Por Rita Coitinho.
Em Nova Bréscia, no Rio Grande do Sul, acontece o Festival Nacional de Mentira. Ali desfilaram por anos os maiores mentirosos do Brasil. Mas Nova Bréscia que se cuide. Atlanta, nos EUA, sediou na noite de ontem um duelo de mentirosos que deixariam Chicó, Macunaíma e Pedro Malazarte intimidados. O show foi transmitido para o mundo inteiro, com hostes de coisa séria. Dois homens idosos, cabelos brancos e ternos caros, mediados por uma dupla de jornalistas sisudos, elegantes e ciosos de seu papel. Um cenário respeitável. Mas não é com ar de seriedade que mentem os melhores mentirosos? Pergunte a um jurado do festival de Nova Bréscia.
O debate, o primeiro da corrida presidencial dos EUA, que termina (ou não, como veremos na resposta de Trump a uma das últimas perguntas) em 05 de novembro, foi organizado pelo canal CNN. Sem público, apenas candidatos e jornalistas, sob regras bastante rígidas de tempo. Ambos foram advertidos publicamente de que ao aceitar participar, aceitariam também as regras.
A primeira pergunta foi sobre economia. Biden defendeu seu governo, afirmou que houve melhora do nível de emprego e aumento do PIB. Disse que chegou no governo pós-Trump e encontrou “tudo um caos”, referindo-se à má gestão da crise de saúde da pandemia de COVID-19. Trump, que já chegou no debate com um olhar de deboche, respondeu ironizando a fala do adversário. “Está tudo bem, não temos nenhum problema, somos o máximo”. Depois falou de impostos, apresentando sua receita “infalível”: cortar impostos. Em seguida, criticou a inflação dos anos atuais, atribuindo ao governo Democrata a alta do custo de vida, que, segundo suas palavras, “mata pessoas, mata muitas pessoas”. A isso acrescentou a dívida americana, que “também mata pessoas”, assim como as vacinas e a imigração. Biden criticou o receituário de “corte de taxas” e defendeu a taxação dos bilionários, cuja arrecadação poderia financiar a ampliação do Health Care (programa de saúde) e da previdência. E Trump tirou da manga a cartada central que caracterizaria toda sua participação no debate: os imigrantes. Disse que Biden estava destruindo o Health Care e os empregos dos estadunidenses por causa de suas “portas abertas” aos imigrantes. Disse que os imigrantes destroem empregos, programas de saúde e de ajuda social. Criticou a retirada (ou fuga?) das tropas dos EUA do Afeganistão feita pelo governo Biden, segundo ele, “o maior vexame da história dos EUA”. E disse que é por isso, porque Biden é fraco e faz um governo fraco, que o mundo não respeita mais os EUA. Que o mundo inteiro “pensa que somos estúpidos”. E aqui estaria a razão por que os imigrantes ilegais entram: pois não temem mais o governo dos EUA, que saíram corridos do Afeganistão.
Em seguida veio uma pergunta, dirigida a Trump sobre (rufem os tambores!): aborto. A jornalista lembrou que com Trump o tema do aborto passou a ser regulado pelos Estados, mas que o uso de pílulas abortivas tem regulamentação federal. Ela então perguntou a Trump se, como presidente, ele proibiria a pílula. Trump respondeu que há situações em que o aborto deve ser possível. Segundo ele, “eu penso que em casos como estupro, incesto e perigo para a vida da mãe [o direito ao aborto] precisa ser respeitado. Algumas pessoas acreditam que não, mas aí é preciso seguir seu coração”. Parece equilibrado, não? Mas espere, porque tem mais. Biden respondeu que defende que o aborto tenha regulação federal, que não é aceitável (é “ridículo”, em suas palavras) que uma mulher violentada (às vezes dentro de casa) tenha que atravessar todo um Estado para poder alcançar o direito ao aborto. Disse que permitir que cada Estado tenha uma política própria para esse tema é “uma coisa terrível”. E então Trump reagiu: “uma coisa terrível é o que os imigrantes fazem”, passando a acusar os imigrantes de violentarem as mulheres e de matar cidadãos dos EUA. Ainda, segundo Trump, os Democratas defendem “matar bebês” e “abortar bebês de nove meses”. Tudo isso sem rubor nas faces. A acusação saia-lhe fácil, como alguém comentando algo corriqueiro do seu dia.
Já desde a primeira pergunta o tema da imigração mostrou-se o favorito do candidato republicano. A terceira questão apresentada pelos mediadores, portanto, contemplou o tema. Sobre isso, Biden defendeu sua política de imigração e recordou que Trump chegou a separar crianças dos pais nas fronteiras em sua política de repressão à imigração ilegal. Biden poderia ter explorado melhor essa temática – até para angariar os votos dos imigrantes que já têm cidadania. Mas perdeu fôlego. Foi então suplantado pelo enérgico mitômano, para quem o governo democrata abriu completamente as fronteiras, aceitando criminosos, “doentes mentais” e terroristas. Para ele, “tem 100% de chances de que haja um grande ataque terrorista nos Estados Unidos” em razão das políticas de imigração dos últimos anos.
Chegou em seguida outro tema que merece o rufar dos tambores: Rússia e Ucrânia. A jornalista perguntou a Trump se ele considera boa a proposta de paz apresentada por Putin. Trump inicialmente ignorou a pergunta. Seguiu no ataque ao adversário sobre sua tese de que os EUA não são respeitados externamente por culpa de Biden e retornou ao tema do “vexame no Afeganistão”. Disse que, se fosse ele o presidente, “a Rússia não teria invadido a Ucrânia”, e repetiu que o acontecimento no Afeganistão foi uma vergonha. Biden respondeu acusando Trump de ter incentivado a Rússia a invadir a Ucrânia. Instado pela jornalista a responder sua pergunta (“Você considera a proposta de Putin aceitável, sim ou não?”) Trump respondeu rapidamente que não. E passou a discutir os bilhões de dólares gastos com a Ucrânia e disse que acabará com “essa guerra” tão logo seja presidente. Biden insistiu com a ideia de que “Putin é um criminoso de guerra”, portanto refutando qualquer negociação com a Rússia. Em seguida disse que Trump chamara os veteranos de guerra dos EUA de “otários e perdedores” enquanto visitava um cemitério na França durante seu tempo como presidente. Trump negou esse acontecimento e tirou da manga a “cartada” de Hunter Biden, filho do presidente, mencionando seu envolvimento nos conflitos e exigindo desculpas de Biden por aqueles comentários sobre “otários e perdedores”. Biden disse que não lhe devia desculpas.
A próxima pergunta foi sobre Israel e Hamas: o que fazer para colocar um fim no conflito? Aqui Biden contou um “causo” digno do festival de Nova Bréscia. Disse que no Conselho de Segurança da ONU os EUA aprovaram com grande consenso a proposta dos EUA de um cessar-fogo imediato (sem mencionar os sucessivos projetos de resolução vetados pelos EUA desde as primeiras semanas de bombardeios), e que Israel não respeitou o cessar-fogo por decisão própria. Trump então ignorou a pergunta e retomou o tema da Ucrânia, mencionando o financiamento dos EUA à OTAN. Para ele, já que a guerra acontece na Europa, são os europeus quem têm que pagar seus custos e não os EUA. Prometeu reduzir o financiamento à OTAN, como fez em seu governo, e disse que quando fez isso os europeus tiveram que gastar dinheiro com a OTAN. Pressionado a responder sobre Israel, Trump disse que “Biden é um palestino” e que para ele, sobre esse tema, os EUA têm que deixar Israel “fazer o serviço”. Acusou ainda o governo Biden de permitir “essa grande bagunça” (referindo-se aos levantes estudantis pró-palestina) e aproveitou para repetir que o governo dos Democratas é um governo fraco. Biden, com um tom de voz muito baixo e alguns lapsos, disse que Trump não compreende o papel da OTAN para a política externa dos EUA.
A jornalista pergunta então a Trump se apoia a criação de um Estado palestino. Trump não responde e volta a se dizer contra a destinação de tantos recursos à OTAN. Termina dizendo que eles (os EUA) “estão pagando as contas de todo mundo”.
Veio finalmente o grande tema: a invasão ao Capitólio de 6 de janeiro de 2021. Para Trump, a então presidenta da Câmara dos Deputados, Nancy Pelosi, é a responsável. “Ela assumiu toda a culpa em uma entrevista para um documentário”, disse. Segundo ele, Pelosi recusou reforço policial, por ele oferecido. Não porque ele estivesse incentivando ou envolvido nas movimentações golpistas, disse. Mas porque “dava para ver” a insatisfação das pessoas com o resultado e era esperado que houvesse algum tipo de levante. Sem mudar de expressão, sem sorrir, sem desviar os olhos, Trump negou seu envolvimento com as agitações do 6 de janeiro. Um Biden cada vez mais confuso, com dificuldade de vocalização, respondeu acusando Trump de ser o responsável pelo 6 de janeiro. Biden então é interpelado pelos jornalistas. A pergunta é se ele acredita que os milhões de apoiadores de Trump “querem destruir a América”, já que ele acusa seu adversário dessa intenção. Biden responde que sim. E retoma o acontecimento de Charlottesville (Virgínia), em que pessoas carregando suásticas foram confrontadas por grupos antirracismo. Disse que Trump teria declarado, sobre o ocorrido, que “há pessoas boas dos dois lados” e que se Trump vê algo de bom em pessoas carregando suásticas (enfatizou a palavra), ele não compactua dos valores americanos.
Sim, Biden, o mesmo presidente que envia recursos para o Batalhão Azov na Ucrânia, um agrupamento que tem declarada identificação com o nazismo, usou os extremistas de Charlottesville para acusar seu adversário de compactuar com valores antiamericanos. É uma lógica difícil para quem tentou acompanhar o debate usando a razão.
E não parou por aí, senhoras e senhores, o festival de contorcionismo argumentativo. Questionados sobre as dificuldades dos negros no mercado de trabalho, os dois candidatos confrontaram visões distintas sobre assistência social e políticas afirmativas (defendidas por Biden timidamente). Trump retomou o ataque aos imigrantes e à inflação, que “matam os negros e deterioram o mercado de trabalho”. Para Trump, “os imigrantes estão roubando os empregos” dos negros americanos e em seu governo não havia inflação. Biden responde (dessa vez com esperteza) que não havia inflação no governo Trump porque a economia estava em frangalhos, encolhendo.
Chegamos à questão climática. Trump simplesmente não responde à pergunta, e pressionado, brada: “no meu governo tínhamos a melhor qualidade de água, o melhor meio-ambiente (…) no meu governo tínhamos os melhores números!”. Sim, leitor. Trump falou isso mesmo, sem rubor nas faces. Era a hora de alguém soltar aquele som de risadas clássico das séries estadunidenses. Mas ali na CNN o pessoal se leva a sério. O balbuciante Biden, que poderia ter esmagado Trump nesse tema, apenas menciona que há uma emergência climática e que os EUA aderiram, em sua gestão, aos acordos de Paris. Como se aderir aos acordos fosse suficiente, claro, escondendo a continuidade da preferência dos EUA por combustíveis fósseis e a tolerância à extração de petróleo por fracking internamente. Sobre Paris, Trump diz que é apenas mais um acordo para “os EUA fazerem tudo e China e Rússia não fazerem nada (…). Não vou desperdiçar dinheiro com isso”.
Sobre programas de saúde e de creches, Biden buscou mostrar que tem feito investimentos na área, escondendo seus números alarmantes de mortos e doentes sem acesso à saúde. Trump não apresentou nada, apenas voltou a dizer que os imigrantes sobrecarregam os programas assistenciais e destroem tudo, mais uma vez defendendo o corte de impostos.
Sobre a crise dos opióides, Trump mais uma vez pintou seu governo como perfeito, dizendo que em sua gestão os números eram baixos, reforçando que Biden é fraco e deixa os imigrantes entrarem, trazendo as drogas. Acusou ainda Biden de trabalhar para os chineses, depois do atual mandatário acusá-lo de não ter feito nada para impedir que a economia chinesa prejudicasse a norte-americana. Ambos os candidatos mostraram-se desorientados frente ao crescimento chinês e bradaram ser os mais preparados para enfrentar o desafio de não permitir que os EUA sejam suplantados pela China.
Em seguida, ambos foram questionados sobre suas reais capacidades de governar. Um por ser muito idoso (Biden), outro por estar enfrentando problemas na justiça (Trump). Acabaram discutindo quem tem o melhor desempenho no golfe, não tendo ficado esclarecido, afinal, se Trump carrega ou não carrega seu próprio equipamento esportivo. Mas sabemos que ele faz exercícios físicos (ou diz que faz, nunca se sabe quando é verdade ou mais uma mentirinha à toa).
Questionados se aceitariam o resultado das eleições, Trump insistiu na dubiedade. “Se elas forem limpas, sim”. Declarou-se contra a violência política e acusou Biden de estar levando o mundo à Terceira Guerra Mundial. Biden respondeu confusamente que Trump é que levará o mundo à Terceira Guerra ao retirar recursos da OTAN, reafirmando a importância da aliança na “segurança” dos EUA.
Trump foi então pressionado a responder claramente se aceitaria os resultados das eleições. Voltou a tratar da Rússia e da Ucrânia. A jornalista repete a pergunta mais uma vez e ele diz, evasivo, que “se forem justas, sim”.
Nas considerações finais de cada candidato, Biden enfatizou suas propostas de ampliação dos programas de saúde e infância, além de medidas de reindustrialização dos EUA para fazer frente à China. Trump voltou ao ataque: citou o “maior vexame militar da história dos EUA” (o Afeganistão), disse que com ele na presidência a guerra na Ucrânia acabará e voltou a usar a Palestina para acusar a fraqueza do governo Biden. Segundo ele, o mundo está como está porque “ninguém nos respeita”, graças à fraqueza do governo dos Democratas.
Impressionante este debate, não? Para Trump, tudo é uma questão de força moral. Expulsão dos imigrantes, política de força nas fronteiras, acabar com a guerra da Ucrânia (só não disse como, já que refutou a proposta da Rússia). Faz acenos aos movimentos antivacinas e anti-aborto, sem se comprometer com ninguém. Apresentou-se como a força moral que os EUA precisam, em contraposição a um presidente fraco, rendido a interesses externos. Biden apresenta-se quase como um progressista. Defende sistemas de saúde e cuidado da infância, geração de empregos na indústria e taxação de bilionários. Mas na política externa é o grande defensor da OTAN. A indústria de armas dos EUA de fato tem lucrado muito com a guerra: não chega, portanto, a ser uma mentira que a guerra seja importante para os interesses dos EUA. Seus talentos para a mentira são direcionados ao jogo duplo que faz com o nazifascismo, ruim para dentro (para confrontar Trump), bom para fora, para desestabilizar a Rússia. Os dois candidatos conseguiram fazer metade (ou quase) do mundo perder 90 minutos de seu descanso para assistir a um festival de mentiras. E, o que é pior: nenhuma delas teve graça. Prefiro o festival de Nova Bréscia.
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