Decisões estranhas alavancam o novo partido de Bolsonaro

Foto: Reprodução do Facebook

Por André Barrocal.

Jair Bolsonaro corre para tirar do papel até março seu novo partido, o Aliança pelo Brasil, a tempo de a legenda disputar a eleição municipal de outubro de 2020. Uma alternativa para entregar as 492 mil assinaturas exigidas pelo Tribunal Superior Eleitoral são os certificados digitais, uma espécie de RG eletrônico que a corte decidiu, no início de dezembro, ser válida para criar legendas. Uma das duas empresas campeãs de venda de certificados resolveu dar de graça 1 milhão deles na Black Friday de 29 de novembro. Seu dono foi nomeado por um decreto de agosto de Bolsonaro para o comitê gestor da ICP-Brasil, sistema público-privado responsável pelos 8 milhões de RGs virtuais de pessoas físicas e jurídicas hoje existentes. Esse comitê acaba de aprovar um relaxamento das condições de emissão de certificados, com apoio de uma entidade classista nascida recentemente por iniciativa do empresário do decreto. São fatos interligados? Ou mera coincidência?

Há gente cismada no mercado. Ao distribuir de graça 1 milhão de certificados, a Soluti, a empresa em questão, abriu mão de cobrar, no mínimo, 50 milhões de reais, conforme valores unitários que ela própria informa. Sua recompensa seria a facilitação, por obra do governo, da emissão de RGs virtuais? Uma facilitação “ilegal” e com potencial para fraudes, na visão de entidades do ramo.

Essa facilitação foi aprovada na terça-feira 3 pelo comitê gestor da ICP-Brasil. A ideia partiu do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI), órgão da Casa Civil da Presidência. Não é mais necessário que uma cidadão vá fisicamente entregar seus documentos e provar que é de carne e osso, se quiser renovar um certificado digital. Poderá mostrar-se por videoconferência, por exemplo. É uma tentativa, segundo o ITI, de “modernizar” e aumentar a “agilidade” na emissão de certificados. Três entidades privadas votaram contra a medida. Curioso: empresas costumam querer menos controle, não? O medo dos opositores é o sistema de RG digital, que para existir depende da confiança geral, ficar com a credibilidade em xeque e um dia desaparecer como negócio. Um receio não demonstrado pela ATID, a Associação Brasileira de Tecnologia e Identificação Digital, aquela entidade recém-criada graças ao presidente da Soluti, Vinicius Vieira de Souza.

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Os votos contrários foram duros ao comentar a facilitação aprovada. A medida “favorece o aumento da criminalidade” e as fraudes, disse Egon Luís Schaden Júnior, presidente da ANCD. Essa associação congrega as empresas que emitem o certificado, as autoridades certificadoras, as ACs. Debaixo delas há outro segmento, as autoridades de registro, as ARs, encarregadas de receber a documentação do interessado no RG digital, constatar que ele existe, cadastrá-lo e mandar o material a uma AC. Para Edmar da Silva Araújo, presidente da AARB, a associação de ARs, dispensar o requerente de comparecer na hora do cadastro equivale a renovar carteira de habilitação sem o motorista ir ao Detran. Desde 2012, afirmou, o INSS exige que o aposentado vá uma vez por ano à Caixa Econômica Federal, como prova de vida.

Leidi Priscila Figueiredo, conselheira da Câmara Brasileira de Comércio Eletrônico, a Câmara-e.net, apontou “flagrante ilegalidade” na proposta, dado o conflito com a lei que criou a ICP-Brasil e o ITI, a Medida Provisória nº 2200, de 2001. O artigo 7o da MP é explícito sobre a presença física do requerente do certificado como condição: “Às AR, entidades operacionalmente vinculadas a determinada AC, compete identificar e cadastrar usuários na presença destes”. A violação de uma lei por uma resolução de um órgão público-privado, como é a ICP-Brasil, foi o argumento usado pelo deputado por Goiás Lucas Vergílio, do Solidariedade, no decreto legislativo que apresentou para anular a decisão do comitê gestor. Vergílio é corretor de seguros, categoria em que os certificados digitais estão disseminados como forma de atestar confiabilidade. Seu pai, Armando Vergílio, dirigiu a federação dos corretores e foi do comitê gestor da ICP-Brasil.

A Ancert, outra associação de autoridades de registro, não integra o comitê gestor, mas, se pudesse, teria votado contra desobrigar o cidadão de ir fisicamente pedir a renovação de um certificado. “É uma medida no mínimo polêmica, pode fragilizar todo o sistema”, diz Ruy Coppola Jr., advogado da entidade. Para ele, essa medida e outra aprovada no mesmo dia 3 de dezembro, a dispensa de uma empresa apresentar o contrato social atualizado ao solicitar um certificado, ameaçam a confiabilidade do sistema ICP-Brasil do mesmo modo que diversas fraudes denunciadas pela Ancert ao Ministério Público Federal em maio de 2017.

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A associação apontava duas práticas irregulares naquela época, tempos de governo Michel Temer. Uma era a “proliferação indiscriminada” de “filiais irregulares de ARs”, os “pontos de atendimento”, os quais teriam como objetivo “vender mais certificados, a um custo muito baixo, quase inexistente, por meio de empresas sobrepostas”. A outra prática foi descrita como “mercantilização” do sistema ICP-Brasil, com a disseminação de “franquias” de ARs. Com os pontos de atendimento e as franquias, dizia a denúncia, as autoridades de registro podiam trabalhar com estagiários e com empregados não credenciados no ITI, algo proibido pelo Instituto, e providenciar a emissão de certificados digitais para quem não portasse seus documentos originais, por exemplo. Das cerca de 30 fraudes reunidas pela Ancert, cinco mencionavam a Soluti.

Ao longo da investigação, a procuradoria jurídica do ITI disse em um parecer que os pontos de atendimento não necessariamente eram irregulares, dependiam de análise caso a caso. Mas, quanto às franquias, não tinha dúvidas: “Prática ilegal e irregular”, para a qual cabia punição administrativa e judicial. A investigação foi arquivada pelo Ministério Público em janeiro de 2018, em virtude do endurecimento de regras pelo ITI e da assinatura de termos de ajustamento de conduta, os TACs, pelo Instituto com algumas empresas, a Soluti entre elas. O autor do parecer da procuradoria do ITI, Alexandre Munia Machado, segue no cargo e opinou a favor da recém-aprovada dispensa da presença física na renovação de certificados digitais. “O ITI tem uma atuação estranha, e essa atual gestão é a mais estranha de todas”, afirma um participante do sistema ICP-Brasil.

O presidente do Instituto, Marcelo Buz, salário de 17 mil por mês, foi escolhido pelo chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni. Buz é do Rio Grande do Sul, como o ministro. É vereador desde 2017 em São Leopoldo pelo DEM, o partido de Lorenzoni. Este deu dinheiro para a campanha de Buz a deputado estadual no ano passado, 21 mil reais, 45% da arrecadação total do candidato. Há um terceiro gaúcho na história. A decisão da Justiça Eleitoral de aceitar assinatura digital em pedido de criação de partido nasceu de uma consulta feita no fim de 2018 pelo deputado federal Jerônimo Goergen, do PP do Rio Grande do Sul. Goergen foi o relator da Medida Provisória da “liberdade econômica”, assinada em abril por Bolsonaro. Ao dar a feição final ao texto, o deputado inseriu dispositivos de estímulo ao uso dos certificados digitais no País.

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A disseminação dos RGs digitais embute riscos que podem ser vistos em uma operação de outubro de 2016 da Polícia Federal, batizada de Demara. A PF desbaratou em Pernambuco uma quadrilha expert em sacar indevidamente dinheiro do FGTS. A turma falsificava os documentos pessoais dos sócios de uma empresa e o contrato social dela, daí conseguia arranjar um certificado digital com o nome dessa firma. De posse dele, a quadrilha cadastrava a empresa no sistema do FGTS da Caixa e informava uma demissão fajuta. O trabalhador supostamente demitido existia mesmo e era aliciado para ir até o banco pegar seu imerecido fundo de garantia, em troca de uma parte da grana. Os golpistas tinham planos de obter 3 milhões de reais quando foram presos.

Além dos TACs e de regras mais duras de emissão de certificado digital, outra consequência da investigação do MPF foi a criação de uma central de denúncias. Esta é composta de gente do setor privado, filtra o material recebido e o encaminha ao ITI. Uma denúncia grave que chegou este ano à central, segundo CartaCapital apurou, envolve a Soluti. A empresa emitiria certificados para firmas com problemas de CNPJ na Receita Federal (CNPJs baixados, suspensos etc.). Por uma falha do site da Receita, tal certificado dava acesso à central de atendimento virtual do Fisco, o e-cac. A denúncia não foi adiante. Há quem diga que a central tornou-se inútil e que o ITI não faz questão de fiscalizar. “Todas as denúncias efetivadas ao ITI são analisadas. Quando possuem provas materializadas, elas são encaminhadas para as devidas providências. Quando não possuem, não cabe ao ITI instaurar nenhuma ação com base em fofocas ou achologismo”, diz Marcelo Buz.

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E as assinaturas eletrônicas promocionais da Soluti vão ser oferecidas ao bolsonarismo para alavancar a criação do partido Aliança pelo Brasil? “Não. A ação da Black Friday foi criada com o objetivo único e exclusivo de fazer um teste de vendas”, afirma Vinicius Souza, o presidente da empresa. A ver.

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