Por Samuel Lima.*
“Estamos vivendo duas histórias distintas: a de verdade e a criada pelos meios de comunicação. O paradoxo, o drama e o perigo estão no fato de que conhecemos cada vez mais a história criada pelos meios de comunicação e não a de verdade”.
(Ryszard Kapuscinski)
Produtores de tomate do Espírito Santo, em janeiro de 2015, jogaram no lixo algumas toneladas de tomate para “controlar” o preço no mercado… |
Os ecos da disputa pela Presidência da República, nos dois turnos disputados entre Dilma Rousseff e seus adversários, em outubro de 2014, são vivamente perceptíveis na cobertura de política e economia, irmãs siamesas. Pelo menos no mundo-mídia, cuja narrativa adensa, a cada novo episódio, uma espécie de névoa de versões e meias-verdades que impede a sociedade de discutir, com autonomia e liberdade de pensamento, a real extensão dos problemas econômicos enfrentados pela sociedade – e não exclusivamente pelo governo federal.
Sim, porque o jogo econômico é jogado por um sem-número de protagonistas que vão desde o micro empreendedor anônimo, que labuta 24h para sobreviver, aos titãs do mercado – cartéis sofisticados, com tentáculos em diferentes setores da vida contemporânea, que vão da Bolsa de Valores, Institutos e ONGs, passando intensamente pelo palco da mídia monopolista.
Nesse jogo sórdido da desinformação, vitaminado por uma dosagem pesada de desonestidade intelectual e demagogia, a elite empresarial da comunicação brasileira (famiglias que controlam as TVs Globo, Band, SBT; os jornais impressos Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e o Globo, bem como as revistas semanais Época, Veja e IstoÉ), dão o tom dessa cobertura que se afasta, cada vez mais e mais, da verdade factual. No jornalismo, a apuração dos fatos se conecta com possibilidades de interpretação (contexto) e análise (especialistas). Mas, quando a narrativa fica apenas no desejo, como parece ser o caso da mídia brasileira, o produto final é um engodo típico do populismo mais banal.
Crise econômico-midiática
A cobertura político-econômica vem embalando, entre outras teses esdrúxulas, a volta da ditadura militar e o impeachment da atual Presidente da República, em movimento de extratos muito bem definidos da população (74% brancos, alta renda e escolaridade e eleitores – 98% – de Aécio Neves). Ora, inexiste 3º turno das eleições presidenciais, logo isso tudo não faria o menor sentido. Mas, o jogo midiático jamais será um “jogo de soma zero”: se a cidadania perde, alguém está ganhando, e provavelmente muito.
Tomemos como exemplo a edição dos jornais Folha de S. Paulo (FSP) e O Estado de S. Paulo (OESP) de 10 de maio, Dia das Mães. Na manchete, o mesmo assunto: a repercussão do ajuste fiscal, que começou a ser aprovado no Congresso Nacional, nas ações e investimentos do governo federal. Na Folha, um texto rococó tenta dar conta da nova “crise”: “Ajuste fiscal emperra até vitrines da presidente” (FSP, Capa, 10/05/2015: http://migre.me/pOsDy).
Fiquei imaginando como “vitrines” podem ser “emperradas” para entrar no espírito da esotérica metáfora do editorialista da Folha. No texto, uma profissão de fé baseada numa visão de futuro linear dos acontecimentos: “No esforço de reduzir os gastos públicos e cumprir a meta fiscal do ano, o governo federal tem congelado repasses a programas prioritários e suspendido o pagamento de obras e subsídios” (Fonte Cit.). Antes mesmo da aprovação do Orçamento da União para 2015, ainda pendente de decisão no Congresso, a Folha já decretou que “vitrines do governo Dilma Rousseff para educação e habitação já são afetadas”. Discurso posto cabe ao leitor decidir se acredita ou não. Afinal, não há o outro lado, mas tão somente ministros falando em off para uma reportagem de tamanho impacto.
No Estadão, o mesmo assunto é tratado com manchete similar – parte da mesma narrativa sobre a “crise”: “Ajuste paralisa ministérios e investimentos despencam” (OESP, Capa e p. B1 e B3). A reportagem de Capa (Fonte: http://migre.me/pOsO0) é desdobrada no caderno de Economia. Observa-se o esforço para transformar o texto em jornalismo, saindo do jogo retórico ao gosto de seu concorrente (FSP).
Na Capa, escreve o editorialista d’O Estadão: “A demora na aprovação do Orçamento federal, combinada ao aperto fiscal proposto pelo Ministério da Fazenda, paralisou obras, atrasou repasses de programas sociais e reduziu o crédito para a sociedade. Do Orçamento de 2015 – ainda sem os valores de contingenciamento definidos –, pouco foi gasto. Até 4 de maio, nove órgãos federais ainda não tinham movimentado nenhum centavo na conta de investimentos, segundo relatório do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão” (Fonte Cit.).
Não obstante chamar como fontes principais os economistas conservadores Raul Velloso (Instituto Millenium) e Mansueto Almeida (ex-integrante da equipe econômica de Aécio Neves), é notável o esforço dos repórteres de buscar ouvir o “outro lado”. No entanto, as fontes ligadas ao governo federal aparecem sempre como “sujeitos ocultos”. O que vale é confirmar a narrativa da “crise”: a aprovação parcial do “ajuste fiscal” na Câmara não pode ser divulgada como “boa notícia”, porque, como escreveu Kapuscinski, “conhecemos cada vez mais a história criada pelos meios de comunicação e não a de verdade”.
Começo a semana, zapeando bem cedo os telejornais à cata de algo novo no front. A inflação de abril, medida pelo IPCA, foi a mais baixa do ano (0,71%), mas a apresentadora se apressa a dizer que não se pode comemorar porque os preços aumentaram muito desde o começo do ano. O responsável: claro, o governo federal. E o mercado? Esse tem a “mão invisível”, ou seja, os especuladores e gananciosos de todos os matizes que se interpõem entre os produtores e a população são regiamente poupados das luzes da mídia monopolista. Foi o caso dos produtores de tomate do Espírito Santo, em janeiro de 2015, que jogaram no lixo algumas toneladas do produto para “controlar” o preço no mercado…
Narrativa maniqueísta e demagógica
Alguns minutos depois, os mesmos apresentadores (Ana Paula Araújo e Chico Pinheiro, Bom Dia Brasil, ed. 11/05/2015) noticiam constrangidos que uma feira de empresas de vários setores, em São Paulo, pretende preencher 8 mil vagas existentes. Outra reportagem, da mesma edição, dá conta de que as transportadoras brasileiras precisam contratar 100 mil trabalhadores (isso mesmo: é cem mil motoristas, não me enganei e rechequei). Como não há mão-de-obra disponível no Brasil, empresas paranaenses começam a contratar motoristas dos países sul-americanos – o exemplo citado é de um colombiano. Mas, o desemprego campeia e estamos caminhando, nesse roteiro midiático esquizofrênico, para o caos social e o precipício.
Num texto publicado em janeiro de 1996 (no jornal francês Le Monde Diplomatique), o jornalista e escritor Eduardo Galeano, que partiu recentemente, afirmava profético: “Nunca a tecnologia das comunicações foi tão aperfeiçoada; e, no entanto, nosso mundo se parece cada vez mais com um reino de mudos. A propriedade dos meios de comunicação se concentra cada vez mais em algumas mãos; (…) Nunca tantos homens foram mantidos em incomunicação por um grupo tão pequeno. O número daqueles que têm o direito de escutar e de ver não cessa de crescer, ao passo que se reduz vertiginosamente o número daqueles que têm o privilégio de informar, de se exprimir, de criar”.
A complexidade da crise econômica, de alcance mundial, passa sempre ao largo dessa narrativa maniqueísta e demagógica da mídia nativa. O fato é que o mundo globalizado ainda busca caminhos para superar o tsunami financeiro que eclodiu em setembro de 2008, a partir da falência do banco Lehman Brothers e da maior empresa seguradora dos Estados Unidos da América, a American International Group (AIG). A Europa patina; os EUA até agora não conseguiram retomar o crescimento e ainda padecem de um desemprego altíssimo. Nem mesmo a China consegue manter os índices de crescimento e da atividade econômica.
Mas, os dados da vida real e a verdade factual pouco ou nada interessam à narrativa sobre a crise que preside a ação da imprensa tradicional. Dilapidando seu ativo mais nobre, que é a credibilidade, segue a mídia tradicional brasileira sua trajetória de afastamento, cada vez maior, do interesse público e de S. Excia. o leitor, telespectador, internauta, ouvinte… Na dúvida, os apresentadores e figurinhas icônicas da mídia reforçam sempre o polo negativo da notícia, seguindo à risca e às avessas a lógica de um ex-ministro da Fazenda de FHC: “O que é ruim a gente mostra; o que é bom a gente esconde”.
Resgato as palavras de Galeano, duras mas precisas e necessárias para caracterizar bem essa narrativa sobre a “crise” que a mídia nativa se nos impõe, todo santo dia: “Nesse mundo sem alma que os meios de comunicação nos apresentam como o único mundo possível, os povos foram substituídos pelos mercados; os cidadãos, pelos consumidores; as nações, pelas empresas; as cidades, pelas aglomerações; as relações humanas, pelas concorrências comerciais”. Segue a vida, e a luta!
(*) Jornalista, professor-adjunto da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC/UnB). É pesquisador do Laboratório de Sociologia do Trabalho (LASTRO) do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política (UFSC) e do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS/UFSC).