Por Gilberto Maringoni
A vicepresidenta argentina e presidente do Senado Cristina Fernández de Kirchner (CFK) realizou uma manobra política ousada e surpreendente, na semana que passou. Se se dará certo ou não é outra história. Ela literalmente chutou o balde da agenda nacional, impôs seus termos para o governo e para a sociedade e tenta colocar a oposição na defensiva, depois de um fiasco eleitoral da situação.
O domingo 12 de setembro tornou-se inesquecível para o peronismo. Naquela data, a aliança governista do presidente Alberto Fernández, a Frente de Todos (FdT), foi surrada nas eleições Primárias, Abertas, Simultâneas e Obrigatórias (Paso) em todo o país. A votação destina-se à escolha de candidatos dos partidos com vistas às eleições parlamentares de 14 de novembro, quando serão renovadas metade das cadeiras da Câmara dos Deputados e um terço das do Senado. Não é um resultado definitivo, mas expressa o profundo desgaste de um governo progressista e um preocupante avanço da direita.
A aliança neoliberal Juntos por el Cambio (JxC), do ex-presidente Mauricio Macri, obteve 40% dos votos, contra 31% da situação. No plano nacional, o governo foi à lona em 17 das 23 províncias, sendo também derrotado na cidade de Buenos Aires. Nas eleições de 2019, a FdT havia vencido em 19 províncias. E surgiu um postulante de extrema-direita, Javier Milei, com 14% de votos na capital.
A revista Economist, de 18 de setembro, assinala que os resultados indicam a possibilidade dos peronistas serem derrotados na próxima disputa presidencial. Segundo a publicação, “Os investidores esperam que uma vitória da oposição em 2023 possa pôr fim às tentativas fracassadas do atual governo de impulsionar o crescimento por meio de regulamentações, incluindo controles cambiais, congelamento de preços e proibições de exportação”.
Desgastes oficiais
A administração federal sofre três ordens de desgastes: a persistência da crise econômica herdada do macrismo (2015-19), os efeitos da pandemia e tropeços sérios de membros do governo, a começar pelo presidente.
Na seara econômica, apesar de uma expansão de 2,6% do PIB no primeiro trimestre deste ano, o resultado subsequente tem frustrado a expectativa de uma expansão de 6,3% em 2021, apontada pela Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal). O resultado é um aumento do desemprego que chega a 12%, de acordo com o Idec, e de uma inflação de quase 50% ao ano.
O quadro é agravado pela pandemia, que já ceifou 114 mil vidas, porcentagem em relação ao total da população semelhante aos 600 mil mortos brasileiros. O governo também perdeu popularidade por força de três lockdowns decretados entre março de 2020 e janeiro de 2021, que estão entre os “mais longos e rígidos do mundo”, nas palavras da Economist. As medidas ganharam franca oposição de setores empresariais, em especial o comércio e a grande mídia. Somente nas últimas semanas, a vacinação de 64% da população com pelo menos uma dose, e 43% com duas, conseguiu deter a infecção de 12% da população, ou 5,5 milhões de pessoas.
Por fim, há tropeços sérios dos governistas. Em agosto último foram divulgadas fotos que mostram Alberto Fernández promovendo uma festa de aniversário para sua namorada Fabiola Yañez, na residência oficial de Olivos, com a presença de 12 pessoas. O registro se deu em julho de 2020, auge do período de quarentena, quando reuniões desse tipo eram proibidas por lei. A isso se soma a renúncia do ministro da Saúde, em fevereiro, por ter furado a fila da vacinação, juntamente com políticos e simpatizantes importantes.
Em 20 de agosto, a Universidade de San Andrés divulgou sua última edição da pesquisa periódica de satisfação política e opinião pública. A inflação assume o indiscutível topo do descontentamento popular (44%), seguida pela corrupção (42%) e a insegurança pública (35%). Curiosamente, o desemprego ocupa a quarta posição (27%). Um total de 73% dos entrevistados considera que a situação nacional piorou desde maio. A derrota nas urnas era bola cantada.
Ao comentar os resultados, na noite de domingo, Alberto Fernández, visivelmente constrangido, falou: “Evidentemente, há algo que não fizemos certo”. Três dias depois, cinco ministros ligados à Cristina e tidos como ala esquerda do governo, pediram demissão, explicitando forte crise palaciana.
Virando o jogo
Foi diante de um governo literalmente no chão que Cristina Kirchner decidiu mudar o jogo de forma estridente. Na tarde de quinta-feira (16), dois dias após uma reunião com o presidente, na qual pouco falou segundo relatos de participantes, ela postou em seu blog pessoal e em suas redes uma carta à população, com duríssimas críticas ao governo do qual faz parte, sem renegá-lo em momento algum. O título é “Como sempre, sinceramente…”, repetindo o nome de seu livro Sinceramente, catatau de quase 600 páginas que mesclam autobiografia e depoimentos políticos, lançado em abril de 2019, meses antes da eleição presidencial. O blog chegou a sair do ar, pelo acúmulo de acessos, o que levou centenas de sites e redes de apoiadores, além da mídia tradicional a replicarem freneticamente o documento.
Na carta, ela se move na estreita linha da crítica solidária e da oposição aberta. Cristina é mestra em criar fatos políticos e sabe promover gestos públicos ruidosos. Entre conversas palacianas e um tranco na administração pública, optou pela segunda alternativa. Nos primeiros dias, parece ter acertado. A discussão sobre a derrota peronista saiu de cena em favor da reestruturação orgânica e política do governo.
CFK parece ter pesado cada palavra de seu arrazoado. Começa alegando que “durante o ano de 2021 tive 19 reuniões de trabalho, em Olivos, com o Presidente da Nação (…) por sugestão minha”. Em todas, segundo o texto, ela conta ter alertado o chefe do Executivo para uma “situação social delicada e que resultava entre outras coisas, em atrasos salariais, falta de controle de preços – especialmente nos alimentos e remédios – e falta de trabalho, sem ignorar, obviamente, o impacto das duas pandemias: a macrista primeiro e a de saúde”. E ataca de frente o que considera “uma política de ajuste fiscal errada”, que teria consequências eleitorais.
E após sugerir nomes para o ministério, ela sentencia: “Confio sinceramente que, com a mesma força e convicção com que enfrentou a pandemia, o presidente não apenas relançará seu governo, mas também se reunirá com seu ministro da Economia para examinar os números do orçamento. No ano passado, quando foi apresentado, ficou estabelecido que o déficit fiscal seria de 4,5% do PIB. (…) Até agosto deste ano (…) e faltando poucos dias para as eleições, o déficit acumulado executado neste ano era de 2,1% do PIB”. Ela aponta a existência de 2,4% do PIB já contratados para serem utilizados em investimentos.
Depois de denunciar o que considera “os problemas deixados” por Maurício Macri e a necessidade de recuperar a ação econômica e social do Estado, a vicepresidenta finaliza: “Peço apenas ao presidente que honre essa decisão… mas acima de tudo, tomando também as suas palavras e convicções, o que é mais importante do que tudo: que honre a vontade do povo argentino”.
Por fim, uma inevitável carteirada. Cristina destaca duas vezes naquelas linhas o que poderia se denominar de seu lugar de fala: “Quando tomei a decisão, e o faço na primeira pessoa do singular porque era assim mesmo, de propor Alberto Fernández como candidato a presidente de todos os argentinos, fiz com a convicção de que era o melhor para o meu país”.
Críticas, mas não mudança na Economia
Embora tenha dirigido suas baterias para a Economia, Cristina Kirchner não sugeriu trocar o ministro da área, até porque Martín Guzmán, 37 anos, guarda sólida distância de figuras como Antônio Palocci e Joaquim Levy, condestáveis ultraliberais dos governos de centroesquerda brasileiros. Após concluir seu doutorado na Universidade de Brown, nos Estados Unidos, Guzmán integrou a equipe de Joseph Stiglitz, Nobel de Economia (2001), na Universidade de Colúmbia. Lá se especializou em modelos de reestruturação de dívidas soberanas. O conhecimento acumulado o levou a enfrentar uma dura renegociação de US$ 66 bilhões dos títulos da dívida pública argentina, cerca de 20% do total, cujos vencimentos em 2020 colocariam em risco a estabilidade do governo, logo em seu primeiro ano. Totalmente denominada em dólares, a dívida é fator de permanente risco em um país que sofreu forte desindustrialização nos últimos 40 anos e em que o PIB encolheu 9,9% em 2020, de acordo com o FMI.
Se queria uma alteração da agenda nacional, Cristina teve pleno êxito. Pouco mais de 24 horas da publicação da carta, às 22h30 da sexta (17), Alberto Fernández anunciou a recomposição geral de seu gabinete, incluindo cinco novos ministros e acatando todas as sugestões de sua vice. Os auxiliares demissionários da quarta voltaram atrás e seguem no governo. O pr5esidente teve um sábado de intensas articulações com governadores e a preparação de uma série de medidas de impacto para a população mais pobre, o que pode incluir um aumento de 53% no salário mínimo. O colunista Daniel Fernández Canedo, do oposicionista Clarín, escreveu na sexta (17), em tom de crítica, que “a receita kirchnerista (…) continua a mesma: aumentar os salários e expandir os gastos públicos a todo custo”.
No domingo à noite, Axel Kicilof, governador de Buenos Aires, palco da maior derrota peronista, também anunciou mudanças de rota em sua administração.
Relação custo/ benefício
A um custo político ainda não avaliável, ficou claro quem comanda o governo. O maior prejuízo vai para a autoridade de Alberto Fernández. Nada pior para um dirigente a evidência de que não dirige. A aposta a ser conferida é se o peronismo recuperará em novembro os votos perdidos agora.
As mudanças no governo se inclinam à esquerda ou à direita? Difícil avaliar a princípio. O novo chefe de gabinete, Juan Manzur, ex-ministro da Saúde de CFK, dificilmente pode ser visto como alinhado aos setores mais progressistas do peronismo, uma vez que chegou a se aproximar de Macri, em 2017, quando era governador de Tucumán. Os demais nomes podem oscilar do centro à esquerda.
Ao que parece, Cristina não busca inflexões ideológicas, mas colocar no gabinete dirigentes políticos experientes, com senso prático, capacidade de iniciativa e aptos a defender o governo em qualquer situação. Ao invés dos chamados quadros técnicos indicados anteriormente por Alberto Fernández, a ex-presidente apelou ao que o articulista do Diário AR, Diego Genoud classifica como “profissionais do poder, criados na escola peronista”. Seriam “Guerreiros incombustíveis de um longo passado, rejeitados pela oposição que vai do arco dos Juntos por el Cambio ao progressismo governista. Eles não são ministros que se distinguem por sua simpatia, mas por uma dupla condição: sua experiência de governo e suas múltiplas relações com fatores de poder”.
Tudo muito bem, tudo muito bem, mas a pergunta do início segue valendo: as intensas movimentações da semana trarão vitória para o governo daqui a dois meses? Ninguém sabe. Mas a trombada oficial nas Primárias parece ter virado notícia velha.