Por Mayara Paixão, da Repórter Brasil.
Grécia Delgado Kama tinha menos de um ano de idade quando, sem que seus pais percebessem, caminhou com o andador até uma máquina de costura e colocou a mão no motor. No acidente, perdeu seu dedinho indicador. “Quando chegamos ao hospital, meus pais contam que lá havia outro filho de boliviano com o dedo amputado”, recorda a hoje agente social.
O acidente sofrido por Kama há quase 30 anos repete-se semanalmente no Brasil: entre 2012 e 2018, houve pelo menos 295 acidentes de trabalho com crianças e adolescentes em confecções de roupas no país, segundo dados do Ministério Público do Trabalho (MPT). O estado de São Paulo responde por 30% dos casos.
Além de subnotificados, os números relativos a acidentes de trabalho em confecções têxteis não revelam outro problema: os danos psicológicos sofridos pelas crianças que crescem nas oficinas onde moram e trabalham seus pais. São casos crescentes de crianças com atrasos no desenvolvimento psíquico e emocional causados pela situação precária em que vivem.
A questão preocupa os profissionais do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da Mooca, na zona leste de São Paulo, que há 15 anos recebe filhos de bolivianos com problemas de aprendizado, como dificuldade na fala e pouca interação. A cada semana, de duas a três crianças na faixa de 2 a 5 anos chegam na unidade com esse quadro, segundo a equipe multiprofissional do CAPS.
As crianças pequenas ficam horas no berço sozinhas, muitas vezes escutando apenas o som do rádio, da televisão ou das máquinas de costura, afirmam os profissionais do CAPS com base nos depoimentos das famílias atendidas. Com a alta demanda do trabalho e sob a pressão de patrões, as mães não têm livre acesso aos filhos e só podem ficar com eles para amamentar.
A pobre estimulação ambiental à qual estão sujeitas essas crianças é um dos fatores que leva ao quadro de atrasos no desenvolvimento. Em alguns dos casos, elas também apresentam sinais autísticos, como isolamento e repertório empobrecido. Sinais que podem se agravar se não forem acompanhados, segundo as terapeutas do CAPS.
Entre 2012 e 2018, houve pelo menos 295 acidentes de trabalho com crianças e adolescentes em confecções de roupas no país
“Nestes ambientes, os pais têm dificuldade de conseguir dar a atenção necessária para a criança desde que ela nasce. Já encontramos berços improvisados feitos de caixas de tecido ao lado das máquinas de costura, com a criança o dia inteiro submetida ao barulho das máquinas”, afirma a auditora-fiscal do trabalho Lívia Ferreira, que há cinco anos fiscaliza e acompanha de perto as condições das confecções em São Paulo.
“Os acidentes físicos são apenas um dos impactos que as crianças sofrem. Os impactos psicológicos e na saúde são muito maiores do que o risco de acidentes nas máquinas de costura”, completa Ferreira, coordenadora do combate ao trabalho escravo na Superintendência Regional do Trabalho em São Paulo (SRT/SP).
Ela conta que acompanhou um caso de três irmãos, entre 2 e 3 anos de idade, que cresceram em uma oficina de costura e foram internados com catapora. Uma das crianças não resistiu e morreu no hospital. “Acredito que esse não seja um caso isolado. Naquele ambiente, as doenças se disseminam muito mais facilmente”.
Acidentes e horas exaustivas
O tipo de acidente sofrido por Kama, hoje com 29 anos, segue comum, já que o cenário de violações de direitos no qual vivem essas famílias permanece. Na cidade de São Paulo, o setor têxtil é um dos campeões em trabalho escravo contemporâneo: 320 trabalhadores de confecções foram resgatados por auditores-fiscais entre agosto de 2010 e junho de 2019 na capital paulista, segundo a Secretaria de Inspeção do Trabalho, órgão ligado ao extinto Ministério do Trabalho (atual Ministério da Economia). São, em média, três resgates por mês de trabalhadores que são, em sua maioria, bolivianos.
Grandes marcas, que terceirizam confecções em São Paulo, já foram responsabilizadas pelos auditores-fiscais pelo crime, como Animale (2017), Zara (2011), M.Officer (2013) e Brooksfield Donna (2016). Quatro elementos podem definir escravidão contemporânea, de acordo com o artigo 149 do Código Penal: trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes ou jornada exaustiva.
“Um dos maiores choques para meus pais quando chegaram em São Paulo nos anos 1990 foram as horas exaustivas que o trabalho exigia. E, em uma dessas jornadas exageradas, aconteceu o acidente com o meu dedinho”, conta a brasileira, cujos traços andinos revelam sua ascendência boliviana. Ela conta ainda que o dono da oficina não permitia que a mãe saísse a todo o momento para olhar como ela estava – exatamente como o cotidiano atual das famílias, relatado pela equipe do CAPS.
“Um dos maiores choques para meus pais quando chegaram a São Paulo nos anos 1990 foram as horas exaustivas. E, em uma dessas jornadas exageradas, aconteceu o acidente com o meu dedinho”, afirma Grécia Delgado Kama
Pouco tempo depois do acidente com Kama, sua família conseguiu juntar dinheiro para abrir sua própria oficina e fugir das relações exploratórias de trabalho. Uma realidade que, como ela própria define, não é a da maioria das famílias bolivianas em São Paulo.
Hoje, ela trabalha como multiplicadora de base no Centro de Apoio e Pastoral do Migrante (CAMI), onde realiza visitas a oficinas para conscientizar as famílias sobre seus direitos e alertá-las sobre os riscos para crianças e adolescentes, que representam cerca de 11% dos 44 mil imigrantes bolivianos que estabeleceram residência no Brasil por pelo menos um ano entre 2010 e 2017, segundo o Relatório Anual de Imigração e Refúgio no Brasil.
Números subnotificados
Os números de acidentes infantis reportados na confecção de roupa são inferiores à realidade, segundo a chefe da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do MPT, a procuradora Lys Sobral Cardoso.
“A subnotificação é ainda mais grave nas oficinas de costura devido à questão migratória e à pouca documentação desses trabalhadores”, explica. O número de imigrantes com carteira assinada é baixo, segundo dados do Relatório Anual de Imigração e Refúgio no Brasil. Enquanto mais de 40 mil bolivianos ingressaram no país entre 2010 e 2017, apenas 16 mil carteiras de trabalho foram emitidas para eles no mesmo período. Em 2017, somente 5.479 trabalhavam com carteira assinada — sendo as mulheres bolivianas 35% desse contingente.
A auditora-fiscal do trabalho Lívia Ferreira avalia que o cenário de violações trabalhistas na cadeia produtiva das confecções no município de São Paulo mudou ao longo dos dez anos do Pacto Contra a Precarização e pelo Emprego e Trabalho Decentes. Durante a última década, o problema se tornou mais discutido e alvo de atenção pelas empresas.
No entanto, Ferreira destaca que algumas das medidas tomadas maquiam o problema ao invés de resolvê-lo. Ela se refere a casos de auditorias privadas em empresas que verificam carteira de trabalho e recolhimento do FGTS, mas deixam passar outros requisitos igualmente importantes.
“Somente a carteira assinada não garante que não teremos violações. Sabemos que, por debaixo do vínculo de trabalho, pode haver desconto do FGTS do salário do trabalhador e mesmo a servidão por dívidas”, explica.