De braços (e mentes) fechados

Por João Sette Whitaker.

Triste domingo de chuva o desta Virada Cultural de 2017 em São Paulo. Não bastasse o fiasco do evento cultural – sejamos justos, a chuva não ajudou – em parte deslocado para fora do centro, mas sem conseguir levar quase ninguém para o Anhembi ou para a Chácara do Jóquei, a tristeza que se abateu sobre a cidade deu-se por constatarmos que um evento que deveria ser o da celebração da vida, da cultura e da cidade democrática, transformou-se em uma cortina de fumaça para uma ação truculenta e fascistoide de higiene social: o desmanche violento do Programa De Braços Abertos, na Cracolândia. O mais triste, porém, talvez seja ver a indiferença dos paulistanos que, afinal, votaram em grande parte nesse prefeito, com o que ocorreu ali.

Não poderia a Virada Cultural ter dado muito certo. Seus organizadores nesta gestão não entenderam nada. Que esse evento não é apenas uma exibição de shows como se fosse um festival qualquer em uma casa de espetáculos. Que ele só tem sentido se associado a uma ideia de cidade, de retomada dos espaços públicos, de uso democrático, solidário e inclusivo do centro, tão necessitado desse tipo de atenção. E esse uso democrático compreende a aceitação e a convivência com os que mais sofrem a dureza da cidade: pessoas em situação de rua e, entre elas, também aquelas em situação de dependência química. A Virada deste ano ficará marcada por ter sido um Cavalo de Troia: utilizaram-se sorrateiramente de um evento para celebrar a cidade para tod@s, para promover a violência e o obscurantismo.

Depois do Prefeito vestido de Gari, a fantasia do dia era de Capitão Nascimento, todo vestido de preto, para ajudar seus rambos a “promover a ordem e a limpeza social”. Com a presença maciça das forças policiais, entraram na Cracolândia jogando jatos de água gelada, aterrorizando os que ali ficam e destruindo seus pertences, prendendo gente a torto e a direito: cerca de 30 “traficantes” presos, pelo que li nos jornais. É fazer-nos de tontos querer que acreditemos que o PCC, que alimenta a Cracolândia com o crack, mais ainda desde que a Prefeitura nesta gestão foi aos poucos deixando de lado sua presença social na região, tenha deixado por lá 30 de seus homens, traficantes de verdade, para serem presos que nem peixes numa rede. Ainda mais no país da corrupção, em que se sabe são os traficantes os primeiros a saber desse tipo de ação policial. Não, prenderam 30 coitados, viciados, que vendem um pouco de crack para poder comprar o seu próprio e com isso alimentam no dia a dia o varejinho de droga ali dentro sem precisar implicar os verdadeiros traficantes.

Em resumo, o que se passou ali é simples: no lugar de uma política de atenção social, redução de danos e reintegração paulatina dos dependentes à sociedade, entrou a velha e boa política da “Rota na rua”, a de mandar bater, prender, sumir. Usuários retirados à força para serem levados a campos (o termo é adequado) de “desintoxicação compulsória”, pelo que dizem. Tudo na contramão do que se faz mundo afora. Assim como se fez nas marginais, aumentando a velocidade e o número de mortos, na contramão de tudo o que os especialistas e as grandes cidades do mundo vêm preconizando. Assim como se fez com a 23 de maio, lindamente decorada por programas sociais de arte de rua e pintada de cinza, na contramão do mundo, mais uma vez. Esta prefeitura é a prefeitura do absolutismo, do fim do diálogo, da contramão.

No caso da Cracolândia, como de hábito, eles não entenderam nada: Jânio Quadros, Maluf, Pitta, Kassab, todos esses senhores já testaram o modelo da porrada. O suficiente para se entender que não adianta de nada: ao se jogar o problema da concentração dos dependentes químicos sem amparo social “para baixo do tapete” promovendo a “limpeza” pela força da área onde se concentram, o que se faz é apenas empurrá-la para um pouco mais longe. A Cracolândia, os mais velhos se lembrarão, já foi mais perto da Estação da Luz, passou para o quadrilátero da Sta. Ifigênia, depois mudou-se para a atual região da Alameda Nothmann. Sempre após alguma ação violenta supostamente destinada a “eliminar o problema” que, invariavelmente, ressurge a algumas quadras dali. Ontem aconteceu o mesmo, como mostram as imagens desta reportagem (clique aqui). Não, a repressão violenta a um problema social dos mais complexos, como já sabem todos os especialistas pelo mundo, não é solução. De Amsterdã a Bogotá, há décadas surgem, em cidades progressistas e inovadoras nas suas formas de gestão, soluções alternativas (hoje pautadas pela própria ONU) que pensam a questão por um outro viés: o da redução de riscos e danos com tratamento dentro do meio social (e não com o “sumiço” compulsório dos dependentes).

O programa era perfeito? Claro que não, tratava-se de um esforço gigantesco de implementação de política pública integrada, em um meio social complexo, com todas as dificuldades que isso pressupõe. Porém, a nova gestão teria tudo, se fosse de fato comprometida com o interesse público, para aperfeiçoá-la. Ainda mais tendo agora aquilo que era para nós o maior obstáculo: a integração possível com a polícia de repressão ao narcotráfico que, como se sabe, é estadual, e agora alinha-se politicamente com a Prefeitura. Mas talvez a motivação, neste caso, seja outra? A de “higienizar” o bairro para uma desejada valorização imobiliária? Ainda mais considerando que a tal PPP de habitação, projeto do governo do Estado para a classe média, será exatamente ali ao lado? A ver.

O Programa de Braços Abertos talvez fosse o exemplo mais exitosos de uma política pública feita com seriedade, de forma integrada, inovadora e marcada por entusiástico reconhecimento internacional. Conduzida por um pool de secretarias, coordenadas pela de Segurança, e de cujo Conselho Gestor participavam as da Saúde, do Trabalho, da Assistência Social, de Direitos Humanos e, mais recentemente, da Habitação. Há poucos exemplos, no Brasil, de programas municipais de cidades com o porte e a complexidade de São Paulo, com tal grau de integração e comprometimento.

Política pública feita em consonância com diretrizes do SUS e do menos conhecido Sistema Único de Assistência Social (SUAS), o programa tinha como objetivo resgatar a dignidade cidadã dos usuários de drogas, diminuindo os prejuízos para os próprios e para toda a sociedade. Para isso, o programa se baseava em quatro diretrizes: oferta de moradia e alimentação, essenciais para a retirada da pessoa de sua situação de rua, do fluxo da cracolândia, e sua recuperação paulatina em um ambiente de moradia, socializado; a oferta de trabalho e de oportunidades de geração de renda, sem o que a reintegração social dos usuários com autonomia econômica seria impossível; o oferecimento de cuidados permanentes de saúde e assistência social, para garantir a recuperação física e psicológica dos usuários em um processo árduo e desafiador e, por fim, a promoção dos direitos humanos e da segurança urbana, reduzindo os impactos sociais da região, historicamente afetada pelo fluxo constante do crack.

Para a moradia, o programa implementou o uso de imóveis próprios ou locados pela prefeitura, geridos pelo programa, com presença de monitores e uma dinâmica de participação dos beneficiários. A alimentação era garantida por meio de convênio com o restaurante popular “Bom Prato” na região da Luz, ou a entrega de marmita, porém as cozinhas dos novos espaços de moradia foram também transformando-se em ricos espaços de socialização. Pela Secretaria de Habitação, tínhamos a intenção de dar à COHAB a responsabilidade por adquirir, reformar e manter prédios no centro destinados ao Programa de Braços Abertos, e esse processo estava a pleno vapor no final da gestão.

Os beneficiários recebiam bolsas-auxílio, para o desenvolvimento de atividades de experimentação técnico-profissional, eram também apoiados e acompanhados em seu acesso ao mercado formal de trabalho e, por fim, participavam de empreendimentos econômicos solidários democraticamente geridos. Equipes dos “Consultórios de rua”, os Núcleos de Apoio à Saúde da Família, e os Centros de Atenção Psicossocial, garantiam o acompanhamento de saúde e a atenção psicossocial especializada. O “Espaço de Braços Abertos”, na região, acompanhava e acolhia os beneficiários do programa quando estavam no território da Cracolândia, além de incentivar a entrada de novos participantes. Tudo isso graças ao empenho de servidores municipais e uma legião de profissionais ultra qualificados e altamente comprometidos com o programa, em uma gestão exemplar liderada pelas Secretarias de Segurança, de Saúde, e do Trabalho.

Com tudo isso, e pela primeira vez, comparativamente aos resultados inócuos das operações feitas em outras gestões, baseadas na retirada violenta dos usuários, o programa De Braços Abertos conseguia resultados eloquentes, sendo por isso reconhecido e premiado internacionalmente: foram cerca de 400 beneficiários(as), além de 33 crianças, de famílias de beneficiados. Nada menos do que 88% dos(as) beneficiários(as) afirmaram ter reduzido o consumo do crack após ingressar no Programa. No seu início, 64% afirmavam passar o dia todo sob efeito da droga, no fim da gestão, eram apenas 4%. 83% dos beneficiários estavam em tratamento continuado de saúde e 59% aderiram às frentes de trabalho; 83% tiraram documentação pessoal de identidade e 54% recuperaram o contato com a família. Coisa de emocionar qualquer um que se interessasse em conhecer um pouco mais desse programa. Coisa que a nova gestão, evidentemente, não fez. Afinal, o que é bom de uma gestão oponente deve ser eliminado, mesmo que seja, de fato, muito bom para a cidade.

O Programa mostrou ao Brasil e ao mundo que as pessoas em situação de vulnerabilidade social que fazem uso abusivo de drogas não terão sua situação resolvida na base do cassetete, muitos menos com internações compulsórias, como quer a nova abordagem da prefeitura; mas pelo cuidado integral com acompanhamento intensivo do poder público que, pouco a pouco, estava reduzindo sensivelmente o fluxo de drogas e de dependentes na região. Não à toa, em julho de 2016, pesquisas apontaram um apoio de 69% da população ao Programa, um fato inédito neste tipo de questão.

É isso que, ontem, a cidade viu ser encerrado em grande pompa e com discurso valente do prefeito Rambo. No lugar de atenção, solidariedade, inclusão, no lugar da compreensão de que questões como essa são complexas e ensejam trabalhos de anos, temos porrada, insensibilidade, discurso de machão.

Fonte: Cidades para quem?

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