Por Paulo Nogueira Batista Jr.
Gostaria hoje de ter uma conversa reservada com amigos e correligionários. Se algum bolsominion, pato, ou outro adversário qualquer, estiver extraviado por aqui neste momento, peço gentilmente que se retire.
Agradeço e prossigo. Queria alertar para a crescente sofisticação e variedade dos artifícios utilizados para controlar o debate público na área da economia. Esses artifícios aparecem, evidentemente, com ainda mais clareza no debate de temas político-partidários, e grande parte do que vou dizer se aplica a fortiori a esses temas. Mas vou me limitar a tratar de economia, área em que a manipulação adquire especial relevo em tempos de crise, como os atuais.
Não é surpreendente que o debate econômico seja objeto de manipulação recorrente. Afinal, a discussão de temas econômicos é de importância política estratégica e não costuma ser deixada ao deus dará pelos donos do poder, menos ainda em épocas de instabilidade e turbulência. Ora, os donos do poder, desde o final do século 20, são primordialmente os integrantes da turma da bufunfa. Não sei se o leitor conhece o conceito. Trata-se da minha principal, talvez única, contribuição à literatura econômica. A turma da bufunfa, em apertada síntese, é um agrupamento razoavelmente coeso de banqueiros e financistas, acolitados por economistas e jornalistas, que se especializam em cultuar o vil metal. Pois bem, essa turma se dedica dia e noite, por dever de ofício, a distorcer a discussão dos temas de economia e finanças.
Há formas de controlar o debate público que são muito conhecidas, entre elas o noticiário seletivo, a editorialização de reportagens, mesmo quando assinadas por jornalistas, e a exclusão de vozes críticas e independentes – que são condenadas à invisibilidade e “mandadas para a Sibéria”, como notava Leonel Brizola.
No Brasil, sempre houve esse tipo de controle. Contudo, quando voltei ao país depois de mais de dez anos no exterior, encontrei o debate econômico brasileiro ainda mais viciado e submetido, ao mesmo tempo, a técnicas mais sutis de controle, incluindo com frequência artifícios antes mais comuns na mídia de países avançados, como os Estados Unidos.
Ente essas formas mais sutis de manipulação temos, por exemplo, a combinação da tradicional preponderância de vozes confiáveis, alinhadas aos preconceitos dominantes, com uma seleção cuidadosa das vozes discordantes. De um lado, economistas bufunfeiros, em esmagadora maioria, repetem sem cansar a vulgata ortodoxa, como é óbvio. Menos evidente é o fato de que, do outro lado, o espaço para divergências é destinado, sobretudo, a economistas heterodoxos com menos conhecimento e experiência – e mesmo assim só àqueles que se dispõem a prestar algumas homenagens aos consensos dominantes.
Dessa maneira, o telespectador, ouvinte ou leitor incauto é iludido com uma falsa pluralidade que toma em uma frase a seguinte configuração: um grande número de vozes ortodoxas contrapostas a uma reduzida minoria de hereges relativamente mansos e incompetentes.
Outro exemplo de manipulação sutil: quando a realidade se impõe com força irresistível, a ponto de tornar teses econômicas ortodoxas insustentáveis, inconvenientes ou até ridículas, chega a hora de escalar e dar espaço a economistas respeitáveis que se disponham a fazer “mea culpas” e revisões parciais, aceitando a incorporação (sem direitos autorais ou citação de autores perigosos) de algumas teses heterodoxas tradicionais, e até meio batidas.
A turma da bufunfa é tinhosa, leitor. Assim, celebra-se intensamente quando algum economista ortodoxo ou ligado ao mercado financeiro de repente descobre a pólvora e passa a defender a distribuição de renda, ainda que com argumentos um pouco suspeitos ou tortos. Ou quando aparece algum outro economista do mainstream reconhecendo que expansão monetária não é necessariamente inflacionária e proclamando que não cabe perseguir o equilíbrio fiscal a qualquer custo e em todas as circunstâncias. Ou, ainda, quando um terceiro pede a supressão de regras fiscais simplistas ou irracionais em nome do uso anticíclico da política fiscal.
As emergências econômicas e políticas costumam produzir esses fenômenos que, como tudo que é humano, têm o seu lado cômico. Às vezes, o ortodoxo escalado para vir ao palco é ligeiramente incompetente e faz a reconversão doutrinária com certa dificuldade e erros elementares. Chega-se a abandonar da ortodoxia até o que ela tem de correto ou parcialmente correto!
Por exemplo, de repente, a credibilidade não tem mais importância alguma, e a existência ou não de regras fiscais passa a ser apresentada como irrelevante. Propõe-se suprimir pura e simplesmente restrições fiscais constitucionais, adotadas inicialmente com grande alarde, sem levar na devida conta que a sua adoção cria irreversibilidades ou dificuldades de reversão – histerese, em suma. Ou, outro exemplo, assegura-se repentinamente ao distinto público, viciado por anos de propaganda em sentido contrário, que os déficits fiscais e a expansão monetária só acarretam risco de inflação quando o hiato do produto desaparece. Os agentes econômicos se tornam, curiosamente, incapazes de antecipar o futuro e formar expectativas. O financiamento do déficit fiscal, a rolagem da dívida pública e as suas ligações com o mercado cambial e o setor externo da economia – tudo isso, antes tão crucial, agora é revelado como simples erros de economistas desencaminhados pela ortodoxia.
A ortodoxia é funesta, sem dúvida, e produz muitos desastres, como negar? Só que para descartá-la é preciso ter discernimento e capacidade de separar o joio do trigo.
Mas não importa, leitor. Todas essas sutilezas analíticas são eminentemente secundárias. O essencial é continuar dominando o debate público sobre temas essenciais. E só dar voz aos economistas que, em última análise, possam ser domesticados.
Nós, heterodoxos e independentes, não podemos cair nessa esparrela e, ingenuamente, ficar repercutindo e elogiando manifestações ocasionais de racionalidade e equidade de economistas bufunfeiros – tanto mais que elas costumam vir coalhadas de afirmações duvidosas. Posso estar sendo um pouco sectário e intransigente, reconheço. Não cabe rejeitar a adesão dos recém-convertidos a teses que, para nós, são carne de vaca. Não temos, a rigor, grandes certezas, nem estamos com essa bola toda. Mas é ou não é verdade que quem pratica o sectarismo com mais entusiasmo não somos nós, mas os serviçais da tenebrosa turma da bufunfa?
Vamos dar boas-vindas aos cristãos novos, mas cum grano salis.
* Versão ampliada de artigo publicado na Carta Capital em 20 de março de 2020.
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O autor é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países. Acaba de lançar pela editora LeYa o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém.
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