DCM: quem são os bolsonaristas que expunham menores escravizados no RS a veneno cancerígeno


Werner Arns Filho, um dos donos do Grupo Arns, produtor de arroz em Uruguaiana (RS)

DCM.- Com três palavras é possível resumir os Arns de Uruguaiana, cidade gaúcha a 649 quilômetros de Porto Alegre, na fronteira com o Uruguai e com a Argentina: família de bem.

São mais de 40 anos e três gerações dedicando-se ao desenvolvimento do Rio Grande e do Brasil, figurando nas páginas e colunas sociais de Uruguaiana e região, cultivando arroz e criando gado bovino em fazendas espalhadas por todo sul do estado.

De fato, o nome Arns é sinônimo de liderança no agronegócio local, não apenas produzindo arroz e carne, mas também na área de pesquisa e tecnologia agro. Além das fazendas, a família é dona das empresas Avantisul Agronegócios Ltda, Avant Arns Agronegócios Ltda., Vitasul Ltda, Agrovita Agronegócios Ltda, Condomínio Agropecuário Walter e Werner Arns Ltda e, finalmente, Guará Agricultura e Pecuária Ltda.

Até o ano passado, os irmãos Werner e Walter Arns eram a geração no comando dos negócios do clã. No dia 17 de agosto de 2022, porém, morreu Walter Arns, aos 66 anos. Assim foi noticiada sua morte no site “Planeta Arroz”, destacando não apenas sua atuação como empresário, mas também seus feitos como liderança do setor:

O mundo arrozeiro foi surpreendido na noite desta quarta-feira, dia 17 de agosto, com a notícia do falecimento, aos 66 anos, do geólogo, produtor e líder setorial Walter Arns. Ele era proprietário da Granja Guará, em Uruguaiana, e presidiu a Associação de Arrozeiros do município (AAU) por quatro mandatos e o Sindicato Rural de Ururuguaiana, além ter sido conselheiro do Irga (Instituto Riograndense do Arroz) em vários mandatos.

O finado agropecuarista Walterns Arns: cidadão de bem e liderança do agronegócio em Uruguaiana (RS) (crédito: Planeta Arroz)

Fazendeiro, empresário, liderança do agro no Rio Grande do Sul e bolsonarista. Walter Arns sempre fez questão de deixar claro seu posicionamento ideológico: era conservador e de direita.

Em verdade, já aos 30 anos dera início à sua atuação política. No dia 11 de novembro de 1987, o fazendeiro (re)fundou a União Democrática Ruralista Nacional (UDR) em Uruguaiana, entidade que dirigiu até a sua morte, como consta em documento da Receita Federal do Brasil, reproduzido abaixo. 

Cadastro da UDR-Uruguaiana na Receita Federal do Brasil (RFB)

Walter Arns deixou a esposa Marcia e as filhas Caroline, Mariana e Vitória. São elas que tocam os negócios atualmente por essa parte da família. Na outra parte, o outro irmão, Werner Arns, continua vivo e atuante, juntamente com seu primogênito, Werner Arns Filho. O primeiro é ex-presidente da Associação dos Arrozeiros de Uruguaiana, o segundo é conselheiro do Instituto Rio Grandense do Arroz (Irga).

Em 2019, Werner Arns recebeu, na categoria “Lavoura Pioneira”, a “Pá de Ouro”, honraria concedida pela Fedearroz (Federação das Associações de Arrozeiros do Rio Grande do Sul).

“O Oscar do Campo”: Werner Arns, pelos métodos empregados em seus cultivos de arroz, ganhou a “Pá de Ouro” em 2019 (crédito: reprodução)

Tanto Werner quanto o filho são bolsonaristas assumidos e combativos. Nas últimas eleições, os dois foram doadores do então candidato e atual deputado federal Ubiratan Sanderson (PL/RS).

Ex-policial federal e defensor da classificação do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) como “entidade terrorista”, o parlamentar ganhou algumas páginas na imprensa no fim de janeiro deste ano, como o deputado que protocolou o 1º pedido de impeachment contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), então há menos de um mês ocupando o cargo.

Werner Arns Filho faz uso – e não é de hoje – de sua conta no Twitter quase que exclusivamente para produzir e reproduzir postagens de apoio a Jair Bolsonaro (PL) e contra o Partido dos Trabalhadores, o Poder Judiciário e a imprensa, como se vê nos exemplos abaixo.

Ataques à imprensa e ao Poder Judiciário dão a tônica do Twitter de Werner Arns Filho (crédito: reprodução)

Werner Arns Filho é um cidadão de bem e respeitável. Seu casamento, em dezembro de 2013, ganhou as colunas sociais de Uruguaiana e região.

Werner Arns Filho: antipetista e pai de família (crédito: reprodução)

Trabalho escravo sem água, com veneno e comida azeda

Distante das colunas sociais, no dia 10 de março deste mês, 85 trabalhadores (sendo 11 adolescentes) foram resgatados da escravidão no município de Uruguaiana, em uma operação encabeçada pelo Ministério do Trabalho, sob o comando do auditor-fiscal Vitor Siqueira Ferreira, chefe do Setor de Inspeção do Trabalho da Gerência Regional do Trabalho de Uruguaiana.

De acordo com os dados colhidos na operação, os trabalhadores estavam divididos entre duas propriedades rurais: a primeira era a Santa Adelaide, sob domínio do produtor rural Jorge Bergallo. Como seus colegas, já foi presidente da Associação dos Rizzicultores de Uruguaiana e é bolsonarista assumido e atuante.  Além disso, é dono da Eladia SA, uma das maiores produtoras de arroz e criadoras de gado do Paraguai. Na Santa Adelaide, foram identificados 54 trabalhadores escravizados, sendo 10 adolescentes.

Lavoura de Jorge Bergallo na fazenda Santa Adelaide, em imagem divulgada nas redes por seu dono (Alamir Moura/Irga)

A segunda era a fazenda São Joaquim, sob domínio do Grupo Arns e da produtora rural Márcia Arns (viúva de Walter Arns), na qual foram identificados 31 trabalhadores, sendo um adolescente.

As propriedades faziam uso de herbicidas (agrotóxicos) a base de glifosato, substância descrita como “altamente tóxica” e cancerígena pela FioCruz e “provavelmente carcinógeno para seres humanos” pela OMC (Organização Mundial de Saúde).

Reprodução de quadro constante em artigo da FioCruz sobre o glifosato

No Brasil, a aplicação de glifosato é permitida pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), sob uma série de regramentos e restrições. Dentre eles, está a obrigatariedade do uso, para sua aplicação, de macacão, botas, luvas, respirador com filtro e óculos de proteção, bem como da disponibilidade de água potável e chuveiros no local, como consta em nota técnica federal cujo trecho é reproduzido abaixo.

Normas de aplicação do veneno glifosato (fonte: ABNT)

Na imagem abaixo, pode se ver como um trabalhador deve estar equipado para a aplicação do glifosato. No caso, o produto está sendo manejado com uma ferramenta chamada “enxada química”.

Crédito: Manuela Bergamim de Oliveira/Portal Embrapa

Nas senzalas debeladas pelo Ministério do Trabalho em Uruguaiana, porém, a realidade era bem diferente. Por lá, o que se usava era uma ferramenta mais rudimentar, chamada “barra química”.

Trata-se de um longo cilindro metálico carregado por dois trabalhadores, um em cada ponta. O equipamento carrega o veneno em seu interior e vai despejando glifosato por meio de furos em sua superfície. Seu manejo é mais delicado do que o da enxada química, visto que o agrotóxico é aplicado acima da plantação, dispersando-se no ar, chegando a atingir diretamente corpo e face dos aplicadores. Daí a necessidade mais premente do uso correto de todo o equipamento de segurança individual previsto em norma técnica.

Nas fazendas visitadas pelo Ministério do Trabalho, no entanto, a realidade encontrada é a que mostra a imagem abaixo.

Aplicação do glifosato por meio da “barra química” em fazenda que foi alvo de operação do Ministério do Trabalho no dia 10 de março deste ano, em Uruguaiana (MTE)

O auditor Vitor Siqueira Ferreira explica:

O trabalho realizado por todos consistia na remoção de plantas atípicas da lavoura de arroz híbrido. A remoção era feita de duas formas: utilizando instrumento denominado barra química, através do qual os trabalhadores tinham contato direto com agrotóxicos, e também através do corte manual das plantas atípicas, utilizando facas de cozinha que traziam de casa.

O auditor-fiscal do trabalho Aldair Lazzarotto, que também participou da operação, completa:

A aplicação do herbicida glifosato em formulação concentrada de forma irregular com a utilização de equipamento denominado “barra química” submetia os trabalhadores a esforços sobre-humanos. A estes trabalhadores não eram oferecidos equipamentos de proteção, nem vestimentas e nem mesmo água para se lavarem após horas de aplicação do produto na lavoura (a aplicação é feita no verão, quando a temperatura média ultrapassa os 30º na região). Estas condições, ultrapassaram a esfera das irregularidades trabalhistas e atingiram a esfera da dignidade humana.

O cenário seiscentista continua, agora descrito pelo auditor-fiscal do trabalho Jorge André Borges de Souza:

Os trabalhadores embarcavam em vans ou ônibus, na cidade, por volta das 5h30, em direção à lavoura, e retornavam após as 19h. Em todo esse intervalo, não tinham acesso a instalações sanitárias, áreas de descanso regulares, água fresca e, às vezes, nem mesmo à sombra.

A água e a comida tinham de levar de casa, e estas permaneciam no calor do ônibus, a ponto de as comidas azedarem e a água ficar quente. Diante do azedamento da comida de alguns, os outros repartiam a comida que julgavam ainda estar boa com os demais.

Urinar e defecar no mato era a regra do ambiente de trabalho, pela indisponibilidade de banheiro.

Como se nota, empreendimentos de famílias de bem.

Um dos dormitórios dos trabalhadores resgatados em Uruguaiana (MTE)
Dentro dos dormitórios, a temperatura chegava a ultrapassar 40º (MTE)
Sem mesa e sem cadeira: a área de descanso e almoço em uma das fazendas visitadas pelo Ministério do Trabalho em Uruguaiana (MTE)
Auditores-fiscais do trabalho reúnem trabalhadores libertados no momento em que aplicavam veneno na lavoura: ninguém usando qualquer EPI (MTE)

Multinacional Basf é sócia no negócio e também vai responder às autoridades

Tanto Jorge Bergallo quanto os Arns são associados da empresa multinacional Basf nas fazendas onde os 85 trabalhadores foram libertados.

Desde que a operação foi deflagrada, a gigante internacional de grãos tratou de condenar as condições degradantes a que eram submetidos os agricultores, dizendo-se supresa e “comprometida com o desenvolvimento sustentável ao longo da sua cadeia de valor, que tem como premissa o respeito e a proteção às pessoas, bem como a transparência na sua relação com a sociedade.” Não é verdade.

O auditor-chefe Vitor Siqueira Ferreira informa que, durante a investigação, foi possível verificar que a Basf celebrava contrato de multiplicação de sementes com os produtores, “mas busca agora se distanciar das relações de emprego contraídas”.

Conforme explicado pelo auditor Aldair Lazzarotto, “a relação entre a empresa e os produtores rurais não é meramente comercial. Assim seria se a empresa fosse apenas a compradora da safra. Essa relação pode ser caracterizada como uma parceria, já que engloba a gestão conjunta de todas as fases de produção, desde o preparo de solo, o plantio, a irrigação, a aplicação de agrotóxicos, a adubação, o roguing e a colheita.”

Ele prossegue: “Assim, pode-se afirmar que há claramente a formação de um grupo econômico entre a empresa e os produtores rurais. Na atividade específica em que os trabalhadores resgatados trabalhavam, a atuação da empresa ia da arregimentação de mão-de-obra, ao acompanhamento e o controle das etapas de trabalho, até a autorização para pagamento após o término do serviço”.

Ao auditores informam que a empresa responderá junto às autoridades federais por sua parcela de responsabilidade na realidade encontrada em Uruguaiana.

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