Houve quem fosse tomado por um sentimento de déjà vu diante de certos editoriais e matérias jornalísticas do presente, entre eles da Revista Época e do jornal O Globo, pertencentes ao mesmo grupo de comunicações. Devo dizer que a mesma sensação me assaltou.
Pareceu-me antológico o editorial de O Globo “Os inimigos da democracia”, de 12 de fevereiro deste ano. Para quem tinha dúvidas da sinceridade de outro texto do mesmo jornal afirmando que o apoio à ditadura militar havia sido um “erro”, penso que elas se dissiparam de vez.
Esse editorial merece as mesmas críticas que Rafucko fez ao programa de tevê Jornal Nacional no vídeo “Patrícia Correta”, proibido pela tevê mas já assistido por, provavelmente, bem mais de um milhão de pessoas (uma de suas cópias, a que assisti, passava de quinhentos mil; ela já caiu e outra, posterior, já tinha ultrapassado esse número). Nos dois casos, o jornal subestimou a violência do Estado, também contra os jornalistas, que são alvo, em três quartos dos casos, da Polícia Militar, segundo a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (está no vídeo).
Nos dois casos, parte-se, explora-se a morte do videografista Santiago Ilídio Andrade, cheia de detalhes inexplicados, que grandes jornalistas, como Jânio de Freitas e Alberto Dines, e intelectuais sérios, como Pablo Ortellado, logo puseram em dúvida: ainda falta muito a investigar. Mas não para a Globo, que já assumiu certa versão, rica também do que parecem ser infrações ao código de ética da OAB, com elementos inusitados como o advogado do rapaz que delata outro passa a representar também este, e o advogado leva um deles para confissão na Globo etc., e a transformação (agora estamos na ética jornalística) do advogado de defesa em fonte não questionada da verdade.
O editorial leva o leitora incauto a entender, na ordem do texto, que: a) houve finalmente uma vítima das manifestações; ele ainda b) elogia o secretário de segurança em mais um projeto oportunista contra o direito de manifestar-se; c) tenta relacionar a morte de Santiago Ilídio com Marcelo Freixo; d) acusa um assessor dele, Thiago de Souza Melo, de advogar para manifestantes; e) enfim, acusa partidos, organizações sociais e sindicatos de serem responsáveis pela violência.
Comento esses pontos em uma ordem mais lógica do que a do texto jornalístico:
a; e) A insinuação de que o videografista teria sido o primeiro morto nas manifestações é uma inverdade que Eduardo Sterzi havia rebatido; a questão é que os outros mortos, como é a regra, ou foram ignorados ou não receberam destaque.
Em tal silenciamento, o texto é mais uma peça de defesa da repressão do Estado contra os direitos humanos e mais um libelo pela violência feito pela grande imprensa brasileira, no rádio, na tevê, nos jornais impressos contra os direitos civis e políticos. Vejam Mônica Waldvogel na GloboNews, desconstruída recentemente por Vladimir Safatle; a jornalista acha que o papel “natural” da polícia não é de proteger os cidadãos, mas de reprimi-los, e que mortes que eventualmente disso decorram são meros acidentes.
c) Continuemos com as organizações Globo; em razão dos padrões mínimos de qualidade e de ética no jornalismo, submergidos abissalmente, Rafael Fortes criou a categoria de “jornalismo hediondo” (delicada analogia com a tipologia penal) para a recente e já célebre manchete do G1 sobre o disse-me-disse de que alguém teria escutado sobre algo que enfim teria relação com o mais destacado político que se insurge contra o modelo antidemocrático de cidade que tais organizações anunciam, defendem e vendem: “Estagiário de advogado diz que ativista afirmou que homem que acendeu rojão era ligado ao deputado estadual Marcelo Freixo”.
d) No editorial, busca-se outra ligação: assessor do deputado advoga para militantes, prática perigosa na ditadura militar, que levou vários advogados de presos políticos a prisão, e que, nos dias de hoje, continuaria suspeita, segundo este jornal.
Nesta informação confidencial do II Exército, escrita em 1970, “Condições financeiras dos presos políticos” (guardado no Arquivo Público do Estado de São Paulo-APESP), temos a referência a uma “indústria de advocacia da subversão”: “já não constitui segredo que parte das despesas dos advogados vem sendo financiado [sic] por suas próprias organizações, com recursos a maioria, oriundos de assaltos.” Os advogados cobrariam “somas vultosas” e “não têm sido esquecidos no momento de recebê-las”.
Se recebiam honorários, os advogados estimulavam assaltos; se trabalhavam de graça, eram militantes… Dentro desse arrazoado autoritário, não havia como estar certo.
Marcelo Freixo explicou em outro texto a legal e legítima vinculação de seu assessor ao Instituto de Defensores dos Direitos Humanos. Essa movimentação do ódio teria que se dirigir contra o direito de defesa e contra os advogados, como a Globo fez novamente, e está acontecendo com toda força desde o ano passado. Isso ocorre em um contexto em que os advogados de manifestantes têm sofrido ameaças de morte. Alguns, desde junho de 2013, como conta, do Rio de Janeiro, o advogado militante de Direitos Humanos Felipe Coelho nesta entrevista dada a Raquel Boechat. Sobre o projeto no Congresso Nacional contra o terrorismo, Coelho afirma: “acho uma pena que a morte de um jornalista sirva a um propósito inverso da sua profissão, aumentar a repressão sobre o direito de manifestação, sobre o direito da liberdade de livre manifestação e opinião. […] É um oportunismo político.”
b) Como oportunismo pouco é para amadores, José Mariano Beltrame, o secretário de segurança do governo apoiado pela Globo, e a que Freixo faz oposição, logo correu para levar ao Congresso um projeto para criar o crime de desordem em locais públicos. E foi esse projeto que o editorial de 12 de fevereiro da Globo apoiou.
e) Enfim, O Globo, assim como os justiceiros do Rio de Janeiro, na verdade tira o foco da verdadeira questão, que Eliane Brum enuncia em artigo (“Nós, os humanos verdadeiros”) sobre os linchadores do Rio: “as maiores vítimas de violência de todos os tipos estão nas periferias e nas favelas”.
Vi que alguns evocaram, diante do editorial deste mês, a memória do que foi publicado por esse jornal, em 2 de abril de 1964, após o golpe, “Ressurge a democracia”. Nessa hora, no entanto, O Globo não se destacava, em mais de um sentido, entre outros jornais, que também apoiaram o golpe, como o Correio da Manhã e o Jornal do Brasil. O Globo foi ganhar importância depois, durante a ditadura. Muito se grita nas ruas que “A verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura”. Isso é exato, mas não é tudo. Houve tensões com o regime, especialmente com a censura. Nada que se compare, claro, ao que sofreram os veículos de esquerda, como o Pasquim. Ademais, as organizações Globo não eram monolíticas: empregaram nomes de esquerda como Dias Gomes.
A virada empresarial ocorreu com a injeção de dinheiro estadunidense, que foi muito questionada em sua legalidade, tendo em vista as limitações para o capital estrangeiro, que já existiam, no campo das comunicações. A ditadura acompanhou esse processo. Ao lado, em um documento usual de espionagem encontrado no acervo do DEOPS/SP (guardado no APESP), de 15 de dezembro de 1964, comenta-se, entre os assuntos da intervenção em Goiás e a rusga crescente entre Carlos Lacerda e Castelo Branco: “A compra da organização Victor Costa, pelo Grupo dos Marinhos, do GLOBO, foi feita com a cobertura de Rockefeller, do grupo da N.B.C. (National Broadcasting Corporation).”
Com a compra da organização, que incluía o rádio (e a famosa Rádio Nacional) e a tevê, formou-se a Rede Globo.
O governo militar viu irregularidades no acordo Globo com a Time-Life, mas, como se lê no documento ao lado da mesma fonte (uma ficha de Roberto Marinho), resolveu não o anular, e sim determinar que “A TV Globo tem 10 dias para corrigir as irregularidades e eliminar do contrato os itens que contrariam a legislação brasileira. O presidente da república acha que ROBERTO MARINHO, diretor presidente da TV Globo não agiu por mal.”
Nessa época, a grande oposição política que a Globo teve foi de Lacerda, que estava também a se opor ao presidente que foi tão compreensivo com o grupo empresarial, apesar de a CPI que investigou o acordo ter concluído por sua ilegalidade.
Roberto Marinho manteve-se fiel ao regime que permitiu a criação da Rede Globo. Há vários exemplos disso, no cultivo do ufanismo oficial e nos louvores ao governo federal. Neste breve nota, lembrarei apenas de um editorial de 30 de maio de 1978, a que o de 2014 faz eco.
Trata-se de um texto que fez coro com o governo contra campanha pela anistia, que crescia no país: em vários Estados formavam-se comitês da anistia, que almejavam, como já escrevi mais de uma vez, a punição dos torturadores da ditadura.
Tomei conhecimento desse editorial no Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP); a Polícia Civil o transcreveu, o que é singular. O procedimento usual era recortar e colar as notícias. Não sei a razão de esse editorial ter fugido a essa prática, mas talvez tenham percebido que o texto se aparentava antes com um documento de polícia política do que com um texto jornalístico.
Ao lado, pode-se ver o seu início, mas ele pode ser lido em sua inteireza no Diário da Assembleia Legislativa de Pernambuco, pois o então deputado estadual Honório Rocha, tendo lido o texto no Jornal do Commercio, que reproduziu o editorial, pediu em 30 de maio de 1978 que constasse integralmente do Diário da ALEPE, o que foi feito nas páginas 346 e 347.
As execuções extrajudiciais, travestidas de tiroteios e de algo como “autos de resistência”, são apresentadas desta forma: “quando o terrorista tomba morto num combate de rua com os agentes responsáveis pela ordem pública a semântica da subversão o considera assassinado ou fuzilado pelos órgãos de segurança”. Embora a Folha da Tarde é que tenha sido considerada praticamente um diário oficial da OBAN, como lembra Beatriz Kushnir em em Cães de guarda – Jornalistas e censores, do AI-5 à constituição de 1988, em tais momentos O Globo rivalizou seriamente no negacionismo autoritário.
Fazia parte dessa negação da natureza autoritária do regime a caracterização quase delirante da legalidade dos processos da ditadura militar. Volto a citar o editorial de 1978: “Aos protestos dos condenados em processos absolutamente legais juntam-se aqui e ali as vozes dos ‘inocentes úteis’ dos aproveitadores da emotividade popular.”
Este é um dos exemplos de como o direito importa para a história e para a política: as ilegalidades crônicas e sistemáticas desses mesmos processos são uma das contradições que desautorizam negar o caráter ditatorial do período.
Roberto Marinho, sintomaticamente, usa nesse trecho o vocabulário da doutrina da segurança nacional, tão identificado que estava com o ideário antidemocrático do regime. Segundo essa doutrina, os direitos humanos eram bandeira dos subversivos ou dos “inocentes úteis”, que seriam muito perigosos para o país, segundo este texto da Carta Mensal do DEOPS/SP, n. 3 de setembro de 1974 (que li no acervo do Arquivo Público Mineiro).
Trata-se de fala de ninguém menos do que o então secretário de segurança pública, Erasmo Dias, dirigida a lideranças estudantis e seus pais nos recintos do DEOPS. O trecho, com suas metáforas explosivas, parece-me bastante significativo da mentalidade reinante na polícia política:
Da mesma forma que uma bomba, com a chama, o cordel e o explosivo, a célula comunista é a chama, a massa estudantil, o explosivo, e o cordel uma série de elos onde se enfileiram os cripto-comunistas, para-comunistas, filo-comunistas, esquerdistas simpatizantes e inocentes úteis; estes últimos, junto à massa, são o potencial necessário à sua explosão, tão valiosos quanto o elo cripto-comunista! São os inocentes úteis de todo o cordel, a porção mais interessante e mais preciosa para a célula comunista, pois que, sendo indispensável, têm inclusive a capa da inocência e do idealismo.
O inocente-útil é tão perigoso quanto o cripto ou filo-comunista: é elemento essencial, para a detonação da massa!
Esta passagem de 1978 também chama a atenção: “Um dos irmãos Queiroz Benjamin não vacilou em participar do assassinato de um jovem recruta então de sentinela no Hospital da Aeronáutica (a mãe desse terrorista, D. Iramaia, é a Secretária do Comitê Brasileiro Pró-anistia).”
César Queiroz Benjamin foi preso com 17 anos e tratado, ilegalmente, inconstitucionalmente, como um maior de idade pela polícia. Ademais, foi torturado. Seu irmão Cid Benjamin, que estava no exílio, trocado que fora pelo embaixador alemão, conta que “O problema”, escreve, foi ‘solucionado’ por um laudo de um tenente médico do Exército, de nome Leuzi, atestando que César tinha ‘idade mental’ de 35 anos. Com base nesse laudo, ele foi considerado maior de idade e julgado como tal. Passou preso cinco anos, dos quais três e meio isolado”. Tal era a “legalidade” decantada por Roberto Marinho: as sanções e os inquéritos desobedeciam o próprio direito de exceção da época.
A mãe, Iramaia Queiroz Benjamin, em depoimento ao CPDOC, contou desse desprezo oficial até pelas decisões do Supremo Tribunal Federal:
O César teve seis processos! O processo ia andando, andando, chegava no julgamento, o César era julgado inimputável, porque era menor de idade, e aquele processo era anulado. Mas aí o promotor recorria, e subia para a instância superior. Foi assim, até que o processo que estava mais adiantado chegou ao Supremo Tribunal Federal. E o Supremo declarou o César inimputável. Então o César tinha que ser solto! Não havia mais apelação! Mas os militares disseram que o Supremo tinha declarado o César inimputável só num processo, e faltavam os outros. Como se o César fosse duas ou três pessoas…
Às custas de padrões mais consistentes de jornalismo, Roberto Marinho soube apoiar o regime que permitiu a formação de sua Rede Globo. E essa lealdade estendeu-se até o fim da ditadura, como se viu não se vendo a campanha das Diretas na sua tevê, e em outro editorial, de 7 de julho de 1984, “Julgamento da revolução”.
A fidelidade marca-se desde o título: ele insistia em chamar o golpe e o regime de “revolução”. E louvava a autoanistia e a transição controlada pelos militares nestes termos: “Não há memória de que haja ocorrido aqui, ou em qualquer outro país, que um regime de força, consolidado já mais de dez anos, se tenha utilizado do seu próprio arbítrio para se autolimitar, extinguindo os poderes de exceção, anistiando adversários, ensejando novos quadros partidários, em plena liberdade de imprensa.”
Entendo que o empresário quisesse elogiar a habilidade política dos militares em controlar o fim do regime, diferentemente do que ocorreu na Argentina; tal controle permitiu restringir fortemente as possibilidades da justiça de transição no Brasil (nota-se na comissão nacional da verdade, que surgiu tão atrasada que, no cinquentenário do golpe, ainda não terá terminado os trabalhos) e, com isso, limitou as condições de uma democratização mais profunda do país.
Em 31 de agosto de 2013, publicou-se o editorial “Apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro”, que foi comentado no Jornal Nacional, em conjunto com anúncio de um sítio da história da Rede Globo, com um caráter, por vezes, bem defensivo.
Houve quem desconfiasse da sinceridade do arrependimento tardio. Para terminar esta nota, dissipar tais suspeitas (possivelmente injustas), e tendo em vista que os novos princípios devem nortear ações diferentes, agora democráticas, sugiro:
a) Formação de uma Comissão da Verdade da Globo, para desenterrar os documentos de sua relação com a ditadura militar. Beatriz Kushnir, no livro que citei, teve acesso a um fundo de correspondência trocada entre a TV Globo e a Censura, mas – imaginem o que haveria no arquivo da empresa e nos arquivos pessoais da família Marinho!
b) Campanha para que outros veículos da imprensa que apoiaram a ditadura fizessem mea culpa (imaginem a Folha de S.Paulo pedindo desculpas pelo editorial da ditabranda?), reconhecessem seus “erros” e, em um passo adiante, formassem uma Comissão da Verdade da Imprensa, com jornalistas de vários veículos que pesquisariam tais arquivos.
c) Se a Rede Globo tornou-se contra o autoritarismo de ontem, por que não toma o mesmo posicionamento em relação ao de hoje? E contra seus injustos agentes, pois não são os partidos de esquerda e os sindicatos que estão a criar zonas de exceção no Brasil com os megaempreendimentos e os grandes eventos esportivos, e sim o clube de empreiteiras, grileiros e banqueiros, sob o silêncio cúmplice da grande imprensa.
Fonte: O Palco e o Mundo.