Desbancar o dólar, a quem interessa?

97% das transações internacionais, fora da zona do euro, são feitas numa só moeda, portanto, há de ser ela a base para as reservas internacionais.

Imagem: El Economista.es

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Desde o Império Britânico que se reconhece que a moeda é poder. Antes da I Guerra, tudo se cotava em libras esterlinas. Só que não se devia a um acordo leonino como o de Bretton Woods. Um tanto era pela força, pois os britânicos não titubeavam em resolver problemas de crédito com verdadeiros canhonaços. Outro tanto era pela desorganização do sistema monetário dos demais países industrializados. Nos Estados Unidos, até o segundo governo do presidente Grover Cleveland (1893 – 1896), discutia-se se o lastro deveria ser em ouro ou prata, ficando o ouro como tal até 1971. A prata para fins monetários só se restituiu em 2013.

Em outra matéria, discutiu-se o fato de os bloqueios das reservas de países indisciplinados às suas reservas em papéis do tesouro americano por em risco o próprio Estado como de risco-zero Numa discussão entre economistas, à guisa de brincadeira, surgiu a pergunta acerca do que aconteceria com a economia mundial se todas as reservas em dólar fossem cambiadas em um só momento, coordenadamente em todos os países da face da Terra. Claro que isso é parecido com uma fake News dos anos 1980. Era sobre a possibilidade de todas as ondas emitidas por todas as antenas de todas as transmissoras de rádio e TV da Av. Paulista entrarem em fase, somando, por um milionésimo de segundo, suas potências. Isso chegaria a dezenas de megawatts e a gente viraria pó. Seria como um mega forno de micro-ondas. Mas a brincadeira não é idiota de todo. Ocorre que as reservas em dólares detidas pela economia mundial é, intuitivamente, muito significativa.

Não é preciso ser muito versado em Economia para imaginar os números sejam astronômicos, visto que 97% das transações internacionais, fora da zona do euro, são feitas numa só moeda, portanto, há de ser ela a base para as reservas internacionais. É possível manter reservas em commodities? Em alguns casos, sim. O ouro é parte das reservas de vários países. O problema é que o metal tem uma elasticidade-preço da demanda extremamente ligada à necessidade da manutenção de portfólios de ativos, especialmente, perante o seu valor de troca. Supondo que um país precise ter suas reservas compostas por 80% em dólar e 20% em ouro. Suponhamos que o ouro suba 10% em dólar. O portfólio seria composto por 102% em relação ao valor anterior. O portador poderia vender 7,2% do peso em ouro e adquirir dólares ao preço do dia, mantendo a proporção 80-20 no novo patamar, de 102% do anterior. Aqui, interessa saber que a percentagem das reservas agregadas em dólar do mundo variam diariamente. Mais que isso, o portfólio em papéis de risco-zero também pode variar consoante as expectativas de eles manterem-se ou não com risco zero. É tão complexo que chega a ser nebuloso.

Como se não bastasse, não há um órgão mundial apto a contabilizar as reservas. O World Bank, por exemplo, faz uma estimativa  a partir das transações internacionais e respectivos balanços. O IMF, em sua biblioteca de dados, apresenta cento e noventa títulos, entre regiões, blocos econômicos e países. Mesmo assim, as datas de referência não são constantes. Um complicador a mais para quem pesquisa Economia Comparada. Por sorte, a variação é de dias e isso não pode incorrer em valores significativos.

Para não deixar a matéria pesada demais, omitiu-se a tabela, que se encontra em https://data.imf.org/COFER. Importante é saber que os quinze maiores países detentores de títulos públicos dos Estados Unidos somam reservas que atingem os 50% do PIB americano. A China sozinha chega aos 16%, algo inimaginável durante o período em que o sol nunca se punha no Império Britânico. Seria possível estimar o montante de papéis da dívida pública inglesa no auge do império, usando-se a cliometria, que é um método bastante discutível, haja vista que o portfólio de bens à disposição da sociedade é muito dinâmico. Por certo que Jesus Cristo não usou um celular, enquanto os produtos usados por ele nas suas abluções estão obsoletos. De qualquer forma,  o volume não poderia ser muito, pois o sistema monetário de então era umbilicalmente atado ao padrão ouro.

Dessa forma, estamos vivendo uma situação inédita na história dos últimos duzentos anos. Por um lado, institucionaliza-se o calote, como se valesse dizer “Ou você fica bonzinho, ou eu não pago”; por outro, o volume de papéis lastreados na credibilidade americana atingiu um nível jamais imaginado. Some-se a isso a participação da China no comércio internacional e podemos prever que o dólar caminha para ser desalojado do trono, cedendo, num futuro nada distante, o cetro à outra moeda, provavelmente chinesa. Se isso acontecer, haverá uma tendência de o renmi valorizar-se, fazendo com o que o país deixe de ser o vilão da concorrência por preço. Ademais, a troca trará fatal depreciação nas reservas internacionais. Resta perguntar, será que isso interessa à China? Será que isso interessa ao resto do mundo? Com em tudo na Economia, sobram perguntas, faltam respostas. Grande parte de nós não estará aqui para ver o desfecho.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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