Por Gibran Mendes.
Uma rua principal, outras seis ou sete transversais e muita, muita lama. Neste local, ao lado do lixão, vivem aproximadamente 1.200 pessoas de 800 famílias em barracos construídos com os próprios punhos. No máximo contaram com a ajuda de vizinhos. Durante a noite, o frio de Curitiba só não é pior que a tensão vivida por essas pessoas. Isso explica-se: a proximidade do despejo. Esse é o cenário e único caminho para fugir da noite fria para quem vive na ocupação Tiradentes. O local fica em um bairro periférico da capital paranaense, nas proximidades da divisa com Araucária, município da região metropolitana.
No centro da disputa estão as 800 famílias contra grupos econômicos que pretendem ampliar um lixão destinado a resíduos industriais. Segundo moradores a área já está sendo invadida com este propósito. Em um córrego, que deságua no Rio Barigui, é possível ver espumas que resultam do lixo jogado ali sem nenhum tratamento. O terreno pertence a empresa Stirps Empreendimentos e Participações Ltda. Contudo, o negócio quebrou e tornou-se uma massa falida que agora tenta sublocar o terreno para a Essencis Soluções Ambientais, cujo intuito é transformar o espaço, hoje destinado a moradia destas famílias, em um grande lixão.
“A Essencis é repudiada por toda a CIC (bairro de Curitiba) que odeia o lixão. Ele traz muito mal cheio. Isso acontece em todas as comunidades. Inclusive existem vários abaixo assinados contra o lixão porque ele traz urubus, poluição e mau cheiro. Inclusive vilas de Araucária também reclamam”, comenta um dos coordenadores do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Fernando Pereira (foto).
Apesar de negociações já tenham acontecido, Pereira reclama da falta de interesse do poder público para resolver a situação. Embora nesta quarta-feira (8), após os moradores da Tiradentes terem ocupado a frente da Prefeitura de Curitiba, tenham conseguido uma reunião com chefe do executivo municipal, Gustavo Fruet (PDT) que resultou em algumas promessas, como a formação de um grupo para avaliar as possibilidades para as 800 famílias.
“A ÚNICA AÇÃO QUE ELES MANIFESTARAM (AUTORIDADES PÚBLICAS) FOI ABSOLUTAMENTE NADA. QUANDO O LIXÃO CHEGOU ESSAS COMUNIDADES JÁ ESTAVAM AQUI E HOJE ELES CULPAM AS COMUNIDADES POR ESTAREM AQUI. NA VERDADE, ELES DESRESPEITARAM COMPLETAMENTE QUALQUER REGULAMENTO DE PERÍMETRO”, ACUSA.
Neste caso, além do córrego, o próprio terreno da ocupação sofre com o despejo de lixo irregular. De acordo com moradores, restos de pneus, vidros e outros materiais são descartados ali e em outros terrenos do entorno. Até mesmo resíduos hospitalares já foram encontrados. “Hoje o aterro funciona em um terreno que não é deles”, garante Pereira.
Enquanto isso, entre a expectativa de uma casa própria com um valor razoável e a apreensão pela proximidade da reintegração de posse, a ocupação segue com vida própria. Em meio aos cachorros e crianças que correm pelas ruas e vielas da Tiradentes é possível ver vários pequenos comércios. Lá tem de tudo. Desde frutas e legumes até cigarros e outros bens para a venda. É a forma de organização dos habitantes.
Assembleias são realizadas toda a semana. Pela conta da coordenação já foram mais de 50 desde que o terreno foi ocupado, em 17 de abril de 2015. O local é dividido em setores. Atualmente são cinco, segmentados por letras e cada um deles tem seu próprio coordenador. O objetivo é organizar as atividades e garantir que nada de errado aconteça no local. “Aqui é proibido cortar árvores, principalmente porque sabemos que os juízes são muito sensíveis com as árvores, embora com as pessoas nem tanto”, ironiza Pereira.
Nas contas dele já foram cerca de 20 atos realizados em diversas sedes do poder público. Câmara de Vereadores, Assembleia Legislativa, Prefeitura, Governo do Estado, nada escapa. “A mobilização faz parte da cultura das pessoas para conseguir resistir”, explica Pereira.
Cultura também é o que não falta na ocupação. Há uma biblioteca, espaço de alfabetização, um cine clube realizado semanalmente e até mesmo cursos, como um de informática. Tudo dentro da ideia central de formação de pessoas.
Para estas atividades os moradores contam com o apoio de voluntários, como a jornalista Vanda Moraes. “Atuar na periferia é entender que a maior parte das nossas teorias sociais não se aplica na prática e que o trabalho que temos pela frente na construção do Projeto Popular é gigantesco e urgente. Por isso, estar lado a lado com cada família da Ocupação Tiradentes lutando contra essa ameaça de despejo é caminhar, aqui e agora, nesse caminho difícil e necessário, para garantir a dignidade dessas pessoas”, afirma ela que é militante do Levante Popular da Juventude.
O coletivo está presente na ocupação desde meados de 2015. As atividades foram intensificadas neste ano com programação em todos os finais de semana. “Organizamos, por exemplo, o Sarau de Inauguração da Biblioteca cujo tema foi “13 de Maio não é Dia de Negro” e cujas pautas foram contra o extermínio da juventude negra e contra o racismo sistemático. O sarau também lembrou a luta contra o despejo das 800 famílias que têm a Ocupação como seu local de moradia e de resistência”, relata. Do hip-hop à capoeira, nada relativo a cultura negra escapa. Tudo baseado na pedagogia de Paulo Freire.
Fagner de Abreu, de 32 anos, mora na ocupação desde o primeiro dia. Fica lá sozinho, explica ele, enquanto desvia das poças de lama no chão. A esposa e a família moram na Lapa. “Estava arrumando a casa para trazer ela com as crianças, mas agora ficou mais complicado. Não dá para trazer eles para cá e depois ir todo mundo para a rua”.
Abreu conta que estava em um albergue antes de ir para a ocupação. Por que foi para lá? “Para tentar ter a minha casinha e trazer a minha família. Não tenho condições de sustentar tudo. O aluguel está muito alto e eu vim para cá tentando ter meu espaço, minha liberdade. Queremos pagar, mas em um preço acessível”, lamenta. Para se ter uma ideia, o aluguel de um “fósforo” (casa pequena, do tamanho de uma caixa deste material) na Vila Corbélia, vizinha da ocupação, custa aproximadamente R$ 600.
Ele atualmente trabalha fazendo bicos. “Mas não com carteira registrada. Quando tem serviço eu pego, faço o que tiver que fazer. Seja pintura, atividade de pedreiro, o que aparecer”, relata. Com o trabalho é possível, também, abstrair. “Estamos nervosos e apreensivos. Saímos para trabalhar e não sabemos se quando voltarmos a nossa casa estará no lugar. Dá muito medo, entendeu? Se eu sair daqui não tenho para onde ir, assim como as 800 famílias que estão aqui. Estamos aqui por que precisamos, ninguém quer morar do lado do lixão, mas não temos para onde ir”, afirmou.
Em situação semelhante está a aposentada Maria Maciel, de 60 anos. Ela convidou a equipe de reportagem para conhecer a sua casa de três cômodos. Um banheiro, ao lado do quarto. Por cima da cama um varal improvisado e na entrada uma sala que divide espaço com um pequeno espaço para comércio. O espaço foi construído com suas próprias mãos com ajuda de amigos. “Ao invés do lixão, o local deveria ser de moradia. Nós somos prioridades, os seres humanos”, contesta a aposentada.
O alvo preferido é o governador Beto Richa (PSDB), cuja a Companhia de Habitação do Paraná (Cohapar) pouco ou nada fez para buscar soluções para as 800 famílias. “Se estamos aqui é porque faltou planejamento de casas. Ele (Richa) poderia ter feito um planejamento para nos acolher e não mandar uma ordem de despejo para a polícia vir bater”, disse dona Maria que é viúva, mãe de três filhos adultos e criados, por isso, segundo ela, mora sozinha.
A partir das 9h até às 20h fica ocupada com seu pequeno comércio. Vende um pouco de tudo, segundo ela. “Mas vende bem”, garante. Na prateleira é possível observar cigarros, doces e outros tipos de alimentos industrializados.
Enquanto convivem com o medo do despejo, as famílias da ocupação Tiradentes vão avançando e conquistando apoio. Na saída, a equipe de reportagem encontrou uma das pessoas que estão do lado dos moradores. José Aparecido Ferreira, de 57 anos, olhava curioso para os repórteres.
De papo fácil, ele revelou que faz mudanças na ocupação e por isso passa o dia todo ali. “Moro no Tatuquara e venho ajudar. O pessoal aí tá sem lugar para ir. Então precisa arrumar um terreno para eles, né? É um pessoal humilde, gente trabalhadora e que precisa de uma casa. É só arrumar um terreno que eles dão um jeitinho. Se tiver casa melhor ainda”, projeta.
José Aparecido diz entender o drama vivido pelas famílias e apoia a ocupação. “Está difícil. Eu acho errado tirar o povo daqui para colocar um lixão. Ninguém quer nada de graça. Hoje está difícil pagar, mas com uma parcelinha baixa o pessoal consegue. Eu já tenho a minha casa, mas apoio esse pessoal porque todo mundo precisa de um lugar para morar”, contou antes da despedida.
Fonte: Jornalistas Livres