Crise braba, big techs e dominação imperialista. Por José Álvaro Cardoso.

Por José Álvaro Cardoso.

Yanis Varoufakis, economista e político grego, que foi ministro das Finanças do Governo Tsipras em 2015, lançou no ano passado o livro Tecnofeudalismo: O que matou o capitalismo. No entender do economista o domínio do capitalismo acabou e foi substituído pelo “tecnofeudalismo”. Em entrevistas, tem defendido a tese de que o capitalismo financeiro foi trocado por algo pior, que é o domínio político e social das grandes empresas de tecnologia. Tais empresas não teriam clientes nem trabalhadores, mas sim vassalos, como na Idade Média, quando vigorava o feudalismo.

Há muitos mitos em torno da “eficiência” das chamadas big techs, em boa parte disseminados por ela mesmas, que têm muito poder de formação de opinião no interior da sociedade. Em oposição a esses mitos, Varoufakis tem lembrado em entrevistas, que essas empresas prosperaram baseadas no financiamento a juros zero, sustentado pelos países ricos, especialmente pelos Estados Unidos. Usam também outras formas de financiamento estatal. A montadora Tesla, por exemplo, de propriedade do bilionário Elon Musk, que é também dono do X, conta com generosos subsídios concedidos aos carros elétricos, fundamentais para enfrentar a implacável concorrência dos veículos chineses.

A tese do ex-ministro de finanças da Grécia, sobre a perda de protagonismo do capitalismo financeiro, merece muito debate para aprofundamento do tema. Afinal as big techs funcionam em estreita relação com o capitalismo financeiro, portanto, talvez não se trate de tecnofeudalismo, mas de um aprofundamento do capitalismo dos dias atuais. Ou seja, as plataformas de tecnologia significam uma mudança na forma, mas não necessariamente no conteúdo de funcionamento do sistema capitalista, que tende a absorver e subordinar tudo que se mexe (ou gera valor) no mundo. Mas, não há dúvidas de que é muito preocupante o controle tecnológico exercido por essas grandes empresas de tecnologia sobre a sociedade, através dos sistemas de vigilância e da própria censura que vigora nas redes sociais.

O capitalismo, que vive uma enorme crise estrutural, desenvolveu mecanismos de extração de riqueza extraordinária da sociedade (como o da dívida pública), e precisa manter as pessoas encurraladas numa espécie de ciclo de “servidão”. A servidão moderna, como qualquer tipo de sistema opressivo, se baseia na força das armas, mas também na dominação ideológica. Esta, em grande parte, é exercida pelas empresas de tecnologia.

Falando em dominação ideologica, pode-se perguntar o que leva os cidadãos norte-americanos a aceitarem que a dívida pública do seu país tenha chegado a US$ 35 trilhões, correspondente a 125% do PIB e que quase US$ 2 bilhões sejam gastos diariamente apenas com seus juros. Obviamente quem paga o custo dessa “orgia” financeira é a população do país, seja através do desemprego, do endividamento, ou do aumento da inflação. Para o sistema se sustentar, sem haver uma rebelião da sociedade, tem de existir um trabalho sofisticado de dominação política, de distração generalizada e de censura na internet, desviando das questões fundamentais como o aumento da desigualdade e a possível preparação para um confronto bélico de proporções mundiais.

O que também pode sustentar que a máquina de guerra mais cara do planeta (não necessariamente a mais eficiente) patrocine o genocídio do povo mais oprimido do mundo, senão uma estrutura muito eficiente de dominação política da opinião pública através de sofisticados meios tecnológicos? Felizmente o sistema de censura e dominação através das grandes empresas de tecnologia tem muitos furos. Completado um ano do massacre na Faixa de Gaza, toda a imagem de “vítimas dos países árabes”, construída cuidadosamente pelos sionistas que comandam Israel, e seu patrocinador (o império norte-americano), virou pó em poucos meses. Toda a propaganda, construída ao longo de muitas décadas, de Israel ser o país mais democrático do Oriente Médio, foi desmontada também em poucos meses. Apesar de toda a censura, não houve como impedir que as imagens dos crimes de Israel circulassem pelos quatro cantos da terra.

O fato é que, mesmo com falhas, a censura nas redes sociais em relação à questão Palestina funcionou parcialmente. Vários canais foram censurados, e continuam sendo, por denunciar o genocídio na Faixa de Gaza, com a alegação de que tais denúncias ocorriam por “antissemitismo”. O fundador do WikiLeaks, Julian Assange, que foi perseguido pelos países imperialistas por publicar crimes cometidos pelo estado norte-americano, fez uma declaração recentemente, em solo francês, que resume o problema da censura: “Quero ser totalmente claro: não estou livre hoje porque o sistema funcionou. Estou livre hoje após anos de prisão porque me declarei culpado de jornalismo. Eu me declarei culpado de buscar informações de uma fonte, me declarei culpado de obter informações de uma fonte e me declarei culpado de informar ao público quais eram essas informações. Não me declarei culpado de mais nada”. Qual foi o crime que Assange cometeu e que o levou a comer o pão que o diabo amassou? Falar a verdade e fazer jornalismo independente.

De fato, essas grandes corporações tecnológicas e plataformas digitais não apenas controlam volumes quase incalculáveis de dinheiro e grandes fatias do mercado capitalista, mas também quantidades enormes de informações. Essas plataformas acabam mediando a relação entre as pessoas e definindo, inclusive tendências globais de comportamento social. Essa censura nas plataformas digitais, feita por 3 ou 4 grupos com muito dinheiro e influência sobre os governos, é especialmente perniciosa se considerarmos a conjuntura que pode vir pela frente, conforme a previsão de alguns analistas importantes. O baixo crescimento e a perda de tração na indústria estão levando a um agravamento do problema da dívida pública não só nos EUA, mas também em outras grandes economias capitalistas, como o Japão e países europeus.

Quem paga as dívidas públicas é a população de cada país. Esse custo ocorre seja através do aumento da inflação, seja pela elevação do desemprego e da precarização, seja pela estrutura regressiva de arrecadação de impostos, através da qual, quem tem menos, paga proporcionalmente mais. Por exemplo, os EUA possuem um déficit orçamentário de US$ 1,5 trilhão, segundo dados do Departamento do Tesouro. A previsão é que ele chegará em US$ 2,1 trilhões até 2034, se a atual política for mantida. Claramente quem paga o déficit, em princípio, é a população norte-americana. Com o aumento do déficit a dívida do país tende a aumentar, o que obriga o governo a pagar juros mais altos para conseguir que os especuladores comprem os títulos, podendo assim rolar a dívida. Como dinheiro não dá em árvore (mesmo para os EUA que tem posição monetária privilegiada no mundo), o maior custo com a rolagem da dívida reduz os recursos para investimentos sociais, como o atendimento à pobreza e aos desempregados.

No caso dos EUA, na condição de país mais imperialista da terra, déficit público e endividamento fora de controle traz consequências políticas e econômicas para o mundo todo, já que os EUA interferem política e militarmente em todo o planeta. No momento, inclusive, os EUA mantêm duas frentes de guerra “quente”, a Ucrânia e no Oriente Médio, que representam bilhões de dólares em gastos, pagos pelos cidadãos norte-americanos e, no limite, pelos habitantes dos países impactados pela política imperialista. Uma ilustração singela desse fenômeno, dentre muitas que poderiam ser dadas: Javier Milei, o doido que sonha com uma Argentina reduzida a cinzas, chegou e se mantém no poder com o apoio, mais ou menos explícito, dos EUA.

O problema da dívida pública não é exclusivo da economia americana. Os países da Europa, têm dívidas muito elevadas em relação aos seus PIBs: Grécia (161,9%), Itália (137,3%), França (110,6%), Espanha (107,7%), Bélgica (105,2%) etc. O Japão, que vive uma espécie de estagnação crônica desde os anos de 1990, é conhecido por ter a maior dívida pública bruta do mundo, que alcança incríveis 252% do PIB. Obviamente que dívidas dessa magnitude são o centro das políticas públicas, esses países vivem para pagar os juros das suas dívidas.

Os governos desses países corretamente falam em resolver o problema da dívida. Mas, sem exceção, as medidas que propõem estão voltadas exclusivamente para o gasto público, os serviços sociais em geral. Serviços que se tornaram mais fundamentais, dado o empobrecimento de uma parcela significativa da população. Esses governos vêm há anos tirando recursos da previdência social, da saúde, da educação, dos subsídios ao transporte público, como se a população em geral fosse a responsável pela dívida e déficit públicos. Isso explica, em parte, inclusive, a ascensão da extrema direita na Europa, que normalmente é crítica também dessas políticas.

É importante analisar o contraponto protagonizado pela Rússia que, no episódio da guerra na Ucrânia, resolver enfrentar o império e o chamado “Otanistão”. Com a economia russa crescendo acima da média mundial, os salários no complexo industrial-militar vêm aumentando em termos reais, efeito que tem sido irradiado para os demais setores da economia. Além disso, a taxa de desemprego na Rússia, atualmente, está em 2,4%, o que significa pleno emprego. Na realidade, o debate atualmente no país, trata justamente da escassez de força de trabalho, que já se encontra, segundo alguns estudos, em níveis muito preocupantes. Não é que a Rússia tenha vencido completamente as sanções comerciais, porque elas são muitas (são 16,5 mil sanções contra o país, o que mais sofreu medidas desse tipo na história) ação que envolve os principais países imperialistas do mundo. Mas, até o momento o país encontrou uma forma de lidar com as sanções e reduzir seus impactos sobre a economia e a sociedade russas.

Temos o caso da China, país que assentado sobre um consistente projeto nacional de desenvolvimento, e com posição soberana em relação ao império, vem sendo o motor da economia mundial há décadas. O país nesse momento lidera um plano trilionário de investimentos em infraestrutura conhecido como “Nova Rota da Seda”, que significará investimentos simplesmente inéditos na história da economia mundial e que beneficiará muitas economias subdesenvolvidas. Por exemplo, Pequim já estabeleceu parcerias estratégicas com 53 dos 54 países africanos, para investimentos nesses países, que chegarão a R$ 285 bilhões até 2027. Para onde seja dirigido o olhar, a política internacional nos oferece uma lição elementar: rezar na cartilha do imperialismo nunca é um bom negócio para as nações.

José Álvaro Cardoso é economista do DIEESE em Santa Catarina.
A opinião do/a/s autor/a/s não representa necessariamente a opinião de Desacato.info.

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