Crise migratória na Europa: um aviso à humanidade – parte 1

Por Maurício Abdalla.

Os emigrantes cubanos possuem um direito que nenhum outro de qualquer nacionalidade no mundo possui. Os EUA concedem-lhes, por lei, o direito automático de obter visto permanente e permissão para trabalho legal apenas ao pisar o solo estadunidense, não importam os meios utilizados para a viagem.
Um sonho dourado para milhões de latinos de outros países que enfrentam toda sorte de riscos e até a morte para cruzar a fronteira do México e ainda amargar uma vida na ilegalidade na terra do Tio Sam. Para os cubanos, basta atravessar o Estreito da Flórida para viver como imigrante legal. Para isso, muitos recorrem às balsas.

Qualquer foto de uma navegação improvisada, com menos de uma dezena de cubanos enfrentando riscos de naufrágio e a fúria de tubarões para alcançar a costa da Flórida e usufruir desse direito exclusivo é razão suficiente para despertar o julgamento tão sumário quanto simplista: pessoas migrando de Cuba para os EUA é a prova irrefutável da crueldade ou do fracasso do socialismo cubano.

A conclusão, no estilo quod erat demonstrandum, encerra o assunto: o capitalismo é o único sistema possível e qualquer experiência diferente gera consequências trágicas, como a tentativa de fuga de pessoas para países livres. Fim da discussão.

Nenhum dado, estatístico ou factual, é considerado. Nenhuma análise é feita, seja econômica, geopolítica, histórica… nada. A conclusão é automática não pela força das evidências ou por algum tipo de saber prévio de quem profere o juízo, mas porque a divulgação midiática de fotos de balsas com cubanos migrando é feita por meio de um pacote, uma espécie de “venda casada”: entregam-nos a imagem e a interpretação que devemos fazer– um “combo” que nunca é vendido separadamente.

Para quem o adquire, é um produto portátil, de fácil manejo, que pode ser prontamente utilizado em qualquer discussão de política e economia internacional.

“Por que, então, fogem de Cuba?” Pergunta retórica para a qual o proponente supõe já haver uma resposta conhecida de todos, mas que ele mesmo não saberia responder. Não precisa: o pacote já foi vendido em massa. É como se todos já soubessem a resposta: se há migrantes que fogem de Cuba para os EUA, é porque o sistema cubano não presta. “Se fosse bom, por que fugiriam?” – é o mantra repetido à exaustão.

Outra realidade, porém, jamais apareceu com o mesmo destaque. Mas no ano de 2015 o problema, existente há muito tempo, tomou a proporção de uma grave crise humanitária e não poderia mais ser desprezado pelos noticiários. Começaram a jorrar as imagens de dezenas de milhares de pessoas fugindo de diversos países da África e Oriente Médio, tendo como destino a Europa desenvolvida.

Fotos e vídeos de barcos abarrotados a ponto de naufrágio, veículos improvisados e clandestinos transportando famílias inteiras, pessoas a pé por longuíssimas distâncias passaram a fazer parte dos noticiários internacionais, principalmente depois que entraram na pauta as notícias de cadáveres flutuando no Mediterrâneo, pessoas mortas congeladas em caminhão frigorífico e corpos de adultos e crianças trazidos pelas ondas para jazerem em uma praia qualquer. E tudo culmina na dramática e chocante imagem de uma criança síria sem vida que parecia dormir serenamente nas areias de uma praia da Turquia.

A aparente paz onírica do menino Aylan Kurdy era, na verdade, o retrato fúnebre não apenas de uma criança, mas da realidade de milhões de seres humanos em fuga de seus países. O Alto Comissariado da ONU para Refugiados informou que 59,5 milhões de pessoas no mundo tiveram que deixar suas casas em 2014 em razão de perseguição e violência generalizada. Isso representa cerca de 42.500 pessoas por dia ou 2,5 milhões a cada dois meses. É como se a cada bimestre mais do que a população inteira de Sergipe se deslocasse em busca de um novo país que a acolhesse.

Segundo os dados divulgados no fim de 2014 pela Organização Internacional de Migrações (OIM), morrem pelo menos oito migrantes por dia tentando chegar a um país mais desenvolvido. A maior parte deles é proveniente da África e do Oriente Médio.

Poderíamos somar a esses números as centenas de milhares de migrantes que tentam entrar nos EUA por vias clandestinas e as centenas que morrem por ano nesta tentativa, em fuga de seus países na América Latina. Ou o fato, pouco divulgado, de que os EUA construíram um muro separando-o do México para impedir a imigração ilegal e mobilizam um verdadeiro exército de agentes para proteger suas fronteiras do êxodo latino – tratamento bem diferenciado do que é concedido aos imigrantes cubanos. Mas, fiquemos apenas na Europa, que é o assunto do momento.

Duas perguntas se fazem essenciais no caso que agora se tornou preocupação mundial e ficou conhecido como “crise migratória europeia”. A primeira é “de onde vêm esses migrantes?” Neste ano de 2015, 43% das pessoas que chegaram aos países europeus vieram da Síria, 12% do Afeganistão, 10% da Eritréia, 5% da Nigéria e 3% da Somália. Os outros 27% distribuem-se entre países da África, como Etiópia, Sudão, Sudão do Sul, e do Oriente Médio, como o Iraque, que já esteve entre os primeiros da lista de refugiados depois da invasão estadunidense.

A segunda pergunta essencial é “de que fogem essas pessoas?” Há dois tipos de respostas simplistas a esta segunda questão. Como todos os países de origem desses refugiados são capitalistas, pode-se, com muito mais direito, resumir a discussão à mesma simplificação ideológica que se usa para interpretar o caso de migrantes cubanos. Disse “com muito mais direito”, pois os números são proporcionalmente muito mais significativos e o custo em vidas humanas é incomparavelmente superior.

Alguém poderia encerrar o assunto atribuindo a fuga de dezenas de milhões de pessoas da África e Oriente Médio (lembre-se que também se deve acrescentar a América Latina) simplesmente ao “capitalismo”. Com a mesma lógica simplificadora de quem se opõe ao regime cubano, encerrar-se-ia a discussão e dar-se-ia como provada a crueldade e a falência do sistema capitalista: “se o capitalismo fosse bom, por que fugiriam essas pessoas?” Mas isso, como toda simplificação, não esclarece as coisas.

Outro tipo de resposta simplista vem da grande mídia. As poderosas empresas de notícias, que não se cansam de atribuir a imigração de cubanos ao regime adotado pela ilha caribenha, prefere, neste caso, culpar não um sistema, mas a “maldade humana” pelo sofrimento das milhões de pessoas que fogem de países capitalistas do mundo periférico. Essa maldade abstrata, na maioria das vezes, tem sua encarnação em grupos fundamentalistas islâmicos ou em governantes que parecem ter surgido do inferno para assumirem o poder pelo simples desejo do mal, sem motivos históricos, geopolíticos ou econômicos envolvidos e sem ajuda de potências estrangeiras a serviço de grandes empresas e bancos que controlam o mercado global.

Para fugir do simplismo de um mero embate ideológico sem apoio analítico e da hipocrisia manipuladora da mídia corporativa é preciso entender um pouco mais da economia, política e história desses países que geram refugiados e o contexto geopolítico e geoeconômico da estruturação global do sistema capitalista. Sim, o sistema capitalista está na raiz da crise humanitária dos refugiados; não podemos fugir dessa conclusão. O que precisamos evitar são as simplificações de respostas rápidas e percorrer as raízes do problema, apresentando suas causas históricas e os dados que sustentam as afirmações.

Alguns pensam que o problema é resultado apenas de uma determinada formade aplicação do sistema e que algum modelo alternativo de capitalismo poderia existir sem gerar miséria, fome, guerras, migração em massa e outras consequências perversas que constatamos no mundo capitalista. Porém, como nunca na história da vigência do capitalismo vimos algo sequer próximo a isso (a prosperidade e relativa igualdade existente em alguns países desenvolvidos no passado recente sempre foram contemporâneos e conectados sistemicamente com o extremo oposto nos países periféricos), essa ideia é tão utópica como qualquer ideia de um futuro não-capitalista.

Embora as utopias sejam necessárias, insistir em uma ideia depois de séculos de experiências que demonstram o contrário do que se propõe pode não ser mais que uma mera teimosia. Afinal, para muitos, não bastou menos de um século de sistemas de economia estatista e centralmente planificada para que se jogasse por terra qualquer projeto de sociedade socialista? Mais razão teríamos, então, para rejeitar o sistema em que vivemos, cujas consequências negativas para o mundo vêm se mostrando há séculos em diversas de suas versões.

Mas que elementos nos induzem a atribuir a crise migratória ao sistema e não a uma tendência malévola essencial que todos nós, supostamente, compartilharíamos (e que nos tornaria cúmplices da tragédia) ou aos vilões encarnados em ditadores e terroristas islâmicos?

Continua.

Fonte: Adital.

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