A recente decisão do Supremo Tribunal Federal – STF de considerar constitucional o reembolso dos planos de saúde ao Sistema Único de Saúde – SUS pelos custos com o atendimento de pacientes conveniados “foi uma decisão histórica”, avalia Ligia Bahia, médica sanitarista, na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. Atualmente, a dívida dos planos com o SUS é da ordem de 5,6 bilhões. “Depois de quase vinte anos, depois de tanta postergação, parecia que era direito que empresas usassem o SUS a seu bel-prazer. Agora ficou definido que o direito é preservar o SUS, que o direito é fazer valer a lei e não acatar as gambiarras regulatórias impostas pelo mercado”, afirma.
Segundo Ligia, apesar da decisão do STF, “é importante esclarecer que o ressarcimento não deve ser encarado como fonte de receita, especialmente fonte de receita substitutiva para o SUS, e sim como um mecanismo de aporte eventual de recursos. Por isso é importante desde já atrelar os recursos do ressarcimento a um destino certo e evitar a aplicação desses recursos adicionais (pelo menos 1,5 bilhão por ano) em atividades rotineiras. Se o ressarcimento é consequência de lacunas assistenciais dos planos, é relevante reforçar o SUS nessas áreas para as quais acorrem clientes da assistência suplementar e outras relevantes para o conjunto da população”.
A Associação Brasileira de Planos de Saúde – Abramge contestou a decisão do STF com a alegação de que todos os brasileiros têm direito de utilizar o Sistema Único de Saúde. Para Ligia, “o que a Abramge insinua é que ocorre uma escolha. Pessoas com plano ‘escolhem’ usar o SUS, ‘escolhem’, naquele determinado momento de sufoco extremo (quando não têm para onde correr), exercer direitos de cidadania. Na realidade o que acontece é exatamente o inverso, o plano nega o acesso e a única alternativa é o SUS”. E esclarece: “Os motivos de atendimento no SUS estão relacionados com a negação de cobertura dos planos para procedimentos caros, como por exemplo, transplantes. Mas também associam-se com a peregrinação em serviços de saúde que também ocorre para os segmentos populacionais com planos menos abrangentes. Há partos de clientes de planos realizados pelo SUS em função da alegada falta de vagas em hospitais privados”.
Ligia Bahia é graduada em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestra e doutora em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz. Atualmente é professora adjunta da UFRJ.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como avalia a decisão do STF de considerar constitucional o reembolso dos planos de saúde ao SUS pelos custos com o atendimento de pacientes conveniados?
Ligia Bahia – Foi uma decisão histórica, demorou muito. Depois de quase vinte anos, depois de tanta postergação, parecia que era direito que empresas usassem o SUS a seu bel-prazer. Agora ficou definido que o direito é preservar o SUS, que o direito é fazer valer a lei e não acatar as gambiarras regulatórias impostas pelo mercado.
IHU On-Line – Qual é o significado dessa medida para o SUS, especialmente na atual situação do Sistema Único de Saúde? É possível prever qual deve ser o impacto dessa decisão para os cofres do SUS?
Ligia Bahia – Certamente, o impacto depende de nós, da nossa luta para que a lei e sua interpretação pelo STF se transformem em medidas administrativas efetivas. Temos que atravessar o túnel escuro que desnatura leis, transmutando-as em regras burocráticas que induzem exatamente o contrário do previsto. Ou seja, temos que conferir osso, carne e sangue ao sentido da lei, antes que aventureiros anunciem que é impossível ressarcir por esse ou por aquele entrave procedimental.
Mas é importante esclarecer que o ressarcimento não deve ser encarado como fonte de receita, especialmente fonte de receita substitutiva para o SUS, e sim como um mecanismo de aporte eventual de recursos. Por isso é importante desde já atrelar os recursos do ressarcimento a um destino certo e evitar a aplicação desses recursos adicionais (pelo menos 1,5 bilhão por ano) em atividades rotineiras. Se o ressarcimento é consequência de lacunas assistenciais dos planos, é relevante reforçar o SUS nessas áreas para as quais acorrem clientes da assistência suplementar e outras relevantes para o conjunto da população.
IHU On-Line – Quais são as vantagens dessa medida tanto para os usuários dos planos de saúde quanto para os do SUS?
Seria vantajoso para todos que as empresas de planos parassem de vender seus produtos dizendo que o SUS não presta
Ligia Bahia – A principal vantagem é conhecer os fluxos assistenciais e tentar coibir propaganda enganosa. Seria vantajoso para todos que as empresas de planos parassem de vender seus produtos dizendo que o SUS não presta. Se a rede pública não funciona, como é que atende clientes de planos? E sabendo exatamente o que os planos não atendem ficará mais fácil rever contratos. As informações sobre ressarcimento poderão contribuir para evitar que nas cidades de médio e pequeno porte, nas quais os serviços de saúde frequentemente atendem clientelas do SUS e dos planos, os fluxos assistenciais sejam determinados simplesmente pela conveniência ou melhor margem de retorno para o estabelecimento.
IHU On-Line – A Associação Brasileira de Planos de Saúde – Abramge contra-argumentou a decisão do STF afirmando que todos os cidadãos brasileiros que têm plano de saúde, ainda assim mantêm o direito de utilizar o SUS sem quaisquer ônus. Como avalia essa contestação à decisão do STF?
Ligia Bahia – Trata-se de uma afirmação bastante abstrata, na medida em que ninguém paga um plano para ser surpreendido com negação de cobertura e atendimento no SUS. O que a Abramge insinua é que ocorre uma escolha. Pessoas com plano “escolhem” usar o SUS, “escolhem”, naquele determinado momento de sufoco extremo (quando não têm para onde correr), exercer direitos de cidadania. Na realidade o que acontece é exatamente o inverso, o plano nega o acesso e a única alternativa é o SUS.
Todos têm direito à saúde. Por essa razão, as empresas não podem usar o SUS como resseguro
Certamente, todos têm direito à saúde. Por essa razão, as empresas não podem usar o SUS como resseguro. Empurrar pacientes para o SUS, como afirmou o STF, é enriquecimento ilícito.
IHU On-Line – Antes da decisão do STF, é possível estimar com que frequência pacientes que tinham plano de saúde eram atendidos pelo SUS?
Ligia Bahia – Sim, temos estimativas. Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde, cerca de 15% das pessoas vinculadas a planos privados declararam em 2013 terem sido atendidas na rede SUS. Uma proporção bem significativa.
IHU On-Line – Na prática, por que e em quais circunstâncias pacientes que têm planos de saúde são atendidos pelo SUS?
Ligia Bahia – Os motivos de atendimento no SUS estão relacionados com a negação de cobertura dos planos para procedimentos caros, como por exemplo, transplantes. Mas também associam-se com a peregrinação em serviços de saúde que também ocorre para os segmentos populacionais com planos menos abrangentes. Há partos de clientes de planos realizados pelo SUS em função da alegada falta de vagas em hospitais privados. O que vale na assistência suplementar não é a necessidade clínica, e sim quem paga mais. Hospitais preenchem vagas de acordo com os planos que melhor remuneram.
IHU On-Line – É possível estimar o percentual dos planos de saúde que entravam com ações na Justiça para não reembolsarem o SUS por atendimentos realizados?
Empurrar pacientes para o SUS, como afirmou o STF, é enriquecimento ilícito
Ligia Bahia – O percentual não. Mas sabe-se que grandes empresas foram ativas defensoras do não ressarcimento, entre elas a Hapvida e a Unimed de Belo Horizonte, e ainda houve e há enorme empenho das entidades que representam estes e outros setores econômicos poderosos para organizar ações junto ao Poder Judiciário. As empresas de planos contratam grandes escritórios de advocacia no Brasil. Foi um desses escritórios que as representou junto ao STF. Isso por si se configura em uma enorme assimetria de poder e dá pistas sobre a demora para o julgamento.
IHU On-Line – Qual é a atual dívida dos planos de saúde com o SUS?
Ligia Bahia – A declarada é pelo menos 5,6 bilhões, mas essa estimativa (divulgada pela ANS) é muito favorável às empresas. É uma vergonha o que fizeram com o ressarcimento ao SUS. Espera-se que um dia tudo isso seja devidamente apurado. Entretanto, no curto prazo é importante exigir que esses recursos sejam aplicados no SUS imediatamente, senão nem esse valor será devolvido para o SUS.
IHU On-Line – A cobrança aos planos de saúde é feita pela Agência Nacional de Saúde Suplementar, mas atualmente está em discussão na Câmara dos Deputados a possibilidade de alterar o modo como é feito o ressarcimento dos planos de saúde ao SUS. Uma das propostas sugeridas é que, ao invés de os recursos serem destinados à União, passem a ser destinados aos Estados. De outro lado, há ainda quem defenda que o ressarcimento seja feito diretamente à instituição que prestou o atendimento de saúde. Na sua avaliação, qual seria a forma mais adequada de fazer o ressarcimento ao SUS? Deveria ser feito à União, aos Estados ou ainda às instituições hospitalares?
Se a rede pública não funciona, como é que atende clientes de planos?
Ligia Bahia – No projeto de lei do Deputado Rogério Marinho (PSDB-RN) o ressarcimento se adequou ao propósito de autorizar a comercialização de planos com quase nenhuma cobertura. O projeto objetiva desregulamentar a exigência de coberturas mínimas e nele o ressarcimento ficou com uma função diferente da original. A rede SUSfuncionaria como credenciada dos planos, que pagariam valores menores pelo atendimento (valores muito menores). Por isso, o projeto propõe pagar para os estados e tem quem defenda que os recursos sejam diretamente arrecadados pelas unidades de saúde que atenderam. O deputado considera o SUS um acessório das empresas privadas. Consequentemente, propõe que o ressarcimento não seja ao conjunto do sistema, ao SUS, e sim a órgãos isolados. Essa alternativa agravaria a iniquidade na saúde porque beneficiaria instituições e regiões mais ricas (aquelas vinculadas a maior concentração de clientes de planos de saúde). O ressarcimento, pela legislação existente, é para o Fundo Nacional de Saúde e assim pode ser utilizado para equilibrar desigualdades.