Cultura da violência e tortura

dedoPor Thiago Burckhart, para Desacato.info.

O Brasil é um país marcado por uma cultura da violência. Uma violência não somente objetiva, concreta, mas também subjetiva, simbólica. Essa violência é reproduzida no nível da cultura, das trocas simbólicas e das representações, e alcança a dimensão da vida concreta na medida em que se transforma em ações. Trata-se de uma cultura irrefletida, e portanto, antiética, que foi construída para a manutenção do privilégio de alguns e da exclusão de outros, alcançando praticamente todas as dimensões da vida, seja pública ou privada, calcando-se em preconceitos e funcionando da mesma forma que um sistema de opressão.

Apesar de vivermos sob a égide da Constituição de 1988 que garante formalmente a democracia como regime político do país, o autoritarismo é a ordem. O autoritarismo não é somente um regime político-institucional, mas é também (e, sobretudo) uma cultura. O clássico “sabe com quem está falando?”, como atesta o antropólogo Roberto Damatta, é da ordem do dia da sociedade brasileira, marcada pelas desigualdades sociais e por uma profunda estratificação da sociedade em níveis simbólico. A violência reproduz-se nesse contexto como cultura, mas que tenta a todo momento se auto-negar, afinal não é agradável dizer que a sociedade brasileira é, majoritariamente, autoritária e violenta.

Contudo, é nos corpos subjugados dos excluídos e marginalizados que essa cultura se demonstra a sua face mais aguda. De fato, a violência tem níveis e se expressa de diversas maneira. Mas é sobre os mais fracos que ela se manifesta de modo mais intenso, que se reproduz de modo mais fácil. É nesses corpos que a violência encontra o seu terreno, o seu espaço. Apesar de ser muito bem pulverizada, a cultura da violência elege algumas figuras, e sob elas despeja um fardo mais pesado, sendo violentados cotidianamente em razão de ser, ou seja, de sua própria condição, tendo negado a estes o seu direito de ser, como dizia Hannah Arendt.

A partir disso, se reproduz a cultura do estupro, e os espancamentos nas ruas do país. Em 2015 a ONG Transgender Europe (TGEU) divulgou uma pesquisa que afirmou que o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais em todo o mundo. Entre janeiro de 2008 a março de 2014, foram registradas 604 mortes no país. Outra pesquisa ainda mais recente, realizada neste ano, o nornal estadunidense New York Times afirmou que o Brasil vive uma “epidemia de violência contra homossexuais”. De acordo com o Grupo Gay da Bahia, no ano de 2015 houveram registros de 318 mortes de homossexuais no Brasil.

Os números são alarmantes e o cenário é assustador. Como afirma a antropóloga Debora Diniz, os corpos marcados ou sem vida são a prova de sua própria precarização, são a prova do poder normalizador que avança pelos corpos para discipliná-los. Diria ainda que são a prova da cultura da violência. Outro grupo que também tem diariamente seus corpos subjugados é a população indígena, ainda submetida a genocídios constantes, à morte subjetiva e objetiva de seus corpos. A cultura da violência, que encontra sua dimensão extrema na morte desses corpos, é o cotidiano da realidade brasileira.

Tortura como problema crônico

Uma prática ainda comum no Brasil é a tortura, sendo esta um dos resquícios do período da ditadura militar que ainda estampa a face do poder repressivo do Estado brasileiro. Calcada na cultura da violência, a tortura segue sendo praticada no país, principalmente nas prisões e delegacias brasileiras, de acordo com a Organização Human Rights Watch. Em recente relatório, publicado em 2014, a organização afirmou que as autoridades que cometem abusos contra detentos “raramente são levados à Justiça”, citando a condenação de 48 policiais pela morte de detentos na prisão paulista de Carandiru como uma exceção.

A ONG fez duras críticas à impunidade das autoridades policiais brasileiras que se envolvem em práticas abusivas e continuam impunes, classificando o problema como “grave”. De fato, a impunidade pode servir de motor para a perpetuação da cultura da violência por meio de práticas abusivas. Outro relatório publicado em 2016, realizado pelo relator especial em tortura da Organização das Nações Unidas (ONU), atesta que a tortura ainda é uma prática recorrente no Brasil. A tortura não é um problema isolado no país, conclui o relator, sendo uma prática difusa praticada pelo braço repressivo do Estado.

A violência no Brasil, para além dos altos índices de criminalidade, é elevada a uma espécie de razão de Estado. Não conseguimos ainda superar o ranço da ditadura militar e construir uma visão comum de que não é mais possível que ocorram abusos por parte do Estado. Prova disso é o fato de não termos aprimorado no plano jurídico uma Justiça de Transição capaz de punir os torturadores da ditadura, fato este que ocorreu em muitos dos países latino-americanos que também passaram por regimes de exceção. Nesse sentido, a única forma de romper com este ciclo é problematizar a questão. A cultura da violência deve ser problematizada, discutida, contestada, seja em escolas ou em faculdades, nos espaços públicos e privados. É a partir disso que será possível aprimorar o senso ético sobre essa prática.

Thiago Burckhart é estudante de Direito.

 

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