Excertos das declarações históricas que Bradley Manning prestou em tribunal a 28 de Fevereiro de 2013, onde explica as razões porque divulgou documentos através da Organização WikiLeaks. O texto integral das declarações, com 35 páginas, encontra-se aqui.
Introdução
Escrevi este artigo na prisão, portanto… Os factos seguintes são fornecidos em apoio do inquérito provisório para o meu tribunal marcial, Estados Unidos vs, Pcf. Bradley E. Manning.
Sou um recruta de 25 anos no exército dos Estados Unidos actualmente a prestar serviço na Headquarters and Headquarters Company, HHC, US Army Garrison—USAG, Joint Base Myer, Henderson Hall, Fort Meyer, Virginia. Antes desta comissão, prestava serviço na HHC, Equipa da 2ª Brigada de Combate, 10ª Divisão da Montanha (infantaria ligeira) em Fort Drum, Nova Iorque. A minha especialidade militar principal é ’35 fox-trot’: analista de informações [1] . Entrei ao serviço activo em 2 de Outubro de 2007. Alistei-me na esperança de obter experiência do mundo real e obter benefícios ao abrigo da Lei G.I. [2] para prosseguir os meus estudos.
Como Bradley travou conhecimento com a WikiLeaks
A primeira razão para seguir a WLO [Organização da WikiLeaks] no IRC [3] foi a curiosidade, especialmente em relação a como e porquê eles obtinham as mensagens SMS acima referidas. Pensei que as informações reunidas na WLO me ajudariam nesse objectivo. Inicialmente, apenas observei as conversas no IRC. Queria saber como estava estruturada a organização e como é que obtinha os seus dados. As conversas que observei eram normalmente de natureza técnica mas por vezes caíam num debate animado sobre questões em que as pessoas eram muito sensíveis.
Durante algum tempo fui-me envolvendo mais nesses debates em especial quando as conversas se viravam para acontecimentos geopolíticos e tópicos de tecnologia da informação, como a ligação em rede e os métodos de cifragem. Com base nessas observações, descreveria a organização WLO [discussões?] como quase de natureza académica.
Como escolher um veículo de comunicação social
Em casa de uma tia minha interroguei-me sobre o que devia fazer com as SigActs [Actividades Significativas], em especial se devia retê-las ou revelá-las a uma agência noticiosa. Nessa altura decidi que fazia sentido revelar as tabelas SigActs a um jornal americano. Primeiro liguei para o meu jornal local, The Washington Post, , e falei com uma mulher que disse ser jornalista. Perguntei-lhe se o Washington Post estaria interessado em receber informações que teriam um valor enorme para o público americano. Embora tivéssemos falado durante cinco minutos sobre a natureza geral do que eu possuía, acho que ela não me levou a sério. Informou-me que o Washington Post poderia estar interessado, mas que essas decisões só eram tomadas depois de verem as informações a que eu me referia e depois da apreciação pelos editores seniores.
Então decidi contactar o maior e mais popular jornal, The New York Times. Liguei para o número do editor público na website do New York Times . O telefone tocou e fui atendido por uma máquina. Percorri o menu à procura de novas pistas. Fui encaminhado para um gravador. Deixei uma mensagem declarando que tinha acesso a informações sobre o Iraque e o Afeganistão que considerava muito importantes. No entanto, apesar de deixar o número do meu telefone Skype e o meu endereço pessoal de email, nunca recebi resposta do The New York Times.
Também pensei por momentos em passar pelos escritórios do Politico, um blogue de comentários políticos, mas as condições do tempo durante a minha folga impediram os meus esforços para viajar. Depois do fracasso desses esforços acabei por decidir apresentar os materiais à WLO [Organização WikiLeaks]. Não tinha a certeza se a WLO iria mesmo publicar as tabelas SigActs. Receava que elas não servissem para chamar a atenção dos meios de comunicação americanos. No entanto, baseando-me no que tinha lido sobre a WLO durante a minha pesquisa acima referida, pareceu-me ser o melhor meio ao meu alcance para divulgar essas informações a todo o mundo.
Registos sobre a Guerra do Iraque e do Afeganistão
Enquanto analista, considerei as SigActs dados históricos. Creio que esta opinião é partilhada por todos os analistas de todas as origens. As SigActs dão uma primeira impressão de um acontecimento específico ou isolado. Esse acontecimento pode ser um ataque com um engenho explosivo improvisado, um confronto com uma força hostil com armas de fogo ligeiras, ou qualquer outro incidente que uma unidade específica tenha documentado e registado em tempo real. Na minha perspectiva, as informações contidas numa única SigAct ou num grupo de SigActs não são muito sensíveis. Os acontecimentos encapsulados na maior parte das SigActs envolvem confrontos com o inimigo ou baixas. A maior parte destas informações são noticiadas publicamente pelo gabinete de relações públicas), pelos meios de comunicação com ele ligados, ou pelos meios de comunicação da nação hospedeira.
Para mim, as SigActs representavam a realidade no terreno dos conflitos no Iraque e no Afeganistão. Sentia que estávamos a pôr em risco muita coisa por causa de pessoas que não pareciam dispostas a cooperar connosco, levando à frustração e [raiva, ódio?] de ambos os lados.
Comecei a sentir-me deprimido com a situação em que nos encontrávamos cada vez mais atolados. As SigActs documentavam isso com grande pormenor e forneciam um contexto para o que estávamos a ver no terreno. Ao tentar efectuar operações de contra-terrorismo e de contra-rebelião, ficámos obcecados em capturar e matar alvos humanos e suspeitar e evitar a cooperação com os nossos parceiros da Nação Hospedeira, ignorando os efeitos de segunda e terceira ordem para cumprir metas e missões a curto prazo.
Achei que, se o público em geral, especialmente o público americano, tivesse acesso às informações contidas nas tabelas CIDNE-I e CIDNE-A [4] , isso podia provocar um debate interno sobre o papel das forças armadas e sobre a nossa politica externa em geral no que se refere ao Iraque e ao Afeganistão.
Também achei que a análise pormenorizada dos dados durante um longo período de tempo pelos diferentes sectores da sociedade poderia levar a sociedade a reavaliar a necessidade ou mesmo o desejo de se envolver em operações de contra-terrorismo e contra-rebelião que ignoram a dinâmica complexa das pessoas que vivem diariamente no meio afectado.
Anexei um texto que redigira enquanto me preparava para fornecer os documentos ao Washington Post. Forneci umas linhas de orientação simples que diziam, “Já estão limpos de qualquer fonte identificadora das informações. Pode ser necessário reter estas informações – talvez 90 ou 100 dias – para decidir como divulgar melhor uma tão grande quantidade de dados e proteger as fontes. Este é provavelmente um dos documentos mais significativos da nossa época que elimina o nevoeiro da guerra e revela a verdadeira natureza da guerra assimétrica do século vinte e um. Bom dia”.
Depois de enviar isto, deixei o cartão de memória no estojo da máquina fotográfica em casa da minha tia para a eventualidade de voltar a precisar dele no futuro. Regressei da minha folga a 11 de Fevereiro de 2010. Embora as informações ainda não tivessem sido publicadas pela WLO, tenho um sentimento de alívio por ela as possuir. Sinto que cumpri uma coisa que me faz ter a consciência tranquila quanto ao que vi e que li e que soube que estava a acontecer no Iraque e no Afeganistão todos os dias.
Crimes colaterais
O vídeo apresentava vários indivíduos contratados por uma equipa de armas aéreas . A princípio não achei que o vídeo fosse muito especial, porque já havia observado inúmeros outros vídeos tipo “guerra porno” descrevendo combates. Porém, a gravação e os comentários áudio da equipa de armas aéreas e o segundo confronto no vídeo com uma camioneta de caixa aberta Bongo desarmada perturbaram-me. Quando Showman e outros analistas e oficiais no T-SCIF [5] começaram a comentar o vídeo e a discutir se a tripulação violou as regras de batalha no segundo confronto, afastei-me desse debate e decidi fazer uma investigação sobre o incidente. Queria saber o que acontecera e se havia algum antecedente para os acontecimentos do dia em que ocorreu o incidente, a 12 de Julho de 2007.
Usando o Google, procurei o incidente pela data e pela sua localização geral. Encontrei vários relatos novos envolvendo dois empregados da Reuters que tinham sido mortos durante o confronto com a equipa de armas aéreas. Outra notícia explicava como a Reuters havia pedido uma cópia do vídeo ao abrigo da Lei da Liberdade de Informação. A Reuters queria ver o vídeo a fim de perceber o que acontecera e melhorar as suas práticas de segurança em zonas de combate. Citava-se um porta-voz da Reuters que dizia que o vídeo podia ajudar a impedir a repetição da tragédia e achava que era uma necessidade compulsiva a divulgação imediata do vídeo.
Apesar da apresentação do pedido ao abrigo da Lei da Liberdade de Informação, a notícia explicava que o CENTCOM [Comando Central] respondera à Reuters, afirmando que não podiam estabelecer um prazo para apreciação do pedido e que o vídeo podia já não existir. Outra notícia que encontrei, escrita um ano depois, dizia que apesar de a Reuters continuar a insistir no pedido, ainda não tinha recebido uma resposta formal ou qualquer determinação escrita de acordo com a Lei da Liberdade de Informação.
O facto de nem o CENTCOM nem as Forças Multinacionais do Iraque terem libertado voluntariamente o vídeo ainda me preocupou mais. Fiquei com a certeza de que o incidente ocorrera porque a equipa de armas aéreas identificara erradamente os funcionários da Reuters como uma ameaça potencial e que as pessoas na camioneta Bongo estavam apenas a tentar socorrer os feridos. As pessoas na camioneta não eram nenhuma ameaça mas apenas “bons samaritanos”. Mas, para mim, o aspecto mais alarmante do vídeo era a sede de sangue aparentemente deliciada que a equipa de armas aéreas parecia ter.
Desumanizaram os indivíduos que haviam atacado e pareciam não dar valor à vida humana, e referiam-se a eles como, cito, “canalhas mortos”, e felicitavam-se pela sua capacidade de matar em grande quantidade. A certa altura do vídeo há um indivíduo no chão a tentar arrastar-se para se pôr a salvo. O indivíduo está gravemente ferido. Em vez de chamar ajuda médica para o local, um dos membros da equipa de armas aéreas pede verbalmente que a pessoa ferida agarre numa arma para poder ter razão para agir. Para mim, isto é o mesmo que uma criança torturar formigas com uma lente de aumentar.
Embora entristecido pela falta de preocupação dos membros da equipa das armas aéreas quanto à vida humana, fiquei perturbado com a descoberta de crianças feridas no local. No vídeo, podemos ver uma camioneta Bongo a chegar para ajudar o indivíduo ferido. Em resposta os membros da equipa de armas aéreas assumem que os indivíduos são uma ameaça. Pedem várias vezes autorização para fazer fogo sobre a camioneta Bongo, e quando a obtêm, atiram sobre o veículo pelo menos seis vezes.
Pouco depois do segundo ataque, chega ao local uma unidade de infantaria mecanizada. Em breve os membros da equipa de armas aéreas ficam a saber que havia crianças na carrinha. Apesar dos ferimentos, a equipa não mostra qualquer remorso. Pelo contrário, minimizam o significado das suas acções, dizendo, cito, “Bom, a culpa é deles por trazerem crianças para uma batalha”.
Os membros da equipa de armas aéreas, segundo parece, não sentem qualquer simpatia pelas crianças ou pelos pais. Posteriormente, de modo especialmente perturbante, os membros da equipa de armas aéreas vocalizam a sua satisfação ao ver um dos veículos passar por cima de um dos corpos.
Depois da divulgação, fiquei preocupado com o impacto do vídeo e como seria recebido pelo público em geral. Tinha a esperança de que o público ficasse tão alarmado como eu quanto ao comportamento dos membros da equipa das armas aéreas. Queria que o público americano soubesse que nem toda a gente no Iraque e no Afeganistão era um alvo que tinha que ser neutralizado mas, pelo contrário, pessoas que lutavam para viver no ambiente de panela de pressão a que chamamos uma guerra assimétrica. Depois da divulgação fui encorajado pela reacção dos meios de comunicação e do público em geral que observaram o vídeo da equipa das armas aéreas. Conforme eu esperava, os outros ficaram tão perturbados – ou ainda mais – do que eu com o que viram.
15 iraquianos detidos
A 27 de Fevereiro de 2010, foi recebido um relatório de um batalhão subordinado. O relatório descrevia um incidente em que a Polícia Federal detivera 15 indivíduos por imprimirem literatura anti-iraquiana. A 2 de Março de 2010, recebi instruções de um oficial da secção S3 na 2ª Brigada da Equipa de Combate, do Centro de Operações Tácticas da Divisão de Montanha [infantaria ligeira], para investigar a questão e descobrir quem eram, cito, os “rapazes maus”, e até que ponto esse incidente era significativo para a Polícia Federal.
No decurso da minha investigação descobri que nenhum dos indivíduos tinha ligações anteriores com acções anti-iraquianas nem com grupos suspeitos de milícias terroristas. Horas depois, recebi diversas fotos do local do batalhão subordinado. Foram enviadas acidentalmente para uma oficial duma equipa diferente na secção S2, e ela reencaminhou-as para mim.
Essas fotos incluíam o retrato dos indivíduos, [paletes?] de papel sem impressão e as cópias apreendidas dos documentos impressos finais, e uma foto de alta resolução do material impresso. Imprimi uma cópia da foto de alta resolução. Laminei-a para facilitar a utilização e a transferência. Depois fui ao Centro de Operações Tácticas e entreguei a cópia laminada à nossa intérprete de Categoria 2.
Ela analisou as informações e cerca de meia hora depois entregou-me uma tradução por alto para inglês na secção S2. Li a tradução e falei com ela, pedindo-lhe para ela a situar no contexto. Ela disse que lhe tinha sido fácil uma tradução integral uma vez que eu havia ampliado e laminado a fotografia. Disse-me que a natureza geral do documento era inócua. O documento, como eu também já me apercebera, era apenas uma crítica académica ao então primeiro-ministro iraquiano Nouri-al-Maliki.
Dava pormenores sobre a corrupção no gabinete do governo de al-Maliki e o impacto financeiro dessa corrupção no povo iraquiano. Depois de descobrir esta discrepância entre o relatório da Polícia Federal e a tradução da intérprete, enviei essa descoberta para a chefia do OIC e para o NCOIC de batalha. A chefia do OIC e o capitão de batalha [não disponível] informaram-me que já não queriam informações dessas nem precisavam delas. Disseram-me, cito, para “desligar” e para me limitar a ajudá-los e à Polícia Federal a descobrir onde podia haver mais dessas tipografias, cito, de “literatura anti-iraquiana”.
Não pude acreditar no que estava a ouvir, regressei ao T-SCIF e queixei-me aos outros analistas da minha secção do NCOIC quanto ao que tinha acontecido. Alguns mostraram-se compreensivos, mas ninguém quis fazer nada quanto a isso.
Sou o tipo de pessoa que gosta de saber como funcionam as coisas e, enquanto analista, isso significa que quero sempre descobrir a verdade. Ao contrário de outros analistas na minha secção ou de outras secções na Equipa da 2ª Brigada de Combate, não me contento em arranhar a superfície e produzir análises enlatadas ou “rotineiras”. Queria saber porque é que uma coisa era o que era, e o que é que podíamos fazer para corrigir ou minimizar a situação.
Sabia que, se continuasse a ajudar a Polícia Federal de Bagdad a identificar os opositores políticos do primeiro-ministro al-Maliki, essas pessoas seriam presas e entregues à Unidade Especial da Polícia Federal de Bagdad e muito provavelmente torturadas e desaparecidas por muito tempo – ou mesmo para sempre.
Em vez de ajudar a Unidade Especial da Polícia Federal de Bagdad, decidi agarrar nas informações e denunciá-las à WikiLeaks, antes das eleições seguintes de 7 de Março de 2010, na esperança de que pudessem aparecer rapidamente na imprensa e impedissem essa unidade da Polícia Federal de continuar a abafar os opositores políticos de al-Maliki.
Ficheiros Guantanamo
Comecei a peneirar as informações do… SOUTHCOM [Comando do Sul dos Estados Unidos] e da Força Operacional Conjunta de Guantanamo, Cuba (JTF-GTMO). Ocorreu-me essa ideia, embora não fosse provável… que os indivíduos detidos pela Polícia Federal pudessem ficar livres da guarda dos EUA, para acabarem por ficar à guarda da Força Operacional Conjunta de Guantanamo.
Enquanto digeria as informações sobre a Força Operacional Conjunta de Guantanamo, depressa encontrei os Resumos de Avaliação dos Detidos (RADs). Já anteriormente, em 2009, havia deparado com esses documentos mas não lhes dera muita atenção. Mas desta vez estava mais curioso nesta investigação e voltei a encontrá-los.
Os RADs estavam escritos em formato de memorando standard DoD [Departamento de Defesa] e dirigidos ao comandante do SOUTHCOM dos EUA. Cada memorando dava informações básicas sobre os antecedentes dos detidos à guarda da Força Operacional Conjunta de Guantanamo. Sempre me interessei pela questão da eficácia moral das nossas acções relacionadas com a Força Operacional Conjunta de Guantanamo. Por um lado, sempre compreendi a necessidade de deter e interrogar indivíduos que podem desejar prejudicar os Estados Unidos e os nossos aliados, mas, quanto mais me aprofundava neste tópico, mais me parecia que nos encontrávamos a deter indefinidamente um número crescente de indivíduos que julgávamos ou sabíamos estar inocentes, soldados rasos que não tinham informações úteis e teriam sido libertados se fossem detidos no teatro.
Também me lembrei que, no início de 2009, o então recém-eleito presidente, Barack Obama, afirmou que iria fechar a Força Operacional Conjunta de Guantanamo e que as suas instalações comprometiam a nossa situação e diminuíam, cito, a nossa “autoridade moral”. Depois de me familiarizar com os RADs, concordei com ele.
Ao ler os Resumos de Avaliação dos Detidos, reparei que não eram produtos analíticos. Em vez disso, continham resumos de versões [não disponíveis] de relatórios de informações intercalares que eram antigas ou não confidenciais. Nenhum dos RADs continha nomes de fontes nem citações de relatórios de interrogatórios tácticos. Como os RADs estavam a ser enviados para o comandante do SOUTHCOM dos EUA, deduzi que se destinavam a fornecer informações genéricas de antecedentes sobre cada detido – e não uma avaliação pormenorizada.
Para além do modo [em que] os RADs estavam escritos, reconheci que tinham pelo menos vários anos, porque falavam de detidos já libertados da Força Operacional Conjunta de Guantanamo. Com base nisto, concluí que os RADs não eram muito importantes quer como informações quer do ponto de vista da segurança nacional. A 7 de Março de 2010, durante a minha conversa ‘jabber’ [6] com Nathaniel, perguntei-lhe se ele achava que os RADs podiam ser úteis a alguém. Nathaniel deu a entender que, embora não acreditasse que eles tivessem qualquer significado político, acreditava que podiam ser usados para serem inseridos no relato histórico geral do que ocorreu na Força Operacional Conjunta de Guantanamo. Também achava que os RADs podiam ser úteis para conselho legal dos que continuam detidos em Gitmo [Base Naval da Baía de Guantanamo].
Telegramas diplomáticos
Tomei conhecimento pela primeira vez dos telegramas diplomáticos durante o meu período de treino no AIT. Posteriormente ouvi o capitão Steven Lim, da Equipa S2 da Brigada de Combate 2/10, falar do portal netcêntrico de Diplomacia do Departamento de Estado (DoD). Em finais de Dezembro de 2009, o capitão Lim enviou um email a nível da secção aos outros analistas e oficiais, que continha uma ligação SIPRnet para o portal, juntamente com as instruções para procurar os telegramas nele contidos e para os incorporarmos no produto do nosso trabalho.
Pouco depois disso também reparei que os telegramas diplomáticos estavam a ser referidos em produtos das Forças dos EUA no Iraque ou EU-I. Com base na directiva do capitão Lim para nos familiarizarmos com os seus conteúdos, li praticamente todos os telegramas publicados relacionados com o Iraque.
Também comecei a percorrer a base de dados e a ler ao acaso outros telegramas que despertaram a minha curiosidade. Foi por essa altura, em princípios ou meados de Janeiro de 2010, que comecei a pesquisar a base de dados à procura de informações sobre a Islândia. Interessei-me pela Islândia devido a conversas IRC que observei no canal da WLO discutindo uma questão chamada Icesave. Nessa altura, não estava muito familiarizado com o tópico, mas pareceu-me ser uma questão importante para todos os que participavam na conversa. Foi quando decidi investigar e efectuar algumas pesquisas sobre a Islândia para encontrar mais coisas.
Na altura, não encontrei nada que discutisse a questão Icesave quer directa quer indirectamente. Depois efectuei uma pesquisa a fontes abertas para Icesave. Soube assim que a Islândia estava envolvida numa disputa com o Reino Unido e com a Holanda relacionada com o colapso financeiro de um ou mais dos bancos da Islândia. Segundo as notícias de fonte aberta, grande parte da controvérsia pública envolvia o uso de legislação anti-terrorista do Reino Unido contra a Islândia a fim de congelar o acesso islandês ao pagamento das garantias para depositantes do Reino Unido que tinham perdido o seu dinheiro.
O telegrama, publicado a 13 de Janeiro de 2010, tinha mais de duas páginas de comprimento. Li o telegrama e rapidamente concluí que, essencialmente, a Islândia estava a ser violentada diplomaticamente pelas duas maiores potências europeias. Pareceu-me que a Islândia estava sem opções viáveis e se virava para os EUA para ajuda. Apesar deste pedido de ajuda, segundo parecia, nós não íamos fazer nada.
Na minha perspectiva pareceu-me que não nos íamos envolver, devido à falta de benefícios geopolíticos a longo prazo que o justificasse. Depois de digerir o conteúdo de ’10 Reiquiavik 13′, fiquei na dúvida se aquilo era uma coisa que devia enviar para a WLO. Nessa altura a WLO não tinha publicado nem acusado a recepção das tabelas CIDNE-I ou CIDNE-A. Apesar de não saber se as SigActs eram uma prioridade para a WLO, decidi que o telegrama era uma coisa que podia ser importante. Senti que podia corrigir um erro se este documento fosse publicado.
Quanto mais lia os telegramas, mais depressa chegava à conclusão de que era o tipo de informações que se deviam tornar públicas. Uma vez li uma citação [não disponível] sobre a diplomacia aberta, escrita depois da Primeira Guerra Mundial [sobre como] o mundo seria um sítio melhor se os estados evitassem fazer pactos e acordos secretos uns com os outros ou uns contra os outros. Achei que estes telegramas eram um exemplo acabado da necessidade de uma diplomacia mais aberta.
Dada toda a informação DoS que li, e dado o facto de a maior parte destes telegramas não ser confidencial, e de todos os telegramas terem uma legenda SIPDIS [7] , considerei que a divulgação pública desses telegramas não prejudicaria os Estados Unidos. Tinha a consciência de que os telegramas podiam ser embaraçosos visto que representam opiniões e declarações muito honestas nas costas de outras nações e organizações. Achei que denunciar estas informações podia aborrecer alguém no interior do DoS, e outras entidades governamentais.
Massacre de Garani
No final de Março de 2010, descobri uma lista do CENTCOM dos EUA sobre um ataque aéreo no Afeganistão em 2009. Estava a pesquisar o CENTCOM para informações que pudesse usar enquanto analista. Isso é uma coisa que eu e outros oficiais fazíamos frequentemente. Quando analisei os documentos, recordei-me do incidente e do que tinha acontecido. O ataque aéreo ocorreu na aldeia Garani na província Farah, a noroeste do Afeganistão. Foi objecto de uma cobertura da imprensa a nível mundial na altura em que foi noticiado que tinham sido mortos acidentalmente durante o ataque aéreo mais de 100-150 civis afegãos, na maioria mulheres e crianças.
Depois de percorrer o relatório e os anexos, comecei a analisar o incidente como semelhante aos ataques da equipa de armas aéreas em 12 de Julho de 2007 no Iraque, embora este incidente tenha sido nitidamente diferente por ter envolvido um número significativamente maior de indivíduos, mais aviões e munições muito mais pesadas. As conclusões do relatório eram mais perturbadoras do que as do incidente de Julho de 2007. Não vi nada no relatório 15-6 ou nos seus anexos que prestasse informações delicadas. Pelo contrário, a investigação e as suas conclusões ajudam a explicar como ocorreu o incidente e o que os envolvidos deviam ter feito para evitar que voltasse a ocorrer um incidente como aquele.
NT
[1] Um ’35 Foxtrot’ é um analista de informações nas forças armadas dos Estados Unidos. Os analistas de informações usam observações humanas, aparelhos electrónicos e fotografias aéreas para determinar conclusões específicas para informações.
[2] A Lei de Reajustamento de Veteranos de 1944, conhecida informalmente pela Lei G.I., foi uma lei que proporcionava um vasto conjunto de benefícios aos veteranos que regressavam da II Guerra Mundial (normalmente referidos por G.I.’s). Esses benefícios incluíam hipotecas e empréstimos a juros baixos, para iniciar um negócio ou uma exploração agrícola, pagamentos em dinheiro para propinas e despesas de sobrevivência para a frequência de escolas, faculdades ou para educação vocacional, assim como um ano de subsídio de desemprego.
[3] IRC ( Internet Relay Chat ) – protocolo para mensagens interactivas de texto na Internet ou conferências sincronizadas. É destinada principalmente para comunicação de grupo em fóruns de discussão, mas também permite comunicação individual via mensagens privadas, assim como transferência de dados, incluindo partilha de ficheiros.
[4] CIDNE ( Combined Information Data Network Exchange ) – sistema de computador usado pelas forças armadas dos EUA, usado para coligir informações tácticas a partir das tropas.
[5] TSCIF ( Tactical sensitive compartmented information facility ) – Instalações de informações tácticas sensíveis compartimentadas
[6] Jabber,org – Serviço de mensagens público, livre e instantâneo.
[7] SIPDIS – termo aplicado para documentos a DIStribuir na SIPRNet, a Rede de Protocolo Secreto na Internet.
Ver também:
http://wikileaks.org/
http://www.bradleymanning.org/
[*] Bradley Edward Manning é um soldado do exército dos EUA que foi preso em Maio de 2010 no Iraque, por suspeita de ter transmitido material confidencial ao website WikiLeaks. Foi acusado de uma série de crimes, incluindo a comunicação de informações de defesa nacional a uma fonte não autorizada e de ajudar o inimigo, um crime capital, embora os acusadores tenham dito que não pediam a pena de morte.
O original encontra-se em www.bradleymanning.org/… . Tradução de Margarida Ferreira.
Esta declaração encontra-se em http://resistir.info/ .