Por Raquel Torres, especial para O Joio, de Petrópolis e Teresópolis (RJ).
Arroz, feijão, bife acebolado, batata-frita, farofa e salada. Café com leite e pão com manteiga. Baião de dois com carne-de-sol e macaxeira. Feijoada com arroz, couve bem fininha e farofa. Cuscuz de milho com charque. Macarronada. Arroz carreteiro com polenta frita. Acarajé com vatapá e caruru. Tutu, frango com quiabo, angu e couve mineira. Peixada com arroz. Camarão com açaí e farinha d’água. Arroz com feijão tropeiro. Galinhada com pequi. Moqueca baiana com arroz e farofa.
A variedade de comidas no Brasil é tão grande quanto a extensão do país. É verdade que o consumo de produtos ultraprocessados vem crescendo de modo acelerado, enquanto o de arroz e feijão – base de grande parte das nossas refeições tradicionais – só faz cair. Mas também é verdade que cerca de 70% da alimentação continua vindo de alimentos in natura ou minimamente processados – aqueles que devem mesmo ser priorizados, segundo o Guia Alimentar para a População Brasileira.
Mas de onde vem toda a comida que compõe o PF nosso de cada dia? Quem a produz? Por qual fatia dessa produção a agricultura familiar é responsável? Isso vem se alterando?
Plantação de arroz em Viamão (RS). Foto: Acervo pessoal de Diego Severo
Agricultores familiares cultivando batatas em Candelária (RS). Foto: Raquel Torres
Essas não são perguntas fáceis de se responder, mas ganharam muita visibilidade a partir do Censo Agropecuário 2006, que introduziu uma diferenciação entre “agricultura familiar” e “agricultura não familiar”. E os dados do Censo mostravam que a agricultura familiar era responsável pela maior parte da produção de vários alimentos consumidos no Brasil, como feijão (71%), mandioca (83%), milho (46%) e leite de vaca (58%) – apesar de ocupar apenas 24% da área total dos estabelecimentos rurais.
Logo se popularizou a ideia, divulgada pelo próprio governo federal, durante o segundo mandato de Lula, de que 70% da nossa alimentação provinha da produção familiar. Segundo Guilherme Cassel, que comandava o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) na época da divulgação dos dados, essa foi uma média geral feita pela pasta a partir dos dados referentes aos alimentos.
Cassel avalia que o slogan dos 70% colou com força porque, no fundo, de alguma forma as pessoas já sabiam do papel importante da agricultura familiar. “Esse número só ganhou a repercussão que ganhou porque ele bate na realidade fática, bate com a sensibilidade das pessoas comuns, que comem arroz, feijão, milho, verdura, fruta, e sabem que isso não é produzido pela agricultura patronal, que produz commodities para exportação”, afirma o ex-ministro. “Nesse meio do agro, além da concentração fundiária tem também uma concentração cultural de informação. Você não pode valorizar um pouco a agricultura familiar e camponesa que parece um crime”, avalia.
A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) reagiu de bate-pronto, publicando o estudo “Quem produz o quê no campo: quanto e onde”, encomendado à Fundação Getúlio Vargas (FGV) e ao Instituto Brasileiro de Economia (IBRE). O trabalho tem uma metodologia torta, que só considera como agricultores familiares aqueles enquadráveis nas normas do Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). E conclui, basicamente, que a produção familiar gera pouca receita e não é tão importante assim.
O que dá para estimar
Saber exatamente o quanto da nossa alimentação vem da agricultura familiar é, hoje, humanamente impossível. Para isso, seria preciso conhecer não apenas a quantidade consumida anualmente de cada alimento (um dado que não existe), como também o quanto de cada ingrediente é consumido – e ainda a produção agropecuária necessária para fazer esses ingredientes. Por exemplo: quanto de cana é necessário para fazer o açúcar de um pacote de biscoito, quanto trigo se precisa para fazer um pão francês, quanto leite se usa para fazer o requeijão e assim por diante. Isso sem falar que teríamos que colocar na conta todos os alimentos que o país exporta e importa. Ou seja, não dá.
O que é possível fazer com tranquilidade é dimensionar a agricultura familiar e calcular sua participação em relação a toda a produção agropecuária de alimentos. E aí, temos o seguinte: em 2006, segundo o Censo Agropecuário, havia 5,1 milhões de estabelecimentos rurais no país, sendo a esmagadora maioria deles – 4,3 milhões, ou 84% – de agricultura familiar. Como já dissemos aí em cima, mesmo ocupando pouco mais de 24% da área total, ela dominava a produção de vários alimentos importantes.
Além disso, era também muito forte em mão-de-obra (74% do pessoal ocupado na agricultura estava em estabelecimentos familiares) e extremamente produtiva: o valor de produção por hectare/ano era de R$ 677 na agricultura familiar, contra apenas R$ 358 na patronal. “Isso são dados – não é ideologia, não é boa-vontade com a agricultura familiar, não é amor pela agricultura familiar”, reforça Cassel.
Tirando da conta o que não é alimento (como algodão, juta e forrageiras), a agricultura familiar era responsável por boa parte da produção. Na horticultura, ela era soberana, sendo responsável por 64,6% no geral, e chegando a ultrapassar os 80% para produtos como batata-doce (86,5%), couve-flor (84,4%), pimenta (84,3%), vagem (80,8%) e inhame (82,6%).
Nas lavouras temporárias – aquelas em que a colheita é anual ou sazonal, como arroz, feijão e mandioca –, ela respondia por 12,8% do total da produção. Esse número era puxado para baixo por commodities como cana-de-açúcar e soja. Tirando esses dois produtos, o percentual subia para 49,2%.
A produção era mais baixa nas lavouras permanentes, ou seja, naquelas culturas que são plantadas uma vez e podem render por vários anos, como as árvores frutíferas. Mesmo assim, a produção familiar era desproporcional – de um jeito positivo – à área ocupada por ela: 31,8% do total, com vários alimentos ultrapassando os 60%, como o açaí (88,7%), amora (78,3%), cupuaçu (76,1%), maracujá (67,5%), e castanha-de-caju (66%).
A agricultura familiar diminuiu?
Onze anos depois, a divulgação do Censo Agropecuário 2017 veio com uma surpresa: houve queda de 9,5% no número de estabelecimentos de agricultura familiar, além de uma redução de 2,2 milhões de postos de trabalho nessa categoria. Para completar, embora continuassem fortes na horticultura, os estabelecimentos familiares haviam perdido muito do seu papel na produção de alimentos como arroz em casca (passando de 33% para 11%), feijão preto (de 76% para 42%), mandioca (de 83% para 70%) e batata-inglesa (de 31% para 12%).
O que aconteceu? Alguns pesquisadores viram nesses números uma mostra do sucesso das políticas públicas de apoio à agricultura familiar. Elas teriam levado as famílias a adotar tecnologias que permitiram aumentar a produção e liberar mão-de-obra.
Mas, para o geógrafo Marco Mitidiero, professor da Universidade Federal da Paraíba, tais casos seriam a minoria dentro da agricultura familiar e não explicariam a redução nos números. De acordo com ele, existem outros pontos que ajudam a entender essa disparidade entre os dois Censos.
Critérios excludentes
Uma das questões, de acordo com ele, tem a ver com a própria definição de agricultura familiar. A lei que trata disso é de 2006 e sofreu ligeiras mudanças em 2017 e em 2021, mas, basicamente, diz o seguinte: para ser considerado como familiar, o agricultor precisa ter uma área de no máximo 4 módulos fiscais – sendo que o módulo fiscal varia de 5 a 110 hectares, dependendo do município –; utilizar predominantemente mão-de-obra familiar; ter a maior parte da renda familiar originada de atividades vinculadas ao estabelecimento; e dirigir o estabelecimento com a própria família. Alguns grupos não precisam obedecer ao critério de área máxima: extrativistas, pescadores, povos indígenas e quilombolas podem ocupar áreas com mais de quatro módulos fiscais e seguir classificados como agricultores familiares.
O problema, segundo Mitidiero, é que a regra pode jogar para a agricultura patronal agricultores que, na verdade, são familiares. Uma evidência disso é que, no Censo 2017, nada menos que um terço de todos os estabelecimentos não-familiares declararam produzir apenas para o autoconsumo, o que é absolutamente esquisito.
Outro indício: em 2006, só 8% dos estabelecimentos com até 10 hectares eram não-familiares, mas esse percentual mais que dobrou – chegando a 19,5% – em 2017. “É um contrassenso ter o não-familiar crescendo em pequenas áreas”, diz Mitidiero.
Uma hipótese para explicar os possíveis erros na classificação dos produtores seria um aumento no número de agricultores familiares empobrecidos, com membros da família precisando se empregar em outros lugares e, assim, fazendo com que a renda familiar advinda de fora supere a do estabelecimento rural. O pesquisador acrescenta ainda que há um envelhecimento da população rural, e muitos dos agricultores familiares recebem aposentadoria. “A aposentadoria rural se torna grande parte da sua renda – que vem de fora do estabelecimento. Aí a pessoa pode não ser considerada agricultora familiar”, aponta. Nesse sentido, defende ele, a lei é como uma “camisa de força”.
O papel dos pequenos
Por isso, Mitidiero considera mais interessante avaliar a produção agropecuária brasileira de acordo com os estratos de área em que ela ocorre, em vez de usar a classificação agricultura familiar versus não-familiar.
“No imaginário nacional, o grande fazendeiro – o ‘Rei do Gado’ – é quem produz a carne do Brasil. Mentira. A boiada sempre esteve mais nos pequenos estabelecimentos”
Marco Mitidiero
O pesquisador escreveu um livro sobre o Censo 2017 trabalhando os dados a partir desse enfoque. E concluiu que os estabelecimentos com menos de 200 hectares – que ele considera pequenos – são, sem sombra de dúvidas, responsáveis por uma parte enorme da nossa alimentação. Eles produziram, por exemplo, 61% do feijão preto, 83% da mandioca, 85% do abacaxi, 82% da banana e 65% do café arábica, além de ter 39% das cabeças de gado e produzir 83% do leite de vaca.
“Isso é de assustar porque, no imaginário nacional, o grande fazendeiro – o ‘Rei do Gado’ – é quem produz a carne do Brasil. Mentira. A boiada sempre esteve mais nos pequenos estabelecimentos”, ressalta.
Mitidiero acredita que há limitações em considerar pequenos os estabelecimentos com até 200 hectares, pois a mesma área pode significar uma terra pequena em um município, mas grande em outro. “E é possível ter um agricultor patronal, um capitalista super tecnificado, produzindo em 40, 50 hectares”, reconhece.
Isso acontece pelo seguinte: as terras no Brasil são classificadas de acordo com módulos fiscais. Um módulo fiscal é a área mínima necessária para que um estabelecimento rural seja economicamente viável. Então, o seu tamanho varia de acordo com fatores que afetam a capacidade de produção – como a disponibilidade de recursos naturais, infraestrutura e dinâmica de mercado. Municípios com menor acesso a essas condições demandam áreas maiores para obter rentabilidade, então, neles, o módulo fiscal é maior.
É por isso que a legislação não se baseia apenas na extensão da terra em hectares para classificar as propriedades em pequenas, médias ou grandes – e as pequenas são aquelas que têm até quatro módulos fiscais. Em Tabatinga, no Amazonas, isso significa até 400 hectares. Já em Campinas, no interior de São Paulo, são apenas 40. Na maior parte dos municípios, o módulo fiscal tem até 30 – neles, terras com mais de 120 hectares já não são mais consideradas pequenas.
Mas o fato é que o menor módulo fiscal possível no Brasil é de 5 hectares. Isso significa que toda propriedade com até 20 hectares, em qualquer lugar do país, vai ser necessariamente considerada pequena.
E olhar para os dados dos estabelecimentos com menos de 20 hectares no Censo 2017 é um exercício maravilhoso: eles ocupavam uma área mínima – só 5,2% de todos os estabelecimentos agropecuários –, e mesmo assim produziam mais de 80% de alimentos como morango, cogumelos, chicória, rabanete e temperos diversos.
Eles também responderam por mais de 70% do pepino, da couve, da alface, do chuchu, da berinjela, da abobrinha e da couve-flor.
E tinham ainda uma participação relevante na produção de repolho (60%), goiaba (50%), mandioca (46%), batata-doce (45%), caju (44%), uva de mesa (44%), abacaxi (41%), abóbora (39%), milho verde (37%), banana (36%), tangerina (34%), ovos de galinha (31%), leite de vaca (24%) e feijão preto (23%).
Em relação aos animais, eles tinham 45% das galinhas e 39% dos suínos. E ainda produziam 42% de todo o peixe, 92% das ostras e 88% dos mexilhões. Sim, tudo isso ocupando só 5% da área total dos estabelecimentos.
A área é grande – a produção, nem tanto
Já os estabelecimentos com mais de 1.000 hectares não têm números tão impressionantes. Eles ocupam quase metade da área total (48%), mas não produzem alimentos nessa mesma proporção.
O carro-chefe é a cana-de-açúcar (83%), que sequer se converte toda em alimento para o Brasil: boa parte vira etanol e boa parte é exportada.
Também se destacam produtos como soja (60%) e milho em grão (58%), além de alimentos que o Brasil exporta muito, como melão (47%) e laranja (42%). Ou seja: muito do que esses estabelecimentos produzem vai para fora.
Mas, eles também geram uma parcela importante de alimentos que, de fato, ficam no país e fazem parte da nossa cultura alimentar – e esses números cresceram entre 2006 e 2017.
A participação na produção do arroz subiu de 30% para 49%. No caso do feijão preto, houve um salto de 3% para 15%; na de feijão de cor, de 20% para 53%. Ficaram mais relevantes na batata-inglesa (de 28% para 35%); ervilha em grão (de 16% para 54%); trigo (20% para 28%); e cenoura (de 0,25% para 26%).
Encarar esses números de frente não significa, de jeito nenhum, minimizar a importância e a produtividade da agricultura familiar e dos pequenos estabelecimentos. Pelo contrário: é preciso reconhecer que sim, eles fazem muita coisa com pouca área e poucos recursos, mas que poderiam nos alimentar muito mais e melhor se estivessem no centro das políticas públicas de produção e abastecimento.
Terra e crédito
Vários fatores ajudam a explicar por que os estabelecimentos menores e familiares têm uma grande produção de horticultura, mas não são muito fortes em grãos como arroz ou trigo.
O primeiro, mais elementar, é a extensão das suas terras. Quase 40% dos estabelecimentos agropecuários no Brasil têm menos de cinco hectares. Cerca de 12% não chegam nem mesmo a um hectare.
Só para lembrar: um módulo fiscal é a área mínima para um estabelecimento ser considerado economicamente viável, e cinco hectares é o menor módulo fiscal possível no Brasil. E ainda por cima ele só é tão pequeno assim nas regiões metropolitanas de grandes cidades, como Rio, São Paulo e Salvador. Agora, pense que as pequenas propriedades são aquelas com até quatro módulos fiscais. Isso quer dizer que 40% dos estabelecimentos agropecuários no país são realmente super pequenos.
Se a terra é pouca, não vale muito a pena lidar com culturas sazonais – que vão deixar a área ocupada por boa parte do ano –, ou com lavouras permanentes que podem levar anos até começarem a produzir. “Se você tem um terreno grande, em volta você bota uma carreira de bananeiras, por exemplo. Dali a dois anos elas estão produzindo. Mas se eu plantar bananeira no meu terreno, o que é que eu vou comer até daqui a dois anos?”, questiona Nilton Raimundo, que vive e trabalha em uma terra que não chega nem a 0,5 hectare em Teresópolis, interior do Rio.
É por isso que, quando se tem pouca terra e pouca grana, a aposta mais certeira é nas verduras e legumes, que demandam investimentos relativamente baixos e demoram poucas semanas para chegar no ponto de colheita e venda.
A coisa é ainda mais complicada quando se trata da produção de grãos, como o arroz. Porque aí não basta ter terra: a produção também é cara. “Esse agricultor precisa de um investimento razoável, alto. Vai precisar de maquinário, de investimento em recuperação do solo, ou seja, precisa de um investimento fixo para alcançar uma determinada produtividade”, aponta Diego Moreira, da direção nacional do setor de produção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Então, são necessários programas de crédito adequados à realidade da agricultura familiar: “Quando um grande produtor não paga um crédito tomado, ele negocia essa dívida. Os grandes produtores estão o tempo todo arrolando dívida. E isso não os impede de acessar o crédito novamente. Mas o pequeno produtor, sim [é impedido]. Ele não tem crédito fácil como o grande tem, ele não tem o que dar como garantia, não tem o poder de negociação com o Estado que o grande produtor tem”, enumera Yamila Goldfarb, vice-presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA).
Produção de grãos como o arroz demanda investimentos altos, como em maquinário e adubação. Foto: Acervo pessoal de Diego Severo
Finalmente, tanto investimento de tempo, trabalho e dinheiro na produção só faz sentido se tiver retorno: é preciso garantir o escoamento da produção. Caso contrário, é prejuízo na certa. E, como nota Goldfarb, houve nas últimas décadas um grande desmonte das políticas de abastecimento no país, com, por exemplo, o sucateamento dos estoques públicos.
Com isso, os preços ficaram nas mãos do mercado: no caso dos grãos, especialmente, quem tem maior capacidade de processamento e estocagem é que vai negociar os preços, retirando ou colocando os produtos no mercado conforme a conveniência. Se os preços são controlados pelos grandes produtores, não é difícil saber quem se dá mal.
“O arroz, por exemplo, tem um custo de produção x, e você só consegue equilibrar esse custo se tiver um preço mínimo para o arroz colhido. Quando o agricultor fica refém do mercado, ele não consegue o preço mínimo para fechar a conta do seu custo de produção. E é óbvio que vai falir”, explica Diego.
Por isso, diz a vice-presidente da ABRA, estoques públicos funcionais e estruturados fazem uma falta tremenda aos pequenos produtores: além de servirem para regular os preços para os consumidores, eles são também um instrumento do Estado para garantir o preço mínimo ao produtor.
Mesmo no caso de alimentos frescos, como frutas, legumes e verduras, o escoamento pode ser uma pedra no sapato dos agricultores familiares. Para eles, vender para supermercados costuma ser uma grande roubada: eles nunca vão ter toneladas de um único alimento para oferecer, como as grandes redes exigem. Então, lhes resta ficar na mão de atravessadores, que compram mercadorias de vários produtores para revender.
Claro que, tirando o lucro do supermercado e o do atravessador, o dinheiro que fica para o agricultor é quase nenhum. “Aqui não tem nenhum produtor que entrega para os mercados. Vem tudo de fora. Não compensa, porque o supermercado quer quantidade, nota fiscal e produto consignado. Se não vender, não paga ao produtor”, explica Sérgio Lage, agricultor familiar de Petrópolis/RJ.
O problema é que, cada vez mais, o modelo das grandes redes – agora, atacarejos – vai se consolidando como hegemônico. “As feiras, que são um canal de comercialização direta dos pequenos e médios produtores, e os pequenos mercados – aqueles de bairro, que a gente comprava na caderneta –, estão sumindo. Mesmo esses produtos que a agricultura familiar produz mais, como as verduras e temperos, estão sendo engolidos. À medida que os grandes atacadistas tomam conta do comércio, mesmo no interior, eles vão inviabilizando as feiras, os pequenos mercados e sacolões, que são tradicionalmente populares”, avalia Diego.
“Vai dar um caos social”
Como a gente já explicou, é bem provável que a agricultura familiar não tenha encolhido tanto entre 2006 e 2017 quanto os dados dos Censos sugerem. Mas também é bastante razoável pensar que ela possa, de fato, vir a minguar bastante porque a agricultura é um trabalho extenuante, arriscado e pouco valorizado – e não há exatamente grandes atrativos para realizá-lo.
“Férias” é um termo que não faz parte do vocabulário da maioria dos agricultores familiares, a não ser quando problemas de saúde relacionados ao próprio trabalho levam a uma folga forçada – como quando Sérgio Lage precisou operar a coluna e ficou 30 dias de cama.
Edvaldo Viera da Silva e sua esposa, dona Celeni (de 49 e 62 anos), trabalham juntos desde que se casaram, há 30 anos. Eles moram na comunidade do Jacó, que fica no meio do caminho entre Petrópolis e Teresópolis, e produzem dezenas de variedades de verduras, legumes e frutas. Antes do casamento, claro, os dois já trabalhavam com os pais e avós. E foi só no ano passado, após décadas de trabalho pesado, que eles conseguiram sair de férias pela primeira vez: tiraram uma semana de folga e foram visitar o Mato Grosso. “Andamos de chalana, vimos jacaré, muito cervo, aves de rapina, o gavião negro, muito bicho. Mas para planejar, a gente juntou dinheiro no conta-gotas. Que não é fácil pra gente que não tem renda, né?”
Não por acaso, conversando com produtores familiares, é raríssimo encontrar algum que diga incentivar seus filhos a permanecer no campo. Existe um problema real de sucessão . “É um trabalho muito árduo e que não é valorizado. Minha filha mais velha tem 23 anos e trabalha numa clínica de bronzeamento artificial. Ela ganha um salário de R$ 1,7 mil. Quer dizer, ela sozinha pega mais do que eu às vezes, e é uma renda garantida, faça chuva ou faça sol”, avalia Nilton Raimundo.
Na casa de Sérgio, o clima é parecido. “Nossos filhos não vêem futuro nisso aqui. Querem fazer qualquer outra coisa. Até mesmo trabalhar na terra dos outros”, diz, puxando uns cálculos de cabeça para explicar o porquê. Ele trabalha com a esposa e o filho. Como o preço da diária na região é R$ 150, eles ganhariam, juntos, mais de R$ 10 mil por mês se trabalhassem fora seis vezes por semana – o que supera a renda familiar atual. “Eu só estou aqui nesse local por causa das raízes. Porque isso aqui foi passado de pai para filho, e a gente não conheceu outro lugar.”
Sérgio diz que muitos agricultores nem gostam de parar para pensar nos gastos envolvidos na atividade, porque, do contrário, poderiam desistir de continuar. “Eu mesmo não faço muita conta”, confessa.
Os efeitos dessa falta de perspectiva são percebidos até espacialmente. A terra onde Edvaldo vive é um dos lugares mais lindos que já visitei: no horizonte, erguem-se pedras gigantescas, e ao redor do terreno tudo é mata fechada. Mas, para minha surpresa, ele me explica que aquela mata é relativamente nova: “Tudo que é mato que você vê, era lavoura. Tinha 200 famílias por aqui, mas quase todo mundo foi embora”.
Sua filha ainda ajuda os pais na roça, mas não tem nenhuma intenção de continuar nisso para sempre. E mesmo os parentes mais velhos já mudaram de serviço: todos os seus nove irmãos foram migrando, ao longo dos últimos anos, para atividades como comércio, jardinagem e construção civil. Só ele continua na lavoura.
“Se ninguém fizer nada, vai dar um caos social. E isso vai acontecer por quê? Porque o agricultor do passado não teve apoio suficiente para ter dignidade financeira de ficar na roça. E os filhos estão vendo. Os filhos às vezes têm um estudo a mais que a gente não teve, um conhecimento a mais que a gente não teve, arrumam outra coisa que fazer. E tá até certo e justo de ir, mesmo. Porque cada um tem que defender o seu, até por instinto de sobrevivência da gente, né?”
Mudança imperativa
De um lado, agricultores familiares cansados, desvalorizados, sem políticas públicas que lhes ofereçam apoio adequado, e com filhos que buscam novos horizontes. De outro, dados do Censo mostrando que grandes estabelecimentos estão produzindo fatias maiores de alimentos como arroz, feijão e batata. Alguém pode vir com uma pergunta ardilosa: ok, e qual é o problema? Por que os agricultores familiares não podem mudar para atividades mais rentáveis e deixar que os grandes estabelecimentos e a agricultura patronal se responsabilizem por alimentar a população?
Para Mitidiero, uma razão central é a desconcentração de renda. “Uma coisa é ter vários agricultores familiares produzindo milho. Outra é ter dez grandes produtores plantando milho e concentrando renda”, diz.
Goldfarb chama a atenção também para o fato de que grandes produtores não geram realmente desenvolvimento local. Em municípios onde há assentamentos de reforma agrária, por exemplo, se percebe que o comércio local é dinâmico – com lojas de materiais de construção e de roupas, farmácias, mercadinhos e restaurantes –, e há incremento no setor de serviços. Isso sem falar, claro, na maior oferta de alimentos saudáveis para a população.
A pesquisadora dá um contra-exemplo que condiz com a experiência de cobertura do Joio revelada na série “No coração do agro”. “Vá ao Mato Grosso ver o que são cidades como Sinop. Tem aquelas lojas que vendem trator e veneno, e as ruas que não têm mais nada. Não tem vida naquelas cidades.”
Ela vai além, lembrando que o avanço da fronteira agrícola para dentro de reservas florestais e territórios ocupados por populações tradicionais gera conflitos sociais e impactos ambientais.
E a cereja do bolo é a seguinte: mesmo que possa produzir alimentos, o objetivo maior do agronegócio não é realmente colocar comida no nosso prato. O setor simplesmente orienta sua produção para onde há mais dinheiro.
Não é por acaso que, nos últimos anos, vimos o Brasil bater recordes de exportação de produtos agropecuários enquanto a fome aumentava no país. “Um dos mais fundamentais papéis que o Estado pode ter é o de se organizar para ter comida para a sua população. Então, a política agrícola é uma política de Estado. Tem que ser”, conclui Mitidiero.