Por Jesica Carvalho, Assessoria de Comunicação do CIMI Regional Maranhão.
O descaso do poder público em relação à assistência à saúde nas terras indígenas (TIs) vem ameaçando a vida dos povos originários no Maranhão (MA). Falta de água potável, escassez de remédios e desassistência médica estão entre os principais fatores que provocam doenças em crianças, idosos e adultos que vivem, de certa forma, abandonados pela política de saúde indígena.
Criada em 1999, pela Lei Nº 9.836, conhecida como Lei Arouca, a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas obriga, desde então, o governo federal a criar ações diferenciadas de atenção à saúde indígena, visando organizar um modelo de assistência, vinculado ao Sistema Único de Saúde (SUS) – e que é estruturado a partir dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs).
No Maranhão, de acordo com dados do Ministério da Saúde, o DSEI compreende 47 Unidades Básicas de Saúde Indígena. No entanto, a administração dessa política pública encontra falhas no estado, pois são comuns os casos de mortes nos territórios e aldeias por falta de acesso ao mínimo no que tange à saúde, processo que se intensificou com a política anti-indígena do atual governo federal e com o surgimento da pandemia de Covid-19.
São vários os exemplos de descaso pelo poder público, como, por exemplo, a situação enfrentada, atualmente, pelo povo Awa Guajá, que é a falta de água potável há três meses na TI Alto Turiaçu. Por conta deste processo, as condições sanitárias vêm desencadeando o surgimento de doenças, principalmente em crianças e idosos. O acesso apenas a um poço artesiano, com água não tratada, dificulta a condições de vida de toda a população indígena que vive na Aldeia Guajá Cocal.
Outra situação vivida pelos povos indígenas no Maranhão é a escassez de remédios nas Unidades Básicas de Saúde nas aldeias, além do envio de remédios com data próxima ao vencimento. “Antigamente nós tomávamos remédio poucas vezes e ficávamos bem de saúde. Nós queremos o remédio correto para cada doença. Nós sabemos que tem remédio vencido. Será que o Ministério da Saúde manda remédio próximo do prazo de validade para nós?”, questiona uma liderança do povo Awa Guajá, da TI Caru.
“Nós sabemos que tem remédio vencido. Será que o Ministério da Saúde manda remédio próximo do prazo de validade para nós?”
De acordo com Tatuxa’a Awa Guajá, o problema se intensifica com a falta de medicações específicas para diversas doenças, o que foge às deliberações da Lei Arouca, uma vez que não determina o tratamento adequado, segundo as necessidades dos povos indígenas. “A gente pergunta qual o remédio próprio para cada doença, não existe uma doença só, tem que ter remédio para cada doença que está aí”, destaca Tatuxa’a Awa Guajá.
“Até hoje não apareceu médico aqui na aldeia, não sei quando vem médico para cá para fazer consulta, tem apenas o técnico de enfermagem e enfermeira”, completa.
Tais condições não estão restritas apenas ao povo Awa Guajá, durante o Encontro das Mulheres Mermotumré-Canela, realizado em março de 2022, foi denunciada a situação vivenciada pelo povo Canela em relação à saúde. Falta de medicamentos, de acesso à consulta e exames na Unidade Básica de Saúde Indígena na Aldeia Escalvado, na Casa de Saúde do Índio (Casai), em São Luís, a necessidade de ampliação do acesso a serviços odontológicos e de transporte para as pessoas enfermas no território estão entre as principais reivindicações. O atendimento médico também é precário, insuficiente para o tamanho dessa população.
A desassistência à saúde indígena tem feito várias vítimas nos territórios indígenas no estado maranhense. Em 2021, a negligência do estado contribuiu com o perecer de duas crianças do povo indígena Memortumré-Canela. A falta de acesso aos cuidados necessários, que são preconizados na Lei Arouca, levou esses pequenos a óbito. Restando apenas a dor e o sentimento de desamparo entre os parentes.
Em relação ao descaso com a saúde indígena pelo poder público, o último Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), referente ao ano de 2020, destaca que o governo agiu com negligência ao “não adotar ações mínimas, como a instalação de barreiras sanitárias adequadas, para evitar a chegada do vírus nas comunidades indígenas. O governo federal também excluiu do grupo prioritário do plano nacional de imunização pelo menos metade da população indígena do país”, demonstram dados expostos na publicação do Cimi.
“Aqui é uma aldeia muito grande, com uma população de quase três mil pessoas e a água potável não chega a todas as famílias. Menos de 50% das famílias tem acesso à água encanada em sua casa e essa pendência do DSEI com o meu povo não é uma novidade”, diz Ricardo Capêrkô Canela. Em relação aos serviços odontológicos, Ricardo Capêrkô Canela pontua que o DSEI não envia os produtos necessários para o tratamento dentário e a situação é resolvida com a extração de dentes que, na verdade, deveriam receber o cuidado adequado.
“Menos de 50% das famílias tem acesso à água encanada em sua casa e essa pendência do DSEI com o meu povo não é uma novidade”
Vítimas também do descaso na Atenção Básica à Saúde, o povo Ka´apor – aldeia em que o conselho Tuxa Ta Pame atua – encontra-se em situação semelhante aos demais parentes citados acima. Em suas aldeias é fácil encontrar crianças com problemas de pele, outras gripadas e, até o presente momento, sem o devido acompanhamento de um profissional médico. Entre as denúncias, a falta de medicamento na aldeia, que os fazem necessitar de deslocamento até a cidade para a aquisição desses insumos.
Segundo Itahu Ka´apor, ainda em 2020, em uma reunião com a DSEI-MA, ficou definida a criação de uma Equipe Multidisciplinar para atender o povo, mas, até o momento, o acordo não foi cumprido. “Temos apenas uma enfermeira e um transporte que ficam na aldeia durante 20 dias. Quando ela sai da área ficamos sem profissionais da saúde. Fui buscar remédio no posto e até agora não chegou. Fui informado que não tem como fornecer remédio. Desse modo, tive que comprar remédio para meu neto no município de Santa Luzia. O pouco de medicamento que chega à aldeia não é suficiente para atender as 600 pessoas que temos aqui, em Ximborendá, além de outras sete aldeias”, enfatiza.
“O pouco de medicamento que chega à aldeia não é suficiente para atender as 600 pessoas que temos aqui”
Com o povo Krenyê, do território Krenyê, em Tuntum, a situação de descaso não é diferente. Relatam que Genecir Krepum Krenyê sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC) e que necessita de acompanhamento de um fisioterapeuta, porém o acesso ao serviço está sendo feito na rede particular de saúde. Os indígenas relatam, ainda, que são muitos gastos, inclusive com o transporte para transportar o paciente, que foi solicitado, mas que não foram atendidos. Muitas vezes, para a realização do tratamento, a viagem é feita em carros de linha ou em veículos particulares. Mesmo com esse caótico quadro, os indígenas afirmam que o DSEI-MA não cumpre com a responsabilidade de oferecer o transporte e o atendimento adequados em seu território.
O povo Akroá Gamella, que vive na TI Taquaritiua, uma extensão territorial que abrange os municípios de Viana, Matinha e Penalva, também convive com a situação de omissão de assistência indígena diferenciada. E mais, o povo que sofreu um violento massacre em abril de 2017, denuncia que é constantemente “recepcionado” com atitudes preconceituosas e racistas por parte dos órgãos públicos e da sociedade da região. O atendimento feito pelos órgãos municipais de assistência à saúde, ao qual os Akroá Gamella têm que recorrer diante da inexistência de uma assistência especifica no território, é extremamente penoso, pois, geralmente vem acompanhado de extremo descuido.
Pandemia e saúde indígena
Durante o agravamento da crise sanitária de Covid-19, os povos originários no Maranhão viram as dificuldades em relação à saúde intensificarem. Segundo a Assessora Jurídica do Cimi – Regional Maranhão, Lucimar Carvalho, por ocasião da pandemia, muitas foram as denúncias ao Ministério Público Federal (MPF), de lideranças indígenas e outros órgãos de proteção, a respeito da omissão do DSEI e da Fundação Nacional do Índio (Funai) perante as ações de prevenção ao coronavírus e de divulgação de dados referentes aos casos e óbitos devido a doença.
Outro fato bastante denunciado, durante o auge da pandemia no país, se trata da negação do acesso à prioridade da vacina contra a Covid-19, dos povos que não têm seu território demarcado. Na ocasião, foi necessária uma mobilização para que a imunização contemplasse os indígenas que vivem nas cidades. Apesar de haver decisão favorável no Supremo Tribunal Federal (STF), determinada na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, para que não fosse feita distinção na imunização dos povos indígenas no Maranhão, foi necessária a denúncia ao MPF, que, por sua vez, exigiu ao DSEI e às Secretarias Municipais de Saúde o direito à vacina contra a Covid-19 dos povos em retomada.