Dos historiadores que pesquisam a documentação do Departamento de Ordem Política e Social do antigo estado da Guanabara (DOPS/GB) têm relativa certeza do que encontrarão ao abrir as pastas empoeiradas do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ): informações sobre militantes políticos, relatórios sobre a guerrilha urbana, documentos da censura e materiais apreendidos em sindicatos ou em entidades estudantis.
Um dia, entretanto, quando realizávamos pesquisa para a Comissão da Verdade do Rio, nos deparamos com algo diferente: eram filipetas dos anos 1970, que divulgavam bailes de música soul em clubes dos subúrbios cariocas, promovidos por equipes de som como Furacão 2000 e Soul Grand Prix. Apreendido pela polícia política, esse material constitui uma pequena parte de um conjunto de documentos que viriam a ser produzidos pelo DOPS sobre o tema. De relatórios de diligências em bailes a registros de interrogatórios de DJs, a documentação demonstra uma grande preocupação do órgão com a realização dos eventos[1].
Ao aprofundar as pesquisas, novos arquivos foram surgindo. Os bailes também foram objeto de investigação de outros órgãos da estrutura de repressão do regime, como o Centro de Informações do Exército (CIE), e chegaram a se tornar uma preocupação para o Conselho de Segurança Nacional (CSN)[2]. À medida em que as pesquisas avançavam, percebemos que não apenas os bailes eram monitorados: havia uma expressiva massa documental, produzida no curso de investigações sobre a atuação de organizações políticas antirracistas e associações culturais negras criadas durante a década de 1970.
Ainda pouco estudadas, essas fontes sugerem uma série de questões e, ao mesmo tempo, apontam outros caminhos possíveis para as pesquisas sobre o período. Adotar uma perspectiva de análise que leve em conta a dimensão racial[3] é fundamental para compreendermos a razão pela qual a ditadura via como um problema as festas promovidas por “jovens de cor” – como os frequentadores dos bailes eram descritos nos documentos. Ainda mais importante, porém, é compreender a questão racial no contexto do regime ditatorial: há uma especificidade do período ou o que ocorre é a continuidade da velha tradição racista brasileira?
Trata-se, na expressão utilizada pela professora Thula Pires, em relatório sobre o tema, produzido para subsidiar a CEV-Rio, de “colorir nossas memórias” sobre a ditadura. Esse esforço deve se somar a um conjunto de discussões e pesquisas que vêm sendo realizadas no sentido de questionar os limites das narrativas hegemônicas sobre o período. Tais análises têm mostrado que a violência de Estado atingiu com especial intensidade grupos sociais que não costumavam figurar nas histórias e memórias sobre os anos de chumbo: Indígenas, homossexuais, mulheres, negros, moradores de favelas e periferias.
Mas como a análise dos bailes pode nos ajudar a colorir nossas memórias sobre o período? Em outras palavras: quais dimensões do regime ditatorial são iluminadas quando nos dedicamos a pesquisar a repressão aos eventos de música soul?
Um ofício enviado pelo delegado da polícia civil Antônio Viçoso ao diretor do Departamento Geral de Investigações Especiais[4] nos dá uma boa pista. Em 17 de julho de 1976, o Jornal do Brasil publicara uma grande reportagem sobre os bailes soul, criando o nome que marcaria a trajetória deste fenômeno: Movimento Black Rio. Poucos dias depois, Viçoso escreveu o comunicado, em que é possível ler:
em nosso país sempre houve harmonia entre brasileiros, independente de raça e religião. A miscigenação do nosso povo – branco, preto, índio – segundo Gylberto Freire, em ‘Casa Grande e Senzala’, é um privilégio.
Assim, chamava atenção da polícia política e afirmava que aquele assunto era de “magna importância”[5]. O documento evidencia o uso, por parte do agente, da velha ideia de “democracia racial”[6]. Para ele, os bailes eram uma ameaça a este aspecto supostamente constitutivo do “nosso povo”.
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, Fundo Polícias Políticas.
Essa, entretanto, não era uma manifestação isolada de um delegado de polícia. Ao longo da segunda metade da década de 1970, o Serviço Nacional de Informações (SNI) reuniria um dossiê intitulado “Racismo Negro no Brasil”, com mais de 400 páginas de informações trocadas entre órgãos da estrutura da repressão, além de diversos materiais anexados, como revistas, panfletos e textos[7]. A leitura do conjunto documental permite apreender uma lógica dos agentes da repressão que pode ser explicitada, grosso modo, da seguinte maneira: como não existe racismo no Brasil, quaisquer mobilizações que colocam em debate o tema da discriminação contra negros ou que promovem a valorização da cultura negra são subversivas, pois criam um problema racial. Portanto, segundo esse pensamento, os movimentos antirracistas e as associações culturais negras eram, elas sim, racistas.
Nos documentos do dossiê, são correntes as análises apontando que o “Movimento Comunista Internacional”, a “Internacional Socialista” ou os “subversivos” e “terroristas” estariam “se infiltrando”, “se aproveitando” ou “explorando” o tema do racismo. Tais formulações demonstram a incapacidade dos agentes da ditadura de conceber que os próprios negros pudessem formular críticas, se organizar de forma autônoma e se articular politicamente para denunciar a opressão e o racismo.
Ainda precisamos aprofundar nossas análises sobre essa lógica de atuação do regime, para compreender suas nuances e complexidades; mas, é certo que, durante a ditadura, o mito da “democracia racial” foi amplamente mobilizado pelo Estado. Materializou-se em textos legais, em justificativas para a censura, ensejou práticas políticas e, é claro, esteve na base da atuação dos órgãos da repressão.
E como os bailes aparecem nesse quadro? Em testemunho à CEV-Rio, o fotógrafo e ex-presidente do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN), Januário Garcia, deu pistas do motivo pelo qual as festas de música soul foram elemento central da lógica de suspeição da ditadura:
Mas aí o que que acontecia no baile? O que que chamava atenção das forças de repressão? É que o baile estava comendo solto, mas estava comendo solto mesmo, o baile estava no maior embalo, quando estava no maior embalo, parava tudo. Parava tudo, parava música, parava tudo. Subia um negão, pegava o microfone e fazia o maior discurso contra o racismo, contra a ditadura, contra a repressão, sabe? E aí todo mundo parava no baile e ficava todo mundo assistindo. E aí: ‘Cai na caixa!’, e começava tudo de novo. Então, a gente parava o baile três, quatro vezes para fazer isso, está entendendo? E isso assustava porque a garotada estava se ligando, se ligando, né.[8] (Os grifos são meus)
A descrição dos bailes como um espaço de formulação de uma consciência política e uma identificação racial, presente na fala de Garcia, também apareceu em outros testemunhos coletados. Carlos Alberto Negreiros, importante intelectual negro, afirmou à Comissão que pessoas que se tornariam lideranças do movimento negro iniciaram suas trajetórias nos bailes. Nesse sentido, é possível identificar as razões pelas quais aquelas festas se tornaram um alvo importante para a ditadura.
No Relatório Final da Comissão da Verdade do Rio, o órgão apresentou alguns dos testemunhos coletados comprovando que a atenção da ditadura sobre os bailes não ficou restrita a alguns relatórios. No texto, Asfilófio de Oliveira, o Dom Filó, um dos principais organizadores de bailes no período narra como foi sequestrado e levado para o DOI-CODI após um baile. Em outro testemunho, José Fernandes, morador da Rocinha frequentador daqueles festejos, conta que, saindo de uma festa na Penha, foi levado junto a um amigo para dentro de um quartel na Avenida Brasil, onde passou o final de semana sendo torturado. Daílton Lopes Soares, por sua vez, afirma que na entrada dos bailes, as revistas eram constantes, e que sempre havia agentes infiltrados nos eventos.
Trabalhar com estes testemunhos e documentos nos faz deslocar a análise da ditadura e pensar o regime de exceção a partir da experiência de jovens negros em espaços da cidade como Guadalupe, Rocha Miranda, Madureira, Padre Miguel, Ramos, Bonsucesso, Bangu, Maria da Graça, Brás de Pina, Irajá, Pavuna, Coelho da Rocha, Jacaré, Duque de Caxias, Méier, Realengo, Jacarepaguá, Senador Camará, Penha e Nilópolis. Indivíduos e locais que se distanciam enormemente da memória consolidada da “vítima da ditadura” como um jovem estudante universitário da Zona Sul carioca.
Esse deslocamento abre caminho para percebermos as especificidades das violações cometidas contra negros e negras durante a ditadura. Observar essa violência por intermédio da perspectiva histórica nos permite compreender as diferentes nuances da questão racial ao longo do tempo. Ao mesmo tempo, nos ajuda a construir novos instrumentos para lutar contra uma violência que se inicia na escravização de mulheres e homens do continente africano e hoje se expressa no genocídio da população negra nos becos e vielas de nosso país.
Lucas Pedretti é historiador.
[1] Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, Fundo Polícias Políticas, Setor DGIE, Notação 232, fls. 197-220 e Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, Fundo Polícias Políticas, Setor DGIE, Notação 252.
[2] Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, Fundo Polícias Políticas, Setor DGIE, Notação 250.
[3] Em um texto intitulado “Raça e pobreza no Brasil”, Antonio Sérgio Guimarães busca defender o termo “raça” como uma categoria analítica válida e ainda indispensável. Segundo ele, sua posição parte de dois pressupostos: “Primeiro, não há raças biológicas, ou seja, na espécie humana nada que possa ser classificado a partir de critérios científicos e corresponda ao que comumente chamamos de ‘raça’ tem existência real; segundo, o que chamamos ‘raça’ tem existência nominal, efetiva e eficaz apenas no mundo social e, portanto, somente no mundo social pode ter realidade plena”. Ver: GUIMARÃES, A. S. A. Classes, Raças e Democracia. São Paulo: Fundação de Apoio à USP/ Editora 34, 2002, p. 48. Mesmo recusando a “raça” como um dado científico, o autor defende que o conceito só poderia ser dispensado quando não mais existissem grupos sociais que se identificassem “a partir de marcadores direta ou indiretamente derivados da ideia de raça” (Idem. p. 51), e quando as desigualdades, as discriminações e as hierarquias sociais não mais corresponderem a esses marcadores. Em outras palavras, Guimarães defende que na experiência concreta da vida social, a ideia de “raça” ainda opera de forma significativa. Para compreender essa experiência, portanto, não se pode prescindir de mobilizar o conceito. Concordado com Guimarães, uso o termo “raça” neste texto a partir desta acepção.
[4] Nome que o DOPS passa a adotar após a fusão dos estados da Guanabara e Rio de Janeiro no ano de 1975.
[6] Há uma extensa bibliografia que discute os significados desta concepção ao longo do tempo, e como ela moldou as relações raciais no Brasil e as análises produzidas sobre estas relações. São inúmeros os debates acerca do termo, de seus usos políticos ao longo do tempo, e das críticas promovidas pelos movimentos negros. De forma geral, trata-se da ideia de que a característica fundamental da interação entre as raças no Brasil era a harmonia entre negros e brancos (e indígenas). Daí resulta a ideia de que nosso país não seria um país racista.
[7] Arquivo Nacional, Fundo SNI, AC_ACE_109622_76_001, AC_ACE_109622_76_002, AC_ACE_109622_76_003, AC_ACE_109622_76_004.
[8] Acervo CEV-Rio. T
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Fonte: História da Ditadura.