
Por Juliana Gomes.
Em tempos não muito distantes, era esperado que pessoas abastadas ou em galopante ascensão social ostentassem vieiras, presunto parma, entrecôte, quiches, salmão selvagem, costela de porco ao molho barbecue. No mínimo, um peito de frango. Ou não se importassem com refeições e só encaixassem qualquer coisinha entre um copo de uísque e uma taça de espumante, a exemplo de Don Draper, da série Mad Men, e Shiv Roy, de Succession.
Como é comum aos Estados Unidos fugir à regra global no quesito hábitos alimentares, também não surpreende que Bill Gates sempre prefira um Big Mac a qualquer outra opção disponível no planeta e que Gwyneth Paltrow escolha beber um caldo de ossos todos os dias.
A partir da década de 90, os alimentos passaram aos poucos a serem vistos como meras fontes de nutrientes isolados, a acompanhar alegações exageradas e integrar padrões alimentares focados em otimizar a saúde corporal. A indústria alimentícia, é claro, têm sua cota de responsabilidade no processo, já que precisa reinventar nossos desejos e necessidades para manter e aumentar seu faturamento.
O pesquisador australiano Gyorgy Scrinis chama esse período de era do “Nutricionismo funcional”. Ele ajuda a explicar por que uma pessoa com um patrimônio estipulado em R$400 milhões cometa algo totalmente impensado há 50 anos: escolha comer ovos em todas as refeições, como a influenciadora Virgínia Fonseca. Também joga luz nas razões que levam uma adolescente de 16 anos, que namora um dos maiores herdeiros do país, a ter orgulho de expor uma geladeira monotemática nas redes sociais. Estamos falando da influenciadora Duda Guerra, namorada de Benício Huck.

No dia 27 de novembro do ano passado, Duda compartilhou sua farta rotina alimentar com os seguimores. O café da manhã levava uma fatia de pão, pra dar energia antes do treino, uma omelete com cinco ovos, mas apenas uma gema, já que está evitando ganhar gordura. No almoço, a norinha da Angélica escolhia comer sete ovos, descartando seis gemas, acompanhado do combo feijão, arroz, batata doce e outros legumes. De lanche, era a vez da vitamina de banana com whey protein. E pra encerrar o dia, mais um ovo completo e sete claras com uma pimentinha por cima, pra dar um tempero.
Nada disso chega aos pés da garota propaganda de ovos mais famosa do país. A modelo de fisiculturismo e ex-BBB Gracyanne Barbosa tem nos músculos o seu principal instrumento de trabalho e explora justamente a rotina peculiar de dieta e treinos intensos para consolidar sua identidade nas mídias. São cerca de 40 ovos em 24 horas, 14.600 por ano. Isso representa 55 vezes o consumo médio da população brasileira em 2024.
A galinha criada para fins comerciais no país é uma espécie de origem asiática introduzida no continente americano durante a colonização. D. João VI, que desembarcou com a família em 1806 por aqui, era um grande fã de canja. Mas até o século XIX, a avicultura limitava-se a pequenas criações para agradar europeus saudosos de suflês e para contribuir na subsistência das famílias.
A avicultura despontou primeiro em Minas Gerais, à medida que a mineração expandia. Rio de Janeiro e São Paulo não quiseram ficar pra trás e passaram a se destacar na produção na década de 30, época em que iniciaram as modificações genéticas dos bichos a partir da importação de ovos dos Estados Unidos, que já abrigava a maior criação de aves para fins comerciais do mundo. Em 1934 surgia a Perdigão, seguida da Sadia dez anos depois. Na década de 50, a Seara inaugurou o primeiro frigorífico de grande porte na cidade que dá nome à empresa, em Santa Catarina.
No momento, o Brasil abriga em torno de 1,5 bilhão de aves de criação, número que abarca os frangos, bichos criados para produzir carne, e as galinhas poedeiras, focadas na produção de ovos. Cascavel, no Paraná, lidera disparada, com 21 milhões de frangos. Há 63 vezes mais aves de criação do que humanos na cidade.
Segundo a Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), nossas galinhas renderam 57 bilhões de ovos no ano passado. Em 2025, a projeção é de 2 bilhões a mais, pra alegria da turma da Gracy. Demanda é o que não falta. Foram cerca de 263 ovos consumidos por habitante em 2024, média que tem tudo pra chegar a 272 até dezembro desse ano.
Os fatores que explicam o reinado dos ovos nas receitas e na rotina da população brasileira antecedem os objetivos fitness. Em primeiro lugar, nossa culinária foi forjada pelas cozinhas francesa e portuguesa, totalmente dependentes desse insumo. Da França importamos o omelete, os ovos mexidos, os suflês, os doces com claras em neve. De Portugal, as fritadas, o pastel de natas, o quindim, os bolos, empadões…
Os alimentos de origem animal sempre estiveram associados à sustância e fartura na nossa história. Quando a carne vermelha dispara de preço, o poder de compra do país perde fôlego ou há uma crise econômica em curso, a exemplo da pandemia de covid-19, as famílias tendem a priorizar os ovos como substituição às carnes.
Esse alimento de preço acessível ainda costuma marcar presença com regularidade no cardápio das 178,5 mil escolas públicas brasileiras e é facilmente encontrado à venda em qualquer feira, supermercado ou bodega de esquina. Nas propriedades da agricultura familiar, que representam 77% dos estabelecimentos agrícolas do país, ou em terras de populações tradicionais, as roças costumam dividir espaço com a criação de galinha caipira para aumentar a segurança alimentar e possibilitar uma renda extra. Afinal, as aves são mais baratas de comprar e manter do que um boi ou um porco, crescem mais rápido e botam ovos mesmo sem cruzar.
Apesar da tradição ter perdido força, nas semanas da quaresma, do fim do carnaval à páscoa, católicos e outros fiés de vertentes cristãs também escolhem se abster de carnes como forma de sacrifício e passam a comprar mais ovos. Nesse sentido, já é espero que a demanda aumente nessa época do ano e os preços inflem.
Mas não dá pra ignorar o fator marqueteiro nessa conta. Acredito que ninguém vai cair pra trás ao descobrir de onde saíram as primeiras pesquisas financiadas pelo setor agropecuário destacando os benefícios do consumo de ovos, classificando os abençoados como superalimento, associando sua ingestão à emagrecimento e ganho de massa muscular por ser a proteína mais “eficiente”. Isso, do mesmo recinto que inventou o refrigerante e agora é governado por um bilionário fascista.
No país da Madonna, existe um centro de pesquisa inteiro dedicado aos ovos que oferece cursos gratuitos pra nutricionistas e participa ativamente do desenvolvimento de diretrizes alimentares governamentais, o Egg Nutrition Center. A Eggland’s Best, empresa de ovos fortificados, banca estudos há anos com o intuito de desmistificar a relação dos ovos com o colesterol. A American Egg Board também acabou de apoiar financeiramente uma pesquisa que concluiu que a ingestão de 12 ovos por semana ao longo de ano não aumenta o risco de doenças cardiovasculares.
Assim como no caso dos agrotóxicos, ultraprocessados e chás detox, o lobby estadunidense sempre desembarca em terras brasileiras. Outra estratégia marqueteira em voga por aqui diz respeito ao mercado dos ovos de galinhas supostamente felizes. Maior produtora de ovos da América do Sul e décima do mundo, a Mantiqueira Alimentos tem investido pesado no setor do bem. A empresa vende 4 bilhões de ovos por ano e, desde 2020, começou a testar uma linha de “galinhas livres”. Aliás, 50% da marca acaba de ser comprada pela gigante JBS.
A Mantiqueira-JBS destinou R$30 milhões à campanha publicitária Happy Eggs – é hora de ciscar, lançada no ano passado. As peças circulam pelos programas Caldeirão do Mion, Domingão do Huck, Masterchef Brasil, além de canais fechados como Sport TV e Home & Health. A chef Paola Carosella e a nutricionista Andréa Santa Rosa fecharam parcerias pras divulgar a linha de produtos, assim como Diego Ribas, ex-jogador do Flamengo que toca o podcast 10 & Faixa.
Uma reportagem investigativa do portal O Joio e o Trigo, porém, mostrou que diferentes empresas não têm oferecido condições aceitáveis pras suas galinhas e pros funcionários que lidam com elas, mesmo nesse modelo “feliz”. Embora tenham certificados de bem-estar animal, os casos averiguados pelo jornalistas reuniam uma série de violações trabalhistas e condições absurdas pros bichos.
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