Da saudade das origens à procura da felicidade

Por Miguel Urbano Rodrigues.

Vi ontem um filme que não vou esquecer. O título, Patagónia, é geográfico. Não esclarecia. Que pretendia ao colocar no DVD aquele filme argentino? Nada. Preencher o tempo vazio de uma tarde de domingo.

Daí a surpresa. Durante quase duas horas, Patagónia arrancou-me de um quotidiano morno, e, em viagem de choque, actuou sobre a imaginação e a memória como uma chicotada, lançou-me numa meditação desordenada sobre História, a brevidade da vida e a complexidade fascinante do amor.

O prólogo do filme confunde, perturba, empurra para veredas desconhecidas.

Recorda que em 1865, pouco mais de centena e meia de galeses partiu de Liverpool como emigrantes, rumo à Patagónia argentina. Desembarcaram numa terra plana, entre o mar e montanhas nevadas, desértica, percorrida por tribos tehuelches de caçadores nómadas, os patagões de Magalhães.

Não é narrada a saga dessas famílias galesas. Mas sabe-se que domaram a natureza hostil das terras austrais, venceram, e delas descendem milhares de argentinos, diferentes dos pioneiros da goleta Mimosa. Criaram uma nova cultura, mas enraizados na originária.

Duas estórias, justapostas, se cruzam no filme. A de um fotógrafo e uma actriz que chegam de Gales atraídos pela grande aventura dos compatriotas que na Patagónia se fixaram há século e meio; e a de uma anciã que chega a Gales, com um adolescente, respondendo a um apelo do sangue, para conhecer a aldeia da mãe que a carregava no ventre, como promessa de vida, ao atravessar o Atlântico.

Que senti, fascinado pelas paisagens patagonicas, pelas personagens e pelo seu caminhar em cenários inesperados?

Em cavalgada de associações de ideias, acompanhando a humanidade profunda de gente tão dissemelhante, a minha reflexão subiu pelo tempo às grandes migrações que na Eurásia, na África, na Oceânia, na América transformaram a vida na Terra.

Tudo, sem elas, teria sido diferente no surgir das civilizaçoes, no seu apogeu, declínio e fim. Para bem e para mal. Com o olhar nos cumes nevados da Cordilheira andina e nas pampas que receberam os antigos galeses, recordei o óbvio. São os povos que colectivamente movem o carro da História. Mas quase sempre eles só em situações excepcionais intervêm colectivamente, como sujeito, para lhe mudar o rumo. No tempo imóvel permanecem passivos e são vítimas do egoísmo, da ambição, da crueldade de insignificantes minorias. As rupturas produzem-se quando a condições objectivas favoráveis se somam as subjectivas. É então que irrompem as grandes revoluções.

E minorias são também os que se opõem ao poder, à exploração do homem e aos actos daqueles concentram os bens materiais e oprimem as grandes maiorias, promovendo a miséria e a desigualdade social.

Assim tem funcionado as coisas desde o alvorecer da História.

Por trás de cada migração massiva é sempre identificável em qualquer sociedade uma crise de escassez ou de fome resultante da opressão, ou de um surto de violência.

Isso ocorreu com a fuga em massa de irlandeses para os EUA em meados do século XIX; com a emigração de milhões de europeus após a Revolução de 1848; com a permanente saída de portugueses e espanhóis para a América do Sul; com as vagas ininterruptas de chineses que inundaram terras do Sudeste asiático; e hoje com o êxodo africano para países da Comunidade Europeia e de latino-americanos para os EUA.

Patagónia tocou-me profundamente porque a temática da integração do imigrante encaminha o espectador para uma meditação sobre o absurdo e a beleza da vida.

Desbravadores de um território quase virgem, os descendentes dos pioneiros galeses argentinizaram-se lentamente. Mudaram, como era natural e inevitável, mas até hoje milhares de cidadãos das comunidades da província de Chubut continuam a falar o gaélico dos antigos celtas, a preservar as velhas receitas dos avós, a cultivar a saudade de uma pátria hoje mítica.

Na estória simultânea do fotógrafo e da actriz, eles de Gales somente têm a origem geográfica. Mas o cenário físico e humano da pampa sulista, encantatório e agreste, actua sobre ambos, transformando-os, golpeando as suas frágeis estruturas psicológicas.

Quanto à senhora idosa que viaja para Gales em busca das origens, na companhia do sobrinho que se sente noutro planeta, encontra a morte, como era sua serena aspiração não assumida, à beira da aldeia tutelar submersa pelas águas de uma barragem.

O final de Patagónia prolonga o convite à meditação. O «casal» que está de passagem, vindo da Europa, acaba, por assimilar uma evidência muito esquecida pelos jovens da nossa maravilhosa e trágica era.

Um episódio banal, inerente à condição humana, força-os a repensar o significado das fronteiras do amor e do sexo. Compreendem, sofrendo, que, sendo a vida uma aventura breve, a melhor opção é utilizá-la na procura da felicidade relativa possível, como já dizia o grego Epicuro há 2500 anos.

 

Vila Nova de Gaia, 15 de Maio de 2012

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