso que eu sou mestiça, possuo meus traços, mas não tanto quanto alguém que seja filho de pai e mãe asiático.

Por estar em experiência ainda, não posso ficar sozinha e chamaram a mulher para me ajudar, já que meus colegas fixos chegariam atrasados. Assim que me sentei espirrei, um espirro normal por causa do choque com o ar condicionado e disseram ‘olha o coronavírus’, porém não fui a única a espirrar naquele momento, então não me importei tanto. Por conta dessa crise do álcool em gel, a empresa comprou álcool normal e colocou em borrifadores a fim de mantermos a higiene e as propostas seguidas para evitar a propagação da doença.

A mulher se sentou ao meu lado e disse, de maneira alta: ‘hoje vou ajudar a coronavírus aqui’, ‘estou com a coronavírus aqui’, ‘vou ficar infectada, se acontecer, já sabem por quê’. Durante as horas que não estávamos realizando atendimento, falamos sobre se já namorei, se namorei menino ou menina, se eu sempre tive cabelo curto, sobre sapatos, coisas normais. Ela ficava a todo momento borrifando álcool nas mãos e quando foi limpar a mesa que estava usando disse algo como ‘é bom limpar, estou com a coronavírus aqui’. Dá para contar nos dedos as vezes em que ela falou meu nome praticamente.

Em determinado momento, em que ainda falavam de coronavírus, porque só se fala disso agora, ela disse ‘mas você é chinesa’ e duas colegas corrigiram, uma disse ‘japonesa’ e a outra ‘ela nasceu aqui no Brasil’. Ela respondeu: ‘China, Coreia, Japão, é tudo a mesma coisa, tudo um bando de gente porca que traz doença’ e em seguida perguntou ‘você também come comidas estranhas? Tipo cachorro’.

Pelas 10h, meus colegas chegaram e ela continuou lá, ainda me chamando de coronavírus, até que chegou o horário do meu almoço , das12h-13h. Na volta, meus colegas perguntaram se eu poderia encher a garrafa de um deles. Estendi o braço para pegar a garrafa e a mulher borrifou álcool no meu braço. Não importei tanto na hora porque ela estava borrifando no ar e em qualquer um o dia inteiro, mas o pior estava para acontecer. Assim que voltei, ela não estava mais na minha mesa, estava em outra ainda próxima a minha e, enquanto eu andava ela borrifava o álcool e gritava ‘OH A CORONAVÍRUS’. O álcool entrou no meu olho esquerdo e parte da minha pele ardeu por ser sensível, já que possuo dermatite atópica no rosto. Essa foi minha maior preocupação na hora. Única reação que tive foi xingá-la por ter acertado meu rosto e, debochadamente, ela me respondeu: ‘desculpa, eu não vi que era seu rosto, vem me dar um abracinho’. Mas meu olho estava ardendo e preferi não tocar nela, só voltar a trabalhar e ir embora logo.

Assim que cheguei em casa, conversei com a minha mãe, que ficou uma fera, pois eu não retruquei e enfatizou para que falasse com meu supervisor. Resolvi postar nas redes sociais o ocorrido, principalmente no Twitter que é como um diário para mim.

Não sabia que teria tanta repercussão. Graças ao MongeHan, o homem que me fez conhecer o Movimento Amarelo a partir de uma história sua chamada Criança Amarela, que mudou minha vida para sempre, as pessoas começaram a retuitar e curtir sem parar, comentando e dando apoio. Uns desabafaram contando sobre seus amigos, familiares ou de si mesmos por serem descendentes. Houve solidariedade antirracista e gente invalidando o que me aconteceu. Conversei com um advogado de Direitos Humanos que me aconselhou ao que fazer a respeito. Uns disseram que eu estava sofrendo de xenofobia e não, racismo. Eu sou brasileira. A maioria que me disse isso era branco. Vocês entendem o que quer dizer lugar de fala? Vocês sabem o que é racismo? Você sabe que uma pessoa amarela, apesar de lida em sua maioria como branca, é amarela? Sim, você sabe, porque em qualquer oportunidade diz ‘japa’, ‘pastel de flango’, ‘adoro a cultura asiática’ (com um teor fetichista absurdo). Vocês e parte de alguns asiáticos propagam a minoria modelo até que surge uma doença no Extremo Leste Asiático e compactuam com tags e frases de ‘China, assume teu vírus’, ‘doença de chinês’, ‘povo porco que come bicho’, ‘asiático nutella’ e vitimismo. Há tantas outras coisas ainda e isso é só uma faceta do que quer dizer perigo amarelo. É necessário, sim, a solidariedade antirracista para combater a supremacia branca. E não. Não foi xenofobia.

Ao conversar com meu supervisor, ele pareceu muito compreensível e que levaria o assunto para a diretoria. Deixei claro que prestei boletim de ocorrência online, como me aconselharam, e caso acontecesse outra vez, seria presencial. Fiquei calada no momento da agressão, mas não nas redes. Há quem diga que foi vitimismo meu fazer o vídeo chorando. Mas vocês esperavam que eu estivesse feliz e sorrindo? Fiz para deixar claro que em tempo de coronavírus o racismo com a comunidade asiática existe e se escancara cada vez mais e isso não é passe livre para que se cometa crime.

Vi diversas reportagens de pessoas asiáticas que sofreram de agressão física, verbal, racismo e xenofobia, só que quando isso acontece com a gente é muito diferente. É real. Não me viram mais como uma pessoa normal que trabalha e tenta ganhar a vida como todos ali, me viram como ‘a porca que traz doença’. E eu concordo que o racismo com negros é muito mais forte por ser estrutural no nosso País, mas isso não anula o que está acontecendo. Aliás, que acontece desde a Ditadura Vargas com campos de concentração para os países do Eixo, sobretudo para os japoneses que foram proibidos de falar ou consumir revistas em japonês fortalecendo o isolamento das colônias e o preconceito.

Agradeço a todos pelo apoio recebido, ainda estou triste porque vi racistas nas redes sociais com as tags a respeito do coronavírus e por saber que eu fui uma das pessoas que passaram por isso. É preciso que todos saibam da gravidade da situação.

O Covid-19 pode ser controlado por agentes de saúde com auxílio do Estado. E o racismo e a xenofobia? Pode ser penalizada num momento em que acham que nossa experiência é inválida e que nos culpam por ela? Não vi ninguém culpando as doenças trazidas pelo colonizador no Brasil, nem ‘brancos imundos que propagaram a peste bubônica’.

Peço, então, com gentileza e todo o carinho que recebi nos dois últimos dias de amigos e pessoas que nunca vi na vida: escute. Respeite. Mesmo que seu amigo amarelo seja o brincalhão da turma e te dê a liberdade para falar o que bem entende, ele não é o único amarelo no mundo. E pela última vez, nós não somos uma doença”.

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