Derrotados e vitoriosos: um balanço do golpe de 2016

Por Luis Felipe Miguel.

São muitas as derrotas representadas pelo golpe de 2016. Para começar, é a derrota do experimento democrático inaugurado com o retorno dos civis ao poder, em 1985, cujos marcos foram definidos pela Constituição de 1988. Os procedimentos elementares da democracia eleitoral foram violados, com o afastamento ilegal de uma presidente escolhida pelo voto popular, e o consenso mínimo que o texto constitucional consignava, de construção de uma sociedade (ao menos um pouco) menos injusta, também foi quebrado. Nesse sentido, vivemos o fim da “Nova República”, conforme observaram vários analistas, de Leonardo Avritzer a Carlos Eduardo Martins.

É a derrota também do projeto do Partido dos Trabalhadores (ou, se quisermos, do “lulismo”) que chegou ao poder em 2003. Tratava-se de combater a miséria e obter a inclusão social sem afrontar os interesses dominantes, por meio de políticas de acomodação, incluindo o loteamento do Estado entre partidos conservadores e uma gestão da economia que garantiria lucros crescentes ao grande capital. Em troca, seriam assegurados avanços concretos para os mais pobres. Este projeto conseguiu repetir a vitória nas urnas pela quarta vez, em 2014, a despeito da situação adversa, mas escancarou seu esgotamento logo a seguir, quando a presidente reeleita assumiu o programa do ajuste fiscal antipopular exigido por seus adversários. A destituição de Dilma Rousseff e o apoio entusiástico que a elite política e o capital estão dando ao interinato de Michel Temer mostram que não há caminho de volta para o lulismo.

Por fim, é a derrota da esquerda brasileira em sua totalidade, estivesse ou não alinhada ao projeto petista. Ao longo do último quarto de século, desde antes de alcançar a presidência da República, o PT se tornou o eixo principal da esquerda – por sua inserção social, por seu peso eleitoral, pela intelectualidade que mobilizava. De alguma maneira, as demais organizações se localizavam no espaço político em relação à posição ocupada pelo PT. O discurso público de justificação do golpe não diferenciou petistas e outros grupos à esquerda, mesmo aqueles que se colocavam em oposição ao governo. E o interinato de Temer mostrou, desde seus primeiros dias, a que veio: ele visa impor retrocessos gigantescos aos programas sociais e às políticas de extensão de direitos, isto é, aos projetos da esquerda em sua pluralidade e às suas bases sociais.

O golpe de 2016 não era inevitável. É claro que a derrota do PSDB em 2014, pela quarta vez seguida, causou enorme frustração na direita e um sentimento generalizado de que a via eleitoral nunca lhe seria favorável. Antes mesmo do início do segundo mandato de Dilma Rousseff, orquestrou-se a contestação do resultado das urnas, com os pedidos de recontagem de votos e de impugnação da chapa eleita no Tribunal Superior Eleitoral, além da mobilização da classe média insatisfeita, com manifestações de rua e panelaços, tudo amplamente apoiado pela mídia. Os processos de impeachment apresentados na Câmara dos Deputados se somaram a isso. Mas, por longo tempo, a expectativa não era derrubar a presidente e sim impedi-la de governar. A análise do senador Aloysio Nunes Ferreira, derrotado como candidato a vice-presidente na chapa de Aécio Neves, sintetizava o sentimento da oposição: “Não quero que ela saia, quero sangrar a Dilma, não quero que o Brasil seja presidido pelo Michel Temer”. O impeachment, acrescentou, é apenas “expressão de rechaço à ordem atual”. Isso foi dito em 9 de março de 2015, em seminário realizado no Instituto Fernando Henrique Cardoso.

O afastamento da presidente foi fruto, assim, de uma janela de oportunidade que se construiu depois. A mobilização contra a presidente Dilma Rousseff obteve um sucesso maior que o esperado, gerando uma cadeia de realimentação com a mídia – o apoio da mídia ampliava o sucesso das mobilizações, o sucesso das mobilizações ampliava a sanha da mídia contra o governo. Quando o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, decidiu aplicar sua vingança contra o PT, acatando o pedido de impeachment e impondo a ele uma tramitação alucinada, o vice-presidente Michel Temer acelerou seus movimentos de aproximação com o PSDB, com o objetivo de se tornar uma opção viável ao conjunto da oposição ao PT. O grande capital, que antes tendia a julgar que as muitas concessões de Dilma Rousseff no segundo mandato eram a maneira mais segura de obter o ajuste que desejava, também entendeu que os ventos haviam mudado.

Iniciado o processo de afastamento, porém, seu desfecho se tornou quase inevitável. A velha política de obtenção de apoio parlamentar por meio da distribuição de cargos deixou de funcionar: a possibilidade de derrubada do governo contribuía para desvalorizar sua moeda de troca. A desmobilização social que o PT promoveu ao chegar ao governo, como garantia de que sua política conciliatória era para valer, tornou mais difícil organizar a resistência ao golpe em curso – e a política do segundo governo Dilma, com o ajuste fiscal recessivo e o desmonte de políticas de extensão de direitos, reduziu ainda mais o ânimo dos grupos que poderiam defendê-la. Por fim, também em nome da moderação, da conciliação e de acenos para os grupos conservadores que desejavam manter neutralizados, os governos petistas se furtaram a indicar, para os órgãos de defesa do Estado e da legalidade, pessoas efetivamente comprometidas com a ordem democrática. Na preparação do golpe e depois, quando ele foi efetivamente foi deflagrado, as cúpulas do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal estavam divididas entre cúmplices e inertes.

A derrubada do governo eleito foi uma empreitada que uniu grupos com agendas diversas – e as ações do interinato mostram essa pluralidade interna. Há a fração da elite política que viu noimpeachment uma oportunidade para frear as investigações sobre corrupção, grupo do qual, tudo indica, participa o próprio vice-presidente no exercício ilegal da presidência, Michel Temer, e que foi crucial para a construção do apoio parlamentar ao impeachment. Há o segmento mais vinculado ao capital internacional, empenhado em abrir o patrimônio nacional à exploração por interesses estrangeiros, cujo núcleo central está no PSDB paulista, nas figuras de José Serra, Aloysio Nunes Ferreira e outros. Há os setores empresariais do campo e das cidades interessados no retrocesso nas relações capital-trabalho.

Nenhuma dessas posições possui lastro social significativo – justamente por isso, a democracia eleitoral se apresenta como um problema. Na história do Brasil, o entreguismo sempre foi rechaçado nas urnas, de maneira retumbante. As políticas sociais e a proteção ao trabalho sempre contaram e continuam contando com apoio amplamente majoritário. O fundamentalismo de mercado é abraçado por alguns jovens radicalizados de direita, vinculados a movimentos inspirados e financiados em seus congêneres estadunidenses, como o Movimento Brasil Livre (sic), mas a defesa do Estado mínimo possui, no Brasil, ressonância social próxima do zero.

O discurso anticorrupção, que sustentou boa parte da campanha pelo afastamento de Dilma Rousseff, está falido – nem mesmo os mais iludidos são ainda capazes de aceitar a ideia de que a corrupção é exclusividade dos petistas ou da esquerda. Pelo contrário, está cada vez mais claro que os esquemas de pilhagem do Estado brasileiro já estavam em funcionamento muito antes da chegada do PT ao poder e o que ocorreu foi, neste caso também, uma capitulação do partido às práticas dominantes da política brasileira.

Por tudo isso, o fundamentalismo cristão cada vez mais se mostra crucial na base de sustentação da direita brasileira. O discurso homofóbico e antifeminista não é uma sobrevivência excêntrica na direita brasileira. É componente essencial para dar apelo popular às suas posições. Não foi por acaso que sua presença política cresceu, de maneira exponencial, a partir do momento em que as políticas compensatórias iniciadas no governo Lula erodiram os currais eleitorais da direita, nas regiões mais atrasadas do Brasil. O deslocamento da disputa política para um registro pretensamente “moral” – em que combate à corrupção e combate à “ideologia de gênero” se combinam – faz parte da estratégia de reaglutinação da base social da direita.

O enfrentamento sem tréguas deste discurso não é, portanto, secundário para as forças políticas progressistas. Por um lado, os movimentos feministas, antirracistas e em defesa dos direitos degays, lésbicas e travestis colocam em questão formas de opressão e de violência que afetam milhões de pessoas. Não é possível pensar em construir uma sociedade justa sem ter, como prioridade, o combate à misoginia, ao racismo e à homofobia. Por outro lado, mesmo como tática política é equivocado secundarizar tais pautas. O pretenso ganho momentâneo, ao evitar a discussão de questões polêmicas, cobra seu preço, que é a manutenção do caldo de cultura da mobilização da direita. Os governos do PT recuaram, muitas e muitas vezes, quando estavam em jogo direitos das mulheres ou de gays, lésbicas e travestis. Para agradar à bancada fundamentalista, não efetivaram as políticas necessárias – por exemplo – para garantir o acesso ao aborto legal na rede pública de saúde ou o combate à homofobia nas escolas. De que adiantou? Os fundamentalistas estiveram entre os entusiastas mais ruidosos do golpe. Já o movimento feminista e o movimento LGBT estão hoje na linha de frente da defesa da democracia.

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Luis Felipe Miguel é um dos autores do novo livro de intervenção da Boitempo, que está inundando as livrarias de todo o país: Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil! Confira o sumário completo do livro aqui.

Fonte: Blog da Boitempo.

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