Aniversariante de outubro, a Constituição de 1988 faz do Brasil um Estado de bem-estar social. Saúde gratuita para todos, educação pública como um dever dos governantes, assistência social aos necessitados. Uma realidade longe de ser alcançada e que, em uma primeira votação, os deputados acabam de deixar vinte anos mais distante.
A proposta do governo Michel Temer de alterar a Constituição para congelar, por duas décadas, os investimentos em saúde e educação, entre outros gastos públicos, foi aprovada nesta segunda-feira 10 na Câmara. Após um banquete oferecido a deputados pelo presidente na véspera, 366 votaram a favor da chamada PEC 241, 58 acima do necessário.
Uma surpresa de última hora acrescentou ainda o salário mínimo como item sujeito a congelamentos por duas décadas, sem aumentos reais.
Para ser aprovada de vez na Câmara, a medida ainda precisa passar por uma segunda votação, o que deve ocorrer nos próximos dias. Depois segue para o Senado, onde também será submetida a duas apreciações em plenário. O governo espera liquidar todo esse processo ainda neste ano, prenúncio de uma correria legislativa incomum.
Antes do início da votação, a Câmara derrubou a exigência regimental de um intervalo de duas sessões da Casa para a deliberação da PEC em primeiro turno, o que permitiu a análise da proposta nesta segunda-feira 10. A comissão especial que analisou a matéria tinha aprovado o texto apenas na quinta-feira 6, daí a necessidade da chamada “quebra de interstício” para garantir a votação plenária nesta segunda.
PCdoB e PT chegaram a entrar com um mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal para barrar a votação, mas o relator, ministro Luís Roberto Barroso, negou o pedido de liminar. Embora tenha reconhecido que a PEC provocará perdas para áreas da administração pública, Barroso argumentou que a proposta não ofende a Constituição. “Há risco de setores mais vulneráveis e menos representados politicamente perderem a disputa por recursos escassos. Porém, está não é uma questão constitucional, mas política”, afirmou em sua decisão.
Durante 20 anos, diz a proposta, todas as despesas públicas serão corrigidas de um orçamento para o outro apenas com base na inflação do ano anterior. Não haverá aumentos reais. Desse modo, crê o governo, o pagamento da dívida pública não correrá perigo, os investimentos privados na economia voltarão e o crescimento virá a reboque.
Para tornar o texto mais palatável aos parlamentares, receosos da impopularidade da medida, o relator, Darcício Perondi (PMDB-RS), havia feito uma alteração: no caso específico de saúde e educação, o congelamento começará só em 2018, último ano de mandato de Michel Temer. Com isso, espera-se que a população não sinta muito os efeitos em escolas e hospitais a tempo de punir seus representantes nas urnas na eleição de 2018. A propósito: na campanha de 2014, Temer doou 50 mil reais à candidatura de Perondi.
Saúde e educação, segundo pesquisas, são duas das áreas mais problemáticas e demandadas pela população. No fim de 2015, o Ibope pesquisou as prioridades dos brasileiros para 2016. A saúde liderava o ranking. Melhorar a qualidade da educação vinha em quinto. Os dois setores precisariam, portanto, de mais dinheiro, com reajustes de verba acima da inflação.
O orçamento das duas áreas é da ordem de 100 bilhões de reais por ano. Um valor atingido graças a aumentos reais. Em 2002, a saúde tinha cerca de 55 bilhões anuais e a educação, perto de 30 bilhões de reais. Nesse mesmo período, o País ganhou 30 milhões de habitantes e atingiu uma população de 200 milhões.
Dois pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, a farmacêutica Fabiola Sulpino Vieira e o economista Rodrigo Pucci Sá e Benevides, ambos especialistas em saúde coletiva, fizeram as contas e concluíram: o gasto público per capita com saúde no Brasil é um dos menores entre países que possuem sistema universal do tipo SUS e mesmo em uma comparação com vizinhos sem modelo semelhante.
Em 2013, o setor público brasileiro investiu 591 dólares por habitante. O Reino Unido, inspiração do SUS, 2,7 mil dólares e a França, outra nação com sistema universal, 3,3 mil. Argentina e Chile, onde não há direito universal à saúde, aplicaram 1,1 mil e 795 dólares, respectivamente.
Segundo uma nota divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) no fim de setembro, a perda acumulada em 20 anos para a saúde seria de 654 bilhões de reais, em um cenário de crescimento do PIB de 2% ao ano. De acordo com uma projeção realizada por consultores legislativos da Câmara, a perda acumulada até 2025 seria de 331 bilhões de reais.
Em entrevista a CartaCapital, José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde do governo Lula, afirma que a PEC é uma “condenação de morte” para milhares de brasileiros. “Estamos falando de fechamento de leitos hospitalares, de encerramento de serviços de saúde, de demissões de profissionais, de redução do acesso, de aumento da demora no atendimento.”
Temporão lembra ainda que apenas 48% das despesas totais com saúde são públicas, enquanto o restante corresponde a gastos do setor privado. “No Brasil, o governo gasta pouco e o ônus do financiamento recai sobre as famílias. A PEC 241 só agrava essa situação. Para ter um parâmetro de comparação, na Inglaterra, que também tem um sistema de saúde universal, 85% do gasto total é público.”
O avanço da educação no século XXI, escasso para as necessidades dos brasileiros e da economia, não se repetirá, com o congelamento de verba. As matrículas em universidades pularam de 3 milhões para 7 milhões entre 2001 e 2013, embaladas pela criação instituições federais (18) e de bolsas (Prouni).
No ensino profissional, as inscrições em estabelecimentos federais subiram de 315 mil em 2001 para 784 mil em 2014. O orçamento da rede de escolas técnicas saltou de 850 milhões de reais em 2003 para 10 bilhões em 2015, descontada a inflação. Dados, todos, do Ministério da Educação.
No fim de 2015, um consultor do Senado, o doutor em economia Marcos Mendes, analisou o orçamento federal da educação nos dez anos entre 2004 e 2014. Concluiu que a área “foi bastante privilegiada”, a despontar como campeã de alta de investimento quando se olha o valor direcionado a ela no total das receitas do governo, “um saldo nada desprezível de 130%”. Se o congelamento já existisse, a expansão teria sido à metade, estima o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar, o Diap.
Consultores da Câmara estimaram em agosto que a área perderá 45 bilhões de reais até 2025 com o limite do aumento de gastos. Para o filósofo Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação do governo Dilma, a proposta inviabiliza o cumprimento da meta de universalizar o atendimento das crianças e adolescentes até 2020, como prevê o Plano Nacional de Educação.
“Com a manutenção dos gastos no atual nível, como propõe a PEC 241, não será possível nem sequer incluir todos os brasileiros com 4 a 17 anos na escola, muito menos com professores competentes e bem formados. O investimento seria insuficiente. ”
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/.