Karine Teles nunca se identificou com as mulheres retratadas pelo cinema. Magras, rostos esculpidos, milimetricamente maquiadas e hiper-romantizadas, o estereótipo feminino que reluzia nas telas não se encaixava no seu entendimento de mundo. Foi justamente para transpor esse incômodo que ela passou a dar vida a uma sequência de mulheres reais em sua carreira.
Depois de uma atriz frustrada em Riscado (2010), da amargurada patroa Bárbara, de Que Horas Ela Volta? (2015), e de Irene, a mãe totalmente desglamourizada de Benzinho (2018), Karine volta como uma forasteira no novo filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, Bacurau. Com estreia prevista para o fim de agosto, o longa levou o prêmio do júri no Festival de Cannes — o terceiro mais importante do evento —, no mês passado.
Ainda sem poder contar muito sobre sua personagem, para evitar qualquer spoiler, Karine adianta que a forasteira é uma vilã, com uma carga altíssima de violência. “É a primeira vez que faço alguma coisa desse tipo e talvez nunca mais faça de novo. Acho a violência muito difícil de lidar. Ó… Só de pensar já fico toda arrepiada”, diz, mostrando os pelos do braço. “A violência está muito presente no filme inteiro. E minha personagem está bem inserida nesse lugar mais pesado, mais sujo.”
Bacurau se passa em um pequeno povoado do sertão brasileiro. Na descrição de seus diretores, é um filme de aventura ambientado no país daqui a alguns anos. O conflito começa após a morte de uma senhora de 94 anos, interpretada pela cantora pernambucana Lia de Itamaracá, e a comunidade passa a não constar mais nos mapas.
“É um filme sobre resistência, sobre se apoiar em suas origens e não baixar a cabeça. O Brasil saiu da escravidão há muito pouco tempo, a gente ainda vive nesse lugar regido pelas classes sociais. Estamos claramente vivendo um momento em que as pessoas não estão a fim de perder seus privilégios e estão descaradamente negando os avanços sociais que aconteceram.”
Karine ainda lembra que um filme brasileiro feito no Nordeste, com elenco diverso, é a prova viva da resistência: “Não tem uma bonita ali no filme, não tem um bonito. Mas tem trans, travestis, gente gorda, gente velha, é o elenco mais lindo do mundo. É a alegoria da resistência”.
Em tempos de suspensões de recursos públicos para o setor audiovisual, a premiação de Bacurau, juntamente com A vida invisível de Eurídice Gusmão, longa de Karim Aïnouz que levou o prêmio de melhor filme na mostra Um certo olhar, principal premiação da competição paralela à Palma de Ouro, é uma prova de que o cinema ainda resiste, na opinião da atriz. “É muito simbólico receber essa notícia no momento em que a cultura e o cinema estão sendo tão atacados. É um recado do universo, do cinema mundial, de que estamos no caminho certo, para não desistirmos. Na mesma hora que Bacurau estava sendo exibido em Cannes, aqui, no Brasil, uma multidão estava nas ruas”, lembrou, referindo-se a greve dos estudantes do último dia 15 de maio, contra os cortes na educação.
Estante de prêmios
A admiração entre Kleber e Karine começou em um festival de cinema nos Estados Unidos, há quase dez anos, quando o longa Riscado (2011) foi exibido depois do curta Recife frio, de Kleber. “Engraçado que tenho uma foto nesse dia com meus filhos gêmeos ainda pequenos, que ele tirou. Hoje em dia, ele tem gêmeos”, contou, sentada na mesa de jantar de sua casa, no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro. Karine é mãe de Francisco e Artur, que nasceram com 14 horas de diferença.
Sua estreia como protagonista – e roteirista – aconteceu com o filme, feito em parceria com o diretor Gustavo Pizzi, seu marido na época. Ela criou e deu vida à Bianca, uma atriz que não deslanchava em sua carreira, precisando viver de bicos para se sustentar. O enredo de Riscadonada mais é do que os dilemas reais de Karine, que levou anos até se assumir como atriz: “Eu já tinha mais de dez anos de profissão, mas não escrevia ‘atriz’ no campo ‘profissão’, nas fichas de hotel, sabe? E comecei a me questionar: as pessoas gostam do meu trabalho, mas não consigo viver dele, não consigo pagar minhas contas com o que escolhi fazer. O que está faltando?”.
Karine passou boa parte de sua vida dando aulas de inglês e como assistente pessoal dos diretores Karim Aïnouz e Jonathan Nossiter. Mas, com o longa, levou o prêmio de melhor atriz no festival de Gramado e no Festival do Rio e começou a chamar atenção no círculo do audiovisual. Outro fruto de Riscado foi a maternidade: ela engravidou de Gustavo logo na sequência.
Aos 40 anos e após 26 de carreira, Karine ainda encontra dificuldades para manter a estabilidade na profissão. “Já vivi muita coisa, já ganhei prêmio, estou fazendo projetos importantes, mas ainda não me considero com o jogo ganho. Não estou tranquila do tipo ‘tá tudo certo, vou ter trabalho e pagar minhas contas pra sempre’. Ano passado, fiquei quatro meses sem trabalho, por exemplo. Acho que essa é uma angústia de todo o artista”, confessa. Atualmente, ela está no ar em Malhação, em seu primeiro contrato longo com a Rede Globo.
Preconceito
O longa que projetou Karine internacionalmente foi Que horas ela volta? (2015), de Anna Muylaert, eleito um dos cem melhores filmes brasileiros, segundo a Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Com a carismática Val, empregada interpretada por Regina Casé, a trama percorreu o mundo com críticas profundas às desigualdades sociais brasileiras. No filme, Karine vive dona Bárbara, uma mulher amargurada e carregada de preconceitos.
“Aquele lugar [de patroa] eu não conhecia. Ela tinha uma origem totalmente diferente da minha. Quando eu era criança, não tinha ninguém tomando conta de mim e dos meus irmãos. Minha mãe levava a gente para o trabalho, porque não tinha com quem nos deixar. Depois, quando era mais velha, eu é que ficava com meus irmãos.” Karine se utilizou de uma psicologia reversa para poder dar conta da personagem, se abastecendo de toda a humilhação que já havia sentido, conta.
A atriz estudou com bolsa em um colégio de elite em Petrópolis (RJ), onde nasceu, já que seu pai trabalhava no departamento de psicologia da escola. “A minha família não tinha muita grana. E lá os alunos eram de outra classe social. Ficava bem perdida no meio daquela turma ali. Rolava um bullying pesado comigo. Sofria muito, não era feliz lá, não.”
Para a atriz, a diretora conseguiu traduzir na tela, de maneira muito clara, um retrato de uma sociedade ainda escravagista. “Tem o incômodo com a filha da empregada que consegue entrar para uma universidade pública. Eles podem querer fechar as universidades federais, tirar toda a verba da cultura… Mas já era, gente. Sinto muito, o Brasil já se transformou. Tem uma geração inteira que teve acesso à universidade que entendeu a potência disso e que não volta atrás. O filme da Anna é uma celebração dessas conquistas”, analisa.
Maternidade
A relação da atriz com a maternidade também foi parar no cinema: Karine precisava dizer ao mundo que ser mãe não é nada romântico. A atriz decidiu então escrever uma história sobre uma mãe de quatro filhos que sonha em poder terminar os estudos, a ser interpretada por ela mesma. E assim surgiu Irene, de Benzinho, em uma nova parceria com Gustavo. “O cinema não fala da maternidade nem da complexidade de emoções que é um único dia na vida de uma mãe. É muito violento ter uma pessoa saindo de dentro de você, no sentido da força mesmo. Você se sente sozinha como nunca, apesar de ter agora uma pessoa com quem terá conexão para sempre. Está tudo aqui, mas, ao mesmo tempo, tem um buraco. É o abandono da maternidade”, defende.
“Enquanto está grávida, todo mundo está com você. Depois, foda-se você. Todas as atenções se voltam para o bebê. Por isso, sempre falo aos meus amigos que vão ser pai: cuide da sua mulher. Dê apoio a ela, fique com a criança para ela poder tomar banho, comer. Porque a gente se sente super sozinha. E é muito cansativo.” No meio do processo do roteiro de Benzinho, Karine e Gustavo se separaram, após 12 anos juntos.
A atriz está preparando Princesa, mais um roteiro sobre uma personagem feminina, mas, desta vez, com direção dela. “É sobre a história de uma mulher que vê seu relacionamento ameaçado por um vírus que está contagiando as pessoas na cidade e que faz com que elas regridam moralmente.” A protagonista será interpretada por Camila Márdila, com quem Karine contracenou em Que horas ela volta?. Na trama, Camila era Jéssica, filha de Val. O longa será rodado no Rio e contou com uma consultoria de roteiro de Kleber Mendonça. A depender do que ela já fez, vem coisa boa por aí.