Por José Álvaro de Lima Cardoso, para Desacato.Info.
Neste momento vemos no Brasil um debate sobre as dificuldades de
continuar pagando o auxílio emergencial, mecanismo fundamental para evitar
que milhões de compatriotas passem fome. Críticos da proposta alegam que o
pagamento de R$ 600 para os pobres, compromete a “saúde fiscal” do país. O
problema é que o país transfere todo ano 5% ou mais do PIB para os
especuladores, credores da dívida pública, comprometendo mais de 50% do
orçamento federal executado, sem praticamente ouvirmos um pio desses
críticos da proposta de um novo Bolsa Família.
Recentemente Armínio Fraga, Edmar Bacha e Pedro Malan, que foram do
governo FHC, todos ligados à fina flor dos especuladores mundiais, lançaram
uma carta aberta (em 17.11.22) posicionando-se em relação ao comentário de
Lula na COP 27, que criticou duramente os especuladores da Bolsa de Valores
e do mercado de câmbio. Na Carta Aberta criticam a fala acima e saem em
defesa da “sagrada” responsabilidade fiscal e do teto de gastos. Ou seja, o teor
da Carta revela que os banqueiros até aceitam que o futuro governo combata a
fome e a pobreza, desde que isso não diminua em um centavo os ganhos que
extraem sistematicamente do Brasil, através do sistema de pagamento da
dívida pública.
A capacidade de apropriação de riqueza por parte desses banqueiros, de
extrair todo ano 5% ou mais do PIB brasileiro, lhe garante um privilégio, que
permite controlar sistematicamente os processos políticos e, assim, muitas
vezes os próprios governos que se revezam no poder. Essa reação dos porta-
vozes dos credores revela o grau de pressões que o novo governo já está
enfrentando, e que certamente se aprofundarão nos próximos meses. O
“jornalismo de guerra”, por exemplo, que tinha dado uma pequena trégua,
voltou com toda a força no debate sobre as estatais e o papel do BNDES
(Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).
A dívida pública é uma síntese de um sistema de parasitagem que os
pobres do país suportam. Manter a maior taxa de juros do planeta e transferir
fortunas para os banqueiros todo ano, não tem nada a ver com decisões técnicas. A dívida é um sistema extraordinário de transferência de riqueza para
pessoas jurídicas e físicas muito ricas, residentes no país, ou não. Como é um
sistema complexo, afeito aos especialistas, a população não entende. Como
quem controla tudo é gente ligada aos próprios banqueiros, é um sistema fora
do controle das estreitas instâncias democráticas da sociedade.
Essa política de parasitagem financeira do país, que funciona como uma
bola de ferro monstruosa, que impede o país de atender as grandes
necessidades nacionais, se combina à superexploração do Trabalhador no
Brasil. É comum o trabalhador operar muitas horas, em um ritmo muito forte, e
receber salários irrisórios. A partir destas três formas principais de
superexploração, as combinações são as mais variadas. O sistema capitalista
procura ocultar a precarização na qual os trabalhadores se encontram, e que é
de forma ainda pior nos países subdesenvolvidos: trabalho autônomo, informal,
“uberizado”, sem registro, todas essas são formas de aumentar a exploração
dos trabalhadores.
Estes trabalhadores precarizados aparecem como empresários,
empreendedores, chefes de si próprios, dando a impressão de que são livres e
independentes. Alguns também se sentem empresários e afirmam: “faço meu
horário de trabalho como bem entendo”. Tudo isso dá a impressão de que a
relação direta capital-trabalho não existe mais. Nos países subdesenvolvidos, e
o Brasil é um caso típico, vigora um processo de superexploração, ou seja,
uma exploração superior à média dos trabalhadores dos países capitalistas
centrais.
Como resposta à grande crise capitalista de 1974 foi lançada, alguns anos
depois, a política neoliberal, que basicamente significou a destruição de forças
produtivas, para tentar retomar os níveis de lucratividade do capital anteriores à
crise de 1974. Ao mesmo tempo, a política neoliberal fez de tudo para rebaixar
os níveis de vida das populações do mundo todo e destruir direitos sociais e
trabalhistas em escala industrial, tanto no centro quanto na periferia. Esta
política já dura mais de 40 anos.
A crise que o capitalismo está vivendo, como a maioria das crises desse
sistema de produção, é de sobre produção, ou seja, de excesso de
mercadorias em relação à capacidade de consumo da sociedade. O sistema não consegue manter a lucratividade do capital, com a quantidade de forças
produtivas existentes. Torna-se necessário destruir capital para recuperar os
níveis de produtividade. Esse tipo de crise decorre de uma contradição central
no capitalismo que é de um lado um grande desenvolvimento das forças
produtivas e, de outros, relações sociais de produção restritivas, que impedem
o pleno desenvolvimento das forças produtivas, baseados na propriedade
privada dos meios de produção.
A chegada das políticas neoliberais, que são uma resposta à crise, destruiu
forças produtivas e as condições de vida das populações. Além disso, ao invés
dos gastos do Estado serem destinados a políticas sociais, são voltados a
atender as necessidades do capital. Podemos exemplificar com o que foi gasto
com bancos pelos governos do mundo todo, na crise de 2007/2008, na qual
foram torrados vários trilhões de dólares.
Como é utilizado dinheiro público para essas operações, ou para pagar os
serviços da dívida pública, a sociedade como um todo banca o subsídio público
ao capital. O Estado capitalista é para isso: servir aos ricos. Quando é para
conceder R$ 600 para o trabalhador não morrer de fome, os governantes ficam
se lamentando: “não podemos tornar os trabalhadores preguiçosos, temos que
dar a vara de pescar e não o peixe”. No entanto, para o capital não medem
esforços, como fica claro, inclusive, nos gastos inaceitáveis com os
especuladores da dívida pública.
Um outro problema grave, é que a crise de 1974 levou a um super
“excesso” de trabalhadores. Se estima que somente a abertura da China para o
ocidente, mais a destruição das economias do Leste Europeu, na década de
1980, tenha disponibilizado para o mercado mundial mais de um bilhão de
trabalhadores. Esse processo provocou uma queda brutal dos salários, e um
aumento exponencial da exploração do trabalho, e a um retrocesso significativo
nas lutas operárias no mundo todo. Além é claro do agravamento da própria
crise de sobre produção, já que os trabalhadores, desempregados ou
subempregados, perderam capacidade de consumo.
O imperialismo só tem uma proposta para enfrentar a crise mundial de
sobre produção: privatizações, destruição de forças produtivas (tanto na
periferia, quanto no centro capitalista), destruição de direitos e elevação dos
níveis de exploração da força de trabalho. Como a crise mundial se agravou, tornou-se necessário, para sobrevivência do capital, aumentarem os níveis de
exploração da classe trabalhadora no mundo todo.
Decorrência das ideias neoliberais surge a ideia do “Estado mínimo”, cuja
única função seria manter uma polícia fortemente armada para garantir a
propriedade e uma diplomacia para oferecer relações internacionais ao capital.
Todo o resto está fora do conceito dos neoliberais. Saúde, educação, emprego,
ciência etc. seriam funções para serem desempenhadas pelo “mercado” já que
a função do Estado seria apenas assegurar a propriedade por meio das leis
cíveis e criminais.
Neste cenário de desindustrialização e superexploração o capitalismo criou
uma nova forma de trabalho: a auto superexploração. Este sistema de extrair
valor máximo de cada trabalhador, em rede e em larga escala começou nas
antigas empresas de vendas como Amway, Mary Kai ou Herbalife. Milhões de
pessoas eram obrigadas, de início, a comprarem “kits” para uso pessoal, já
garantindo um mínimo de exploração que – por si só – mantinha o sistema de
pirâmide funcionando.
A mesma lógica atinge os trabalhadores de “aplicativos” hoje. O Uber e
outros. Não importa as diferenças de custo do trabalho, o indivíduo é
incentivado a se explorar por dez, doze horas ou mais para ganhar um mínimo
suficiente para meramente pagar suas contas e sua comida. É o sonho do
custo do trabalho igual somente ao custo de reprodução física dos indivíduos.
Os lucros seguem para cima da pirâmide. Cada motorista de Uber não se vê
um “proletário”, mas “um patrão de si mesmo” porque lhe parece que pode
fazer seus horários e ter a sua “liberdade”. Sem organização sindical, e
portanto, sem parâmetros históricos para avaliar sua condição, o trabalhador
fica sozinho inclusive na análise da sua situação, o que o leva a ilusões de que
é um empreendedor, um homem livre, um homem de negócios.
A realidade é que o aplicativo – um entre tantos modelos de acumulação
semelhantes – lucra com a sazonalidade e o desespero dos trabalhadores. Usa
de oferta de trabalho amador para baixar o valor da hora trabalhada
(estudantes, por exemplo, oferecem-se no Uber para “ganhar um extra”
apenas) e geram uma superexploração em níveis internacionais, em rede e
ininterrupta pois os custos do negócio correm quase na totalidade por conta do
trabalhador (gasolina, manutenção, pintura, pneus, imposto etc.).
Estes proletários que se super exploram foram ensinados que este é o “correto”. A
forma justa de sobrevivência num mundo cão em que “vence” o mais forte. Eles
não receberam ferramentas intelectuais para compreender que a exploração
que fazem de si para pagarem os aplicativos, os empresários de transportes e
todos os outros intermediários é parte do sistema.
Na América Latina dependente e no Brasil, a superexploração é praticada
pelos capitais que aqui atuam, como processo de compensação de sua
atuação subordinada na lógica internacional. A superexploração em países
como o Brasil decorre de uma intensa violência estrutural contra a maioria da
população. As várias formas de superexploração do trabalho, violentas por si
só, levam a uma intensa violência contra a população em geral.