Decisão do STF reforça ataque aos direitos territoriais indígenas

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Menos de seis meses após as decisões que anularam as portarias das Terras Indígenas Guyraroka, dos Guarani-Kaiowá (MS), e Porquinhos, do povo Canela Apanyekrá (MA), a 2ª Turma do STF volta a colocar em questão o direito de um povo indígena à terra: os Terena da Terra Indígena Limão Verde (saiba mais).

Publicado em 12 de fevereiro último, o acórdão da decisão, favorável à anulação da portaria que reconhece a TI Limão Verde como área tradicionalmente ocupada pelos índios, é o primeiro a incidir sobre uma terra que chegou ao último estágio do processo demarcatório – a homologação, ocorrida em 2003 –, mas o terceiro a se valer da tese do “marco temporal” para tanto. A Funai deve recorrer da decisão. Leia o acórdão.

Essas três recentes deliberações da 2ª Turma contradizem entendimentos do próprio Supremo em outras decisões. Em outubro de 2013, ao julgar os embargos declaratórios do julgamento da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, a maioria do plenário do STF decidiu que as condicionantes impostas a este caso não eram vinculantes para outras demarcações sub judice. A tese do “marco temporal”, uma das condicionantes da Raposa, sustenta que os índios só teriam direito às terras efetivamente ocupadas em 5 outubro de 1988, na data da promulgação da Constituição.

Interpretação restritiva

Um ano depois, em outubro de 2014, o mesmo plenário negou em decisão unânime um recurso que pretendia anular a demarcação da TI Yvy Katu, do povo Guarani Kaiowá (MS), baseada justamente no fato de que o “marco” não pode ser aplicado para determinar se uma terra é ou não é indígena se a população tiver sido expulsa da área por não indígenas – o que chamamos de esbulho. (Saiba mais).

Para o advogado do ISA, Maurício Guetta, a 2ª Turma do STF equivoca-se ao adotar uma interpretação restritiva do direito indígena à terra previsto na Constituição. Ele explica: “Há consenso na doutrina e na jurisprudência no sentido de que a interpretação de direitos fundamentais deve se dar de forma ampliativa e não restritiva. Tal equívoco se evidencia com clareza no caso da TI Limão Verde, pois, além de se utilizar do limitante requisito do ‘marco temporal’, a 2.ª Turma ainda restringiu o conceito de ‘renitente esbulho’, adotado no caso da TI Raposa-Serra do Sol (TI RSS) o que se mostra grave, ainda mais se considerarmos o impacto que essa interpretação poderia ter sobre outras TIs já consolidadas formal e materialmente no Brasil”. Na opinião de Guetta, em vez de contribuir para solucionar os conflitos fundiários sobre terras indígenas, por meio de decisões como essa, o STF acaba por trazer mais insegurança jurídica tanto para indígenas quanto para não indígenas.

Segundo a interpretação da 2ª Turma no caso de Limão Verde, a área só seria considerada indígena, caso a população não estivesse fisicamente na área – marco temporal –, mas estivesse judicialmente disputando sua posse ou em conflito com os proprietários em outubro de 1988. Nesse caso, a restrição da ideia renitente esbulho foi mobilizada para permitir a aplicação da tese do marco temporal: o relator do caso, o ministro Teori Zavascki, utilizou-se do fato de os indígenas terem sido expulsos da área em 1953 para sustentar que não ocupavam fisicamente a área em 1988.

 “Nós nunca nos afastamos daquela terra”

A área da Limão Verde foi delimitada pelo decreto estadual (nº 795), a partir da doação de dois mil hectares de terras devolutas do município de Aquidauana (MS). E como em outras terras do Mato Grosso do Sul, excluíam, inicialmente, importantes áreas de ocupação tradicional. E mesmo expulsos das áreas não reservadas em 1953, os Terena continuaram praticando a caça e a coleta nesses locais.

O relatório de identificação da terra registra que em 1982 o cacique de Limão Verde, Amâncio Gabriel, enviou uma carta à presidência da Funai solicitando uma equipe para realizar o levantamento da área, exígua para a subsistência da comunidade terena e intensamente invadida por fazendeiros. “(…) Nas constantes reivindicações encaminhadas, sempre referiram-se insistentemente ao cemitério tradicional deixado de fora, tanto por escrito como pessoalmente, nas sacrificadas viagens que, de vez em quando as lideranças empreendiam a Brasília, na esperança de um atendimento que não se concretizava”, registra o estudo.

Só nos anos 1990 é que a Funai atenderia a estas demandas, identificando a área de 4.886 hectares, agora anulada judicialmente. A partir da decisão da 2ª Turma, os Terena contam apenas com a área reservada em 1928, de menos de dois mil hectares. Com base em registros documentais, depoimentos e na demonstração da presença dos Terena em Limão Verde por mais de seis gerações, esse relatório foi publicado em 1997 – registrando a incidência de mais de 30 propriedades privadas.

Mapa (foto acima) mostra área da TI Limão Verde

Logo após a homologação, 2003, os proprietários das fazendas ingressaram com ação na Justiça pedindo que a portaria declaratória fosse anulada. Os Terena, por seu turno, aguardando a desintrusão completa da área, passaram a retomar as áreas de ocupação tradicional. Em 2008, eles reocuparam os 392 hectares ocupados pela Fazenda Santa Bárbara; em 2009, as fazendas da Mocinha e Bonanza, com 150 e 400 hectares, respectivamente.

Segundo o advogado e pesquisador indígena Luiz Henrique Eloy Amado, do povo Terena, a decisão foi recebida com surpresa pela comunidade de Limão Verde e também pelos demais Terena – que apresentaram no último dia 18 de março um pedido de anulação da decisão e querem que o caso seja analisado pelo pleno do STF (saiba mais). “Todas as lideranças ficaram assustadas com isso. Todos nós”, testemunha Eloy, lembrando que, graças à homologação, a TI Limão Verde era tida como uma das únicas terras terena garantidas.

O advogado terena também critica a tentativa dos ministros da 2ª Turma de firmar uma nova interpretação sobre o conceito de esbulho. Para ele, do ponto de vista jurídico, não existe qualquer possibilidade de aplicação do marco temporal no caso da TI Limão Verde. “Do ponto de vista material nós nunca nos afastamos daquela terra”, afirma. Isso é comprovado pelos laudos antropológicos da Funai e também pela perícia judicial do antropólogo Andrei Cordeiro. Tanto é que em primeira instância, a comunidade ganhou. E, no TRF, quando os fazendeiros apelaram, a comunidade também ganhou. No STF, o recurso que eles usaram é muito frágil; não permite analisar a fundo os fatos”.

Área foi local de refúgio na Guerra do Paraguai

Eloy Amado conta que, por ter sido local de refúgio durante a Guerra do Paraguai, a TI Limão Verde tem um forte significado histórico e cultural para os Terena, que continuaram na região mesmo após a titulação das terras, trabalhando nas fazendas. Na história terena, esse período foi chamado de “tempo de servidão” (saiba mais). “Nos casos em que os Terenas não estavam [na terra] é porque eles foram colocados nas reservas pelo próprio braço estatal”, afirma. “Os índios, de fato, não poderiam naquela época reclamar os seus direitos; até então eram tutelados pela Funai. É muito recente a possibilidade de os índios irem ao Judiciário defender os seus direitos”.

De fato, em dezembro de 2009, foi justamente com base na jurisprudência do Supremo para o julgamento da demarcação da TI Raposa-Serra do Sol que a Justiça Federal de Mato Grosso do Sul legitimou a demarcação de Limão Verde, reconhecendo que a população Terena que a ocupa foi esbulhada de suas terras durante o processo de colonização do estado.

Foto: Reprodução/CIMI

Fonte: CIMI

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