De Madri a Kobane, metrópoles são cada vez mais centrais para superar sistema, diz geógrafo — mas esquerda clássica prefere acalentar visão romântica sobre luta de classes
Por Sardar Saadi.*
David Harvey é Professor de Antropologia e Geografia no Centro de Pós-Graduação da Universidade da Cidade de Nova York (CUNY). Ele estava na cidade de Diyarbakir, próxima ao Curdistão turco, para uma visita à região e também para participar de um painel na primeira Feira do Livro Amed com seu mais recente livro, Dezessete Contradições e o fim do capitalismo, traduzido em turco pela Sel Publishing. O colaborador da ROAR Sardar Saadi sentou-se com ele para uma entrevista.
Você pode dizer aos nossos leitores o que você trouxe para o Curdistão? Ouvi dizer que esteve em Kobane também?
Esta é a minha terceira visita a esta parte da Turquia, e eu tenho algumas conexões pessoais fortes com algumas das pessoas que ensinam na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Mardin Artuklu. Mardin é um lugar muito bonito para visitar, e eu encontrei uma maneira de combinar o prazer e algum trabalho. Mas também estou aqui por causa da situação geral na Turquia e, em particular, também na região autônoma curda de Rojava, na Síria. O lado sírio da fronteira é fascinante. Ao mesmo tempo, é bastante horrível. Tenho me interessado por ele ultimamente. Tentei chegar a Kobani, também, mas o governo turco basicamente fechou a fronteira.
Os governantes da Turquia e da região curda do Iraque impuseram um embargo a Rojava. Como você conecta isso com o que está acontecendo na região?
Posso apenas especular que ninguém quer que nada do que está acontecendo em Rojava assuma proeminência internacional, e ninguém quer que nada do que está acontecendo lá tenha sucesso. Esse é o meu palpite. E ele é muito óbvio.
Existem muitas iniciativas para reconstruir Kobane. Os ataques aéreos e os bombardeios deixaram a cidade quase inteiramente destruída. Qual é sua perspectiva sobre a reconstrução e sobre as possibilidades de criar alternativas anticapitalistas na área?
Eu vi um mapa com dados de satélite: fica claro que mais de 80% de Kobane foi destruída. A reconstrução é essencial, vai se concentrar nos edifícios de superfície e trazer o povo de volta. Isso oferece uma gama de oportunidades para pensar criativamente sobre uma urbanização alternativa.
Penso que a maior dificuldade será enfrentar os direitos de propriedade existentes, em um grau que a população local possa restabelecer-se. Eles provavelmente querem construir seus direitos de propriedade na forma em que existiam antes: vão querer ter de volta o velho estilo de urbanização, e isso aconteça. Nesse, a questão também será de onde virão os recursos para a reconstrução.
Ainda assim, penso que existem oportunidades para explorar alternativas anticapitalistas. Se essa possibilidade vai ser aproveitada, não sei. Mas, na medida em que os pensadores curdos têm sido influenciados por alguém como Murray Bookchin, eu penso que há a possibilidade de a população explorar algo diferente. Disseram-me que existem formas de governo em assembleias de base em Rojava, mas eu ainda não vi nada. Eu me preocupo um pouco, você sabe, com o romantismo da esquerda. Os zapatistas disseram “revolução” e todo mundo romantizou com o que eles estavam fazendo.
Recentemente, comparei a revolução em Rojava e os zapatistas. Levantei a hipótese de Rojava estar se tornando algo como a Chiapas do Oriente Médio. Você pensa que existe similaridade entre essas duas lutas?
Nem tanta semelhança – no sentido em que os zapatistas organizaram-se, tomaram o controle do seu território e conseguiram protegê-lo de uma maneira particular e em um momento particular. Não foram devastados por uma guerra. Não tiveram tantos problemas como o povo de Rojava está enfrentando. Mas tinham uma estrutura comunal pré-existente, por isso havia uma forma de governo anterior – eles não têm que implementar tudo do zero. Nesse sentido, acho que há grandes diferenças.
Penso que a ideia de similaridade vem da noção que algumas pessoas da esquerda na Europa e na América do Norte ainda têm: “oh, esse é o lugar, finalmente!”. Sempre digo a eles que o lugar que deveria ser construído o socialismo revolucionário é nos Estados Unidos, sem esperar que algo em Chiapas ou no norte da Síria nos livre do capitalismo [risos]. Isso não vai acontecer.
Como você acha que o movimento de solidariedade internacional pode ser produtivo em ajudar Rojava?
Há algumas coisas básicas, eu diria. Não importa o que acontece lá, eu acho que a emancipação do povo curdo – na medida em que existe um nível de autogoverno – é algo que vale a pena apoiar. Eu mesmo estou muito feliz em apoiá-la. Na medida em que essas comunidades estão experimentando novas formas de governança e querem experimentar novas formas de desenvolvimento urbano, penso que vai ser muito interessante falar com eles. Estou contente por perceber que as pessoas pensam fazer algo diferente. Na medida em que eu possa ajudar ou ajudar a mobilizar ajuda, eu gostaria ser capaz fazê-lo.
É claro que haverá barreiras para isso. Teremos que encontrar maneiras de contornar essas barreiras. Por exemplo, há um grupo alternativo de pessoas da Europa e América do Norte que está tentando agora redesenhar a urbanização em Gaza. Eu acho que, se eles forem realmente capazes de fazer alguma coisa lá, poderiam se mobilizar para fazer algo em Rojava também.
Existem possibilidades reais. Mas falando pessoalmente, gostaria de ser cauteloso em dizer, “oh, isso é uma grande coisa que aconteceu, tudo é ótimo”. Ao invés disso, gostaria de dizer: “olha, acho que as coisas estão avançando numa direção interessante, digna de nosso apoio e discussões; devemos fazer o nosso melhor para tentar apoiar o que a própria população está construindo”.
Você mencionou em uma entrevista à agência de notícias Firat, durante uma conferência em Hamburgo, que o Oriente Médio é uma região caindo aos pedaços. No entanto Rojava está florescendo como uma alternativa neste ambiente caótico, você não acha?
Bem, o que está acontecendo nesta região é uma parte crucial do mundo geopolítico. O Oriente Médio está uma verdadeira bagunça. Todo mundo coloca seu dedo: os russos, os chineses, os americanos, os europeus. É uma zona de conflitos, há bastante tempo. Olhe para o que está acontecendo na Síria, a guerra civil libanesa, a situação no Iraque, e agora o que está acontecendo no Iêmen, no Egito, e assim por diante. É um zona geológica muito instável, em meio a uma configuração geopolítica do mundo também muito instável, que está produzindo desastres para as populações locais.
Mas algo que muitas vezes acontece nas catástrofes é que as coisas novas surgem a partir delas. Podem ser muito significativas. A razão pela qual o desastre produz algo novo é que a estrutura de poder burguês típico desaparece, e as classes dominantes são incapazes de governar. Isso cria uma situação onde as pessoas podem começar a governar-se fora dessas estruturas tradicionais de poder. As possibilidades surgem não só em Rojava, mas também em outros lugares. Algumas das novidades, é claro, não serão muito agradáveis – como o ISIS. Ou seja: não estou dizendo que tudo está caminhando na direção certa. É uma zona de oportunidades, bem como de catástrofes.
Gostaria de falar sobre cidades. Na última década, elas têm importância crescente na política curda. Em Diyarbakir, onde estamos agora, a prefeitura pró-curda está intervindo na vida socioeconômica e política da cidade, bem como na reapropriação de espaços urbanos. Além disso, pela primeira vez, a resistência de Kobane é a resistência de uma cidade – ao contrário de revoltas anteriores na história do movimento curdo, que eram tradicionalmente relacionadas a uma tribo, um líder tradicional, ou um partido político nacionalista que liderava resistência. Quero saber se podemos ligar a resistência em Kobane, ou o exemplo do movimento municipalista em Diyarbakir e outras cidades curdas na Turquia, com o movimento global mais amplo surgido nos últimos anos em lugares como a Praça Tahrir, no Cairo, o movimento Occupy que começou em Nova York, os protestos Gezi em Istambul, ou, mais recentemente, os motins em Baltimore. Você vê uma conexão entre essas formas emergentes de política urbanas de rua?
Sim, o mundo está cada vez mais urbanizado e vemos cada vez mais o descontentamento emergente com a qualidade da vida urbana. Esse descontentamento produz revoltas ou protestos de massa, em alguns casos, como Gezi e o que aconteceu no Brasil em 2013. Existe uma longa tradição de revoltas urbanas — a Comuna de Paris em 1871 e outras eclosões muito anteriores — mas penso que a questão urbana está realmente tornando-se central hoje, e a qualidade de vida urbana tomando a dianteira do que são os protestos contemporâneos.
Mas, ao mesmo tempo, cada vez mais, vemos protesto político internalizado dentro das cidades. O que estamos começando a ver, com as Forças de Defesa de Israel confrontando palestinos em Ramallah e outras cidades, é que não se trata mais de disputas estado-versus-estado — mas de tentativas do estado para controlar o restante da população urbana. Isso ocorre até mesmo nos EUA, em um lugar como Ferguson, onde uma força armada saiu para enfrentar o protesto. E em Baltimore, também. Cada vez mais, eu penso, vamos ver esse tipo de conflito urbano de base surgindo das populações, e veremos cada vez mais os aparatos do Estado afastarem-se das pessoas que deveriam servir, tornando-se parte de os aparatos administrativos do capital que estão reprimindo as populações urbanas.
Em suma, esses tipos de revoltas urbanas emergem de forma desigual em todo o mundo: em Buenos Aires, na Bolívia, no Brasil, etc: a América Latina está cheia desse tipo de material. Mas mesmo na Europa tem havido grande agitação urbana: em Londres, Estocolmo, Paris, e assim por diante. O que temos a fazer é começar a pensar em uma nova forma de fazer política, que fundamentalmente é o que o anti-capitalismo deve ser. Infelizmente, a esquerda tradicional ainda se concentra estritamente nos trabalhadores e no local de trabalho, ao passo que agora é a política da vida cotidiana que realmente importa.
A esquerda é, por vezes, muito conservadora em termos do que pensa ser importante. Marx e Engels tinham uma visão de certo tipo de proletariado. Bem, esse proletariado desapareceu em muitas partes do mundo, mesmo que tenha ressurgido em outros, como China e México, sob distintas condições. Por isso, a esquerda tem que ser muito mais flexível na sua abordagem aos movimentos anti-capitalistas emergentes e em torno da questão da vida urbana que eclode nas revoltas em Baltimore, Praça Tahrir e assim por diante. O que não quer dizer que elas são todos iguais — porque não são — mas há claramente certo paralelo entre esses movimentos.
O que você acha dos possíveis desdobramentos das revoltas ocorridas em lugares como Baltimore, para o movimento global contra o capitalismo? São apenas protestos momentâneos, em condições espaço-temporais específicas, ou podem ser vistos como indicadores de algo fundamentalmente errado com o sistema?
Uma das maiores dificuldades, politicamente falando, é levar as pessoas a ver a natureza do sistema em que vivem. O sistema é muito sofisticado em disfarçar o que faz. Uma das tarefas dos marxistas e teóricos críticos é tentar desmistificar, mas você pode ver isso acontecendo de forma intuitiva, às vezes. Tome, por exemplo, o movimento dos Indignados: algo acontece na Espanha e, em seguida, de repente acontece na Grécia e em outros lugares. Pense no movimento Occupy: de repente, há ocupações acontecendo em todo o lugar. Portanto, não há conectividade aqui.
Um evento específico, como a revolta de Baltimore não significa nada em si mesmo. O que ele faz, quando você o relaciona a Ferguson ou a alguns dos novos fenômenos políticos que estão surgindo, é mostrar que grandes populações têm sido tratadas como seres humanos descartáveis. Isso acontece nos Estados Unidos e em outros lugares. De repente as pessoas começam a ver que se trata de um problema sistêmico. Uma das coisas que deveríamos estar fazendo é enfatizar a natureza sistêmica deste tipo de evento, mostrando que o problema está no sistema.
Eu vivi em Baltimore por muitos anos – e o que está acontecendo lá agora é realmente uma repetição do que encontrei em 1969, um ano após uma série de lugares ser incendiada. Ou seja, passaram-se décadas e as coisas ainda são as mesmas! Você poderia se perguntar, “mas o que mantém tudo da mesma maneira?” Apesar de todas as promessas daqueles que alegaram estarem resolvendo a situação na década de 1970, ou daqueles que afirmam ter a saída para hoje, isso não acontece — e simplesmente não vai acontecer. Na verdade, um monte de outras coisas está piorando.
Baltimore é interessante não só por causa do que aconteceu nas áreas pobres. O resto da cidade realmente tornou-se extremamente rico e valorizado — por isso, surgiram na prática duas cidades. Sempre houve duas cidades, mas agora existem duas cidades com um abismo muito maior entre elas, e todo mundo vê a diferença. Li uma entrevista com alguém na Praça Tahrir, e uma das coisas de que se falava é que sempre viveram em condições não muito abastadas, mas algumas pessoas estavam ficando podres de ricas. Os entrevistados não podiam entender por que as pessoas estavam ficando podres de ricas, enquanto o resto estava empobrecendo ou apenas permanecendo igual. E foi a partir da raiva provocada por essa disparidade que se voltaram contra o sistema. Isto é verdade em Baltimore, algo do tipo: “sua parte da cidade é boa, e minha parte da cidade está em despencando”.
Isso acontece com a maioria das cidades. Você olha ao redor e vê isso em Istambul, em todos os lugares. O que o governo está fazendo a respeito? Bem, está varrendo as pessoas das chamadas áreas de favelas, porque elas estão assentadas em terras de alto valor, e tais terrenos poderiam ser dados para desenvolvedores que poderiam, então, construir centros comerciais e espaços de escritório. É diante disso que as pessoas dizem “não está certo!” É assim que chegamos ao ponto que leva as pessoas a começarem a exercer o seu direito à cidade, que é o de usar a cidade para seus próprios propósitos.
Queremos exercer nosso direito à cidade de nossa maneira particular, que é radicalmente diferente daquela do capital. Queremos fazer um tipo diferente de cidade. Como faremos isso? Nós podemos fazê-lo? Estas são perguntas difíceis. Quando as pessoas levantam essa demanda, outra questão surge: você pode fazer isso dentro da estrutura existente dos direitos de propriedade? Existe, nos Estados Unidos, a crença de que a propriedade privada e a propriedade da terra não são um problema. Parte da solução, eu suponho, surgirá quando as pessoas começarem a perceber que essa concepção é parte do problema. Isso as levará a ver que é preciso chegar a uma estrutura alternativa de direitos de propriedade, que não são particulares. São coletivos, comuns.
Termino perguntando o que inspirou sua vinda ao Curdistão. Algo pode trazê-lo de volta aqui?
Como eu disse, toda esta região é bastante crítica. Tive, não muito tempo atrás, fantasias de que iria me mudar para outro lugar. Pensei que eu pudesse me fixar em Atenas e, então, trabalhar parte do tempo na Turquia, um pouco no Líbano, um pouco no Egito, a zona entre a Europa e essa região. O que está acontecendo aqui parece ser fascinante, eu gostaria de estar presente. Também tenho bons amigos aqui, e uma editora maravilhosa, a Sel Publishing. Devo dizer que eles têm feito um trabalho maravilhoso de traduzir e de me convidar para vir aqui e dar uma olhada nas coisas. Se eu conseguir entrar em Kobane, é porque eles têm trabalhado muito duro para isso.
Espero em breve ver seus livros traduzidos em língua curda – e tenho certeza de que o povo de Diyarbakir ficará feliz em recebê-lo, se você quiser se mudar para essa região. Muito obrigado pelo seu tempo, professor Harvey. Eu espero que você entre em Kobane breve.
Sardar Saadi é ativista que mora em Toronto e estudante de doutorado em antropologia na Universidade de Toronto.
*Na Roarmag
Tradução: Pedro Lucas Dulc
Fonte: Outras Palavras