Por Igor Grabois, especial para o Viomundo
O senso comum da esquerda produz uma análise da realidade brasileira, dentro de um esquema rígido que menospreza a dinâmica interna do desenvolvimento capitalista no Brasil. No modelo do senso comum da esquerda, o Brasil é um país preso na lógica da dependência, exportador de matérias-primas, submetido aos ditames estadunidenses e a burguesia nacional mera sócia menor do imperialismo.
O desenvolvimento brasileiro seria tolhido pelas forças econômicas externas e pela incapacidade atávica da burguesia brasileira. E os conceitos de desenvolvimento, crescimento e acumulação são confundidos e tratados como um mesmo conceito.
Essa descrição, obviamente, é simplificadora. O referencial teórico das principais formulações dos partidos e organizações de esquerda é mais sofisticado.
Mas o senso comum é simplificador e há uma perda de formulação e debates teóricos na esquerda política, como se essa fosse uma tarefa exclusiva da academia. Este senso comum domina a ação política.
A formulação da esquerda, ainda hoje, é dominada pela teoria da dependência, seja na versão de acomodação entre imperialismo e desenvolvimento nacional de Fernando Henrique ou na visão revolucionária de Florestan Fernandes, das tarefas incompletas da burguesia. Encontram-se, ainda, ecos da estratégia nacional libertadora dos comunistas brasileiros.
Na impossibilidade de desenvolvimento nos marcos da dependência, a saída só pode ser revolucionária. A esquerda brasileira, nas décadas de 60 e 70, construiu um consenso entre as impossibilidades de desenvolvimento capitalista autônomo a solução revolucionária. As diferenças eram de estratégia – etapa nacional ou socialismo – e de método – luta armada ou frente democrática.
Desde então, a economia capitalista cresceu, a industrialização se completou, surgiu uma imensa classe operária e o campo se tornou capitalista sem uma reforma agrária com expropriação do latifúdio. A normalidade democrático-burguesa, construída em paralelo ao mercado capitalista, permite que um partido de origem operária assuma o governo e se mimetize no sistema político.
O modelo dependentista não dá conta desses fenômenos. Então, o período de 2001 para cá se transforma em uma esfinge, tornando ineficaz a ação política da esquerda anti-capitalista.
Para a oposição de esquerda, os governos Lula e Dilma reiteram, sob uma roupagem de esquerda, o papel do Brasil na divisão internacional do trabalho. O país se tornou mero exportador de commodities.
Os governos petistas seriam pró-agronegócio e setor exportador de metais. O boom das commodities teria permitido o crescimento econômico e da renda dos mais pobres. Com a perda de preço das commodities no mercado internacional, o modelo teria entrado em crise, restando políticas compensatórias cooptando setores populares. Isso quando se faz análise econômica, saindo um pouco da diatribe moral.
Para os governistas de plantão, com as políticas sociais e inclusão no mercado de consumo, os governos do ciclo petista estariam levando o país a um novo patamar. Essa análise, em geral, vem desacompanhada de qualquer conexão com a conjuntura da economia. Os resultados seriam fruto exclusivo do acerto das políticas sociais petistas.
No sistema capitalista, a microeconomia teima em contradizer a macroeconomia. Empresas se renovam e fracassam em cenários adversos e positivos. A expansão prenuncia a crise e crise prepara o novo ciclo de expansão. Períodos de baixo e alto crescimento se alternam no tempo histórico.
O móvel do desenvolvimento capitalista é a acumulação de capital privado. A apropriação desta acumulação é privada, mas o processo de produção é social. O processo de acumulação não é linear, é eivado de retrocessos e perdas. É condicionado pela concorrência entre as empresas e espaços nacionais.
O avanço da acumulação de capital gera novas necessidades. Um processo eminentemente quantitativo gera saltos qualitativos. Um devir que se move para além da percepção individual e das idiossincrasias ideológicas dos atores históricos.
Vivemos um desses saltos na acumulação de capital, que exige mudanças na tática política dos representantes das diversas classes e frações de classe.
Não houve no Brasil uma efetiva política redistributiva da renda. Reajustes reais do salário mínimo e transferência de rendas na linha do bolsa-família não são políticas redistributivas. Protegem a renda dos mais pobres e vulneráveis, com impactos sociais e econômicos evidentes.
A estrutura de tributação – forte nos impostos diretos e fraca na taxação do patrimônio – permaneceu intacta nos 12 anos petistas. A apropriação na forma de juros da dívida pública segue impávida.
A desapropriação de terras para a reforma agrária é feita em áreas marginais e em uma fração ínfima do potencial cultivável. Uma tentativa de cobrar royalties para os produtos da extração mineral, por exemplo, empaca no Congresso.
Houve mudanças de participação relativa entre lucros e salários na renda nacional, em função do crescimento do emprego e da massa salarial, mas não houve expropriação dos mais ricos em favor dos mais pobres.
O boom de commodities permitiu o controle do balanço de pagamentos e acumulação de reservas internacionais. Mas a produção de bens primários – agrícolas e minerais – é de cerca de 8 % do PIB e corresponde à metade das exportações.
Mineração e agricultura tecnificada geram pouco emprego e são concentradoras por natureza. A agricultura familiar que produz, em geral, para o mercado interno, ficando fora do mercado internacional. A tributação da mineração é pequena em relação à rentabilidade do setor. Ou seja, os efeitos multiplicadores do setor primário são muito limitados.
Políticas compensatórias e valorização de commodities não explicam crescimento do mercado interno e aumento da massa salarial. Como não houve redistribuição e sim alteração da participação relativa da renda – não confundir os dois conceitos –, o que explica a explosão do consumo na última década?
O crescimento da economia como um todo, muitas vezes não captado pelo cálculo do Produto Interno Bruto feito pelo IBGE. O crescimento da economia capitalista pode trazer ganhos materiais para os trabalhadores pela via do emprego e do salário.
Por isso, a importância de não se confundir crescimento com desenvolvimento, acumulação com apropriação social.
Os números da economia brasileira impressionam. 105 milhões de trabalhadores na População Economicamente Ativa (PEA). Destes, 70 milhões são assalariados, 27 milhões na indústria de transformação, mineração, construção civil e serviços industriais. Nos 3 anos de Dilma, foram gerados ou formalizados mais de 4 milhões de empregos. 19 milhões desde 2003. Quinto mercado mundial de automóveis, 205 milhões de computadores em atividade. Safra de 190 milhões de toneladas de grãos. Podemos continuar em consumo de energia, produção de aço etc.
Em 64, a briga era para limitar a remessa de lucros. Hoje, o ministro da fazenda se reúne com as grandes empresas para discutir a tributação dos lucros obtidos fora do país. O BNDES financia uma empreiteira brasileira para construir um porto em Cuba, cuja retroárea está aberta para trezentas empresas brasileiras, segundo a área internacional da FIESP.
Em recente entrevista para o jornal Valor Econômico, o ex-presidente Lula, questionado por ser garoto-propaganda das empresas brasileiras, respondeu que fazia o marketing sim. E justificou: antes de seu governo, havia duas fábricas brasileiras na Colômbia, hoje existem 44, nenhuma no Peru, hoje há 66.
Do ponto de vista microeconômico, é só dar uma comparada nas grandes empresas em 2000 e hoje. Retomada da indústria naval, da indústria bélica, explosão da indústria automobilística, produção de alimentos, redes de varejo. Os principais setores da economia deram saltos de 2001 para cá.
Setores de produção de componentes, como empresas nacionais de autopeças e insumos eletrônicos já tinham perdido relevância no ajuste do plano Real, nos anos 90. Outros, como o petroquímico, naval, sucroalcooleiro, aeronáutico, construção pesada, logística, agroindústria, papel e celulose, aço, em que pesem as idas e vindas da conjuntura, ganharam novo vigor. Com cerca de R$18 bilhões da FINEP/BNDES para a inovação, dá para antever alguns resultados.
Constatar o crescimento econômico não significa elogio ou aprovação do governo Lula e Dilma. A dinâmica da acumulação necessita da intervenção do Estado. O papel indutor do BNDES/FINEP/Petrobrás, a política de integração sulamericana sob a hegemonia brasileira, o fortalecimento de uma rede de ensino técnico, as grandes obras de infraestrutura via parceria público privada, reequipamento das forças armadas política de conteúdo nacional nas encomendas da Petrobrás são parte de um projeto de classe.
Não é a toa que reforma agrária, mobilidade urbana e desmilitarização da segurança pública não são prioridades nesse governo. O partido de base operária e sindical cumpre a tarefa de dar curso à acumulação de capital. E aplica uma agenda social como parte do pacto de classes necessário para o desenvolvimento capitalista.
Os interesses do capital e as bandeiras da esquerda podem coincidir. A questão da política externa é exemplar. O porto de Mariel em Cuba se tornou anátema dos direitistas de plantão. A empreiteira Odebrecht e a área internacional da FIESP não se tornaram entidades do movimento comunista internacional ao que consta. Estão lá para expandir o capital de origem brasileira e estrangeiro aliado. É sabida a importância de Mariel para a sobrevivência da revolução cubana.
O movimento de expansão da acumulação não é unívoco. Lula, em seu governo, conseguiu alavancar a acumulação de capital, avançando em políticas sociais, sem incomodar a coalizão rentista. Dilma não consegue fazê-lo. O caso do setor elétrico é paradigmático. Para baixar tarifas da energia para a indústria, foi necessário impor limitações nos ganhos dos acionistas da empresas elétricas – que são fundos financeiros, nacionais e estrangeiros, corretoras, bancos etc.
A política energética é diariamente torpedeada. Para fazer a exploração do pré-sal foi preciso impor perdas aos acionistas privados da Petrobrás, diminuindo o lucro operacional da empresa e represando dividendos. Acionistas, por acaso, os mesmos das empresas elétricas.
Câmbio e juros são mais mortais para a economia e para os rentistas. A depreciação do real é mortal para quem faz arbitragem de taxas de juros internacionais. E a Selic e seus aumentos nada têm a ver com o preço do tomate. Selic e câmbio regulam os ganhos dos rentistas. Juro alto e dólar barato juntos, para eles, é melhor que o paraíso. O câmbio melhorou um pouquinho para a indústria. Mas o capilé dos juros segue impávido para os rentistas.
E a parte fraca do pacto, os trabalhadores, quer melhoria nas condições de vida. Milhões não saíram à rua em junho de 2013 à toa.
Malgrado a perda de popularidade pós-junho, o governo tem mantido a sua base social. Nada a ver com a base “aliada” do Congresso Nacional. Os trabalhadores encaram emprego e salário como conquista e a oposição de direita ameaça tirar o emprego e o salário para dar carne à coalizão rentista.
E a oposição de esquerda corre o risco de se isolar e entregar o que resta da sua base social para o PT e a CUT. Ao não enxergar o estágio do desenvolvimento do capitalismo, sai gritando coisas legais como Fora Copa ou denunciando corrupção. E pedindo impeachment da Dilma em companhias mais que suspeitas.
Ao paralisar a análise, não se elabora estratégia e tática. Não se faz política, não se constrói base social. Não se consegue descobrir os móveis de luta.
Estamos na iminência de um salto da acumulação de capital no Brasil. O mercado interno consegue, hoje, realizar a mais-valia produzida no Brasil. Os monopólios de origem brasileira ultrapassam as fronteiras nacionais. É natural que as posições da política externa se choquem com as posições dos EUA. Essa política externa é mais do que a formulação dos filhos de Ítalo Zappa do eixo sul-sul. Faz parte do projeto de classe, apesar de toda ojeriza da mídia com o apoio aos “bolivarianos” – salvação das exportações de manufaturados brasileiros.
Como dito acima, mudanças quantitativas levam a mudanças qualitativas. Para que o salto se confirmasse e se rompesse com a estagnação, o partido de origem operário assumisse o governo. O resultado, neste momento, ressalte-se, foi a melhoria da renda dos trabalhadores e o crescimento da pequena-burguesia, na acepção clássica do termo, o tal do “novo empreendedorismo”. Novos concorrentes aparecem para ameaçar os ganhos e os privilégios da pequena-burguesia tradicional.
Novos pólos regionais surgem – construção naval em Pernambuco, Bahia, Rio Grande do Sul, pólo farmacêutico em Goiás, desconcentração da indústria automobilística etc – com suas pautas e necessidades. A coalizão rentista é tangida diminuir seus ganhos, na via da depreciação do real e das restrições descritas na Petrobrás e setor elétrico.
A luta entre as frações de classe é feroz. O risco de se por fim ao descasamento da representação política e as novas forças sociais é grande nessas eleições de 2014. A disputa política e midiática dentro do campo burguês tende à radicalização. Um novo momento histórico exige uma nova hegemonia no campo do capital.
Aos trabalhadores é posta a opção de se fortalecer o pacto atual do governo. À oposição de esquerda, o risco de se diluir em meio à oposição de direita. A crítica moral é muito pouco. Cabe superar a crítica da política econômica e partir para a crítica da economia política.
A esquerda anti-capitalista deve manter a crítica ao modo de produção, que mais cedo ou mais tarde, leva aos trabalhadores a perda dos ganhos materiais conquistados no âmbito do sistema.
Fonte: Revista Fórum
Foto: Ilustração