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A questão indígena hoje é uma conjunção nada aleatória de contingências até certo ponto inesperadas, mas, sobretudo, violentas. Neste meio, isto é, na vivência diária de um tipo de terrorismo político incentivado pelas mais altas instâncias do Poder Executivo, os indígenas buscam soluções para reparar o passado, sair do eterno presente mantido pelas repetições e estabelecer projetos de futuro.
Um grupo de advogados e advogadas indígenas, ao se debruçar sobre os efeitos da tutela na vida dos povos durante a Ditadura Militar (1964-1985) até os dias de hoje, mesmo que este instituto tenha sido interrompido pela Constituição Federal de 1988, tem encontrado elementos para pavimentar o que entendem como novos caminhos na Justiça de Transição.
Justiça de Transição é aquela que congrega um conjunto de medidas políticas e judiciais utilizadas como reparação das violações de direitos humanos e a não-repetição destas violações. No caso dos povos indígenas, o que se quer reparar são as reduções das terras tradicionais e a ideologia de integração dos indígenas à comunhão nacional.
Conforme pontua o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro em entrevista à agência A Pública, em 2019, a democracia brasileira é tutelada pelos militares, experiência que mesmo extinta no trato da política indigenista estatal tem sua permanência no sistema político do país a serviço ideológico de setores nacionais que nunca aceitaram os avanços que a Constituição de 88 trouxe aos povos indígenas.
Quando verificamos a atual situação Fundação Nacional do Índio (Funai), que presta serviços contrários aos direitos dos povos indígenas, no atual governo, desmobilizando o aparato de fiscalização, proteção e garantia territorial, é possível constatar similaridades com a política indigenista quando o Estado era tutor.
“Analisamos as condições das terras indígenas em Roraima. São 36, sendo 32 homologadas. As maiores são Yanomami, Raposa Serra do Sol, São Marcos e Wai Wai. Todas com invasões. As demais, demarcadas em ilhas e com redução, aguardam há mais de duas décadas pela revisão do procedimento”, explica o advogado e pesquisador do Grupo Pesquisa Indígena do Armazém Memória, Ivo Macuxi.
“Analisamos as condições das terras indígenas em Roraima. São 36, sendo 32 homologadas. As maiores são Yanomami, Raposa Serra do Sol, São Marcos e Wai Wai. Todas com invasões. As demais, demarcadas em ilhas e com redução, aguardam há mais de duas décadas pela revisão do procedimento”, explica o advogado e pesquisador do Grupo Pesquisa Indígena do Armazém Memória, Ivo Macuxi.
Como exemplo desta usurpação, levantamento feito pelo Grupo Pesquisa Indígena do Armazém Memória, constatou que os povos Macuxi e Wapichana tiveram uma redução de 1.230,58 hectares durante o processo de reconhecimento da Terra Indígena (TI) Ananás. Em 25 de agosto de 1980, a identificação e delimitação da terra foi publicada no Diário Oficial da União (DOU) com 3 mil hectares. Um ano depois, a Ditadura reduziu seu tamanho para 1.769,42 hectares.
Na mesma publicação de agosto de 1980, outras nove áreas foram identificadas junto com a TI Ananás, e também reduzidas posteriormente com os relatórios circunstanciados publicados em 20 de novembro de 1981. O território que mais perdeu em área foi a TI Manoá/Pium, com redução de 24.463,27 hectares. Juntas, as terras Macuxi e Wapichana foram reduzidas em 45.126,66 hectares.
Indo adiante com a pesquisa na TI Ananás, o grupo se deparou com farta documentação histórica demonstrando como o abuso do instituto da tutela se tornou um instrumento para subjugar os indígenas e facilitar o estabelecimento dos interesses econômicos sobre o direito dos povos ao usufruto de suas terras protegidas como patrimônios da União.
A isso o grupo tem chamado de “crimes de tutela”, uma hipótese inédita no ambiente jurídico, sem previsão de aplicação, e refletida de forma coletiva. “Crimes de tutela é um conceito que estamos apresentando porque o Estado brasileiro disse que os povos indígenas tinham capacidade relativa, criaram um órgão indigenista para ser o responsável pela tutela e esse órgão acabou sendo arbitrário, abusivo e criminoso como tutor”, explica a advogada Maira Pankararu.
Tomando por base a TI Ananás, Marcelo Zelic, coordenador do estudo e do Armazém Memória, avalia que estes crimes praticados pelos tutores nunca foram considerados. “No caso da Ananás, mostram como a Funai e os militares alteraram o rito de demarcação, abusando desse poder de tutela, jogando fora quatro estudos demarcatórios e eles mesmos definindo qual seria a terra indígena a ser delimitada”.
Zelic destaca detalhes da ação anti-indígena da Ditadura em Roraima. “Chegaram a distribuir arame farpado para que os fazendeiros delimitassem as áreas que queriam antes da demarcação oficial. Tudo isso está documentado. Não contaram para a gente”.
Chegaram a distribuir arame farpado para que os fazendeiros delimitassem as áreas que queriam antes da demarcação oficial.
Marcelo Zelic, coordenado Aramazém Memória
No relatório da TI Ananás é possível identificar, conforme o grupo aponta, um conjunto de crimes descritos no Código Penal atribuídos aos tutores: possessório, corrupção passiva, advocacia administrativa, falsidade ideológica. No entanto, todos prescritos.
Ocorre que para Ivo Macuxi e Maira Pankararu o foco não estaria na reparação penal, mas sim administrativa e cível. “Acredito que como pesquisadora de Justiça de Transição podemos discutir tanto política quanto juridicamente. Podemos trabalhar isso dentro da Justiça de Transição e criar jurisprudência. O povo Krenak, em 2015, teve uma sentença toda baseada em Justiça de Transição. A Funai, União e o estado de Minas Gerais foram condenados”, defende Maira Pankararu.
Além do mais, o relatório atesta em seu conteúdo probatório o quanto esses “crimes de tutela” interferiram na demarcação correta da TI. Como os direitos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam são imprescritíveis, apontar esses crimes fortalece o pleito pela revisão da demarcação, reparação aos danos sociais e ambientais e garantias de não-repetição.
Tutela, integração e redução: traços de uma
Os assassinatos do indigenista servidor da Funai Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, a selvageria contra o povo Kaiowá e Guarani, a conversão da Funai em um órgão nocivo aos indígenas e seus servidores, a deterioração das condições materiais de sobrevivência dos povos são, entre outros, episódios de uma realidade imediata que induzem a percepção de que estamos em um labirinto que termina na sua própria entrada.
Para o advogado Paulo Machado Guimarães, que desde o final da década de 1970 atua como assessor jurídico dos povos indígenas, trabalhando por mais de três décadas no Conselho Indigenista Missionário (Cimi), os acontecimentos citados acima encontram encadeamento com a discussão levantada pelo grupo de advogados e advogadas indígenas por demonstrar uma ideologia ainda viva a ser combatida.
Nesta ideologia, defende Guimarães, a tutela se mostra como uma política de integração e de redução de territórios. Hoje, essa busca por redução avança sobre terras identificadas, demarcadas ou homologadas a partir de invasões generalizadas, mobilizando criminosos com diferentes objetivos, incentivados por integrantes do Palácio do Planalto.
Não se iludam, essas invasões têm o objetivo de extermínio. A ideia é ir avançando dentro dos territórios até chegar às aldeias e matar quem não abandonar a terra.
Paulo Machado Guimarães, advogado indigenista
“Não se iludam, essas invasões tem o objetivo de extermínio. A ideia é ir avançando dentro dos territórios até chegar às aldeias e matar quem não abandonar a terra. A frieza daquele indivíduo, chamado de Pelado, envolvido num crime cruel (assassinato de Bruno e Dom), é como e ele soubesse, com tranquilidade, que logo estaria livre da situação”, alerta.
A cada movimento que se faz para trás, na história “encontramos políticas de Estado articulando a tutela, a redução de terras tradicionais e uma percepção de integrar de forma violenta, se preciso for, os indígenas à comunhão nacional. Essa concepção de aldeamento, tendo como constatação a limitação da capacidade de funcionamento da comunhão nacional, ela sempre esteve presente no Estado português, Imperial e depois na própria República na relação com os índios”, aponta Guimarães.
A tutela é um mecanismo jurídico estabelecido pelo Código Civil de 1916. A partir do Código, os indígenas passaram a ser considerados relativamente capazes. Antes, havia a tutela orfanológica: os índios eram considerados órfãos e completamente incapazes. A construção jurídica se baseava na intenção de proteger essas pessoas que não tinham conhecimento sobre a realidade nacional.
Comunidade Ananás durante GT de demarcação da Funai , 1980.
“É um constrangimento institucionalizado que sempre foi estabelecido sob a concepção de que os índios não faziam parte da comunhão nacional. Entra toda essa concepção ideológica e política de incorporar essas pessoas à comunhão nacional. Todo o trabalho constitucional de prever a incorporação dos silvícolas à comunhão nacional é um concepção para se exercer o controle sobre esses cidadãos”, avalia o advogado indigenista.
A tutela sempre foi um mecanismo de violência, resume Guimarães. Há estudiosos do Direito que chegaram, em suas pesquisas, a uma espécie de ontologia da tutela. A professora da Universidade Federal e Pernambuco (UFPE), Rosane Lacerda, assessora jurídica dos povos indígenas e autora de obras relacionadas ao tema, defende que a tutela tem sua origem quando os colonizadores portugueses e espanhóis definem que os indígenas nem alma possuíam e, portanto, precisavam de uma condução.
Muito embora a tutela não tenha relação com a demarcação administrativa, que existe com base na ideia de que toda terra indígena é um bem da União desde a Constituição de 1946, ou seja, não como obrigação do Estado enquanto tutor, o abuso de poder dos tutores interferiu nas demarcações e garantias territoriais.
A prática indigenista dos governos tutores guarda relação direta com os espaços físicos onde os indígenas se instalam. Aldear, ou seja, sedentarizar o povo num local e reduzir os seus espaços, controlar entradas e saídas das aldeias e encaminhar demarcações insuficientes eram medidas tomadas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e depois pela Funai enquanto instituição.
Se formos olhar os intuitos jurídicos por trás, a tutela é o mecanismo para impulsionar os índios como membros da comunhão nacional. Rosane Lacerda, advogada
“Se formos olhar os intuitos jurídicos por trás, a tutela é o mecanismo para impulsionar os índios como membros da comunhão nacional. Isso só é possível impondo um controle sobre os espaços físicos. Como o Estado tem a obrigação de demarcar, o procedimento administrativo era o instrumento”, explica Lacerda.
Jacinto Macuxi, ancião e morador mais antigo da TI Ananás, se viu cercado por fazendas, em plena Ditadura Militar (1964-1985), mas seguiu na terra. Os invasores então decidiram “doar” um lote para Jacinto, que sem escolha aceitou como parte de uma resistência silenciosa e paciente comum aos povos indígenas: ficar na terra mesmo como empregados
Redução territorial
Os povos indígenas tiveram um confronto final durante a Constituinte de 1988. Instalada na opinião pública estava a pergunta a ser respondida no texto nacional: o que é uma terra indígena? Indígenas, seus aliados, a ciência e juristas defendiam o conceito de terra tradicionalmente ocupada. As forças anti-indígenas sustentavam que era uma terra de posse memorial onde os povos se encontravam “permanentemente localizados”.
Quando o conceito de terra tradicionalmente ocupada acabou na nova Constituição, o Brasil rompia com a tese do “permanentemente localizados”, até então vigente e predominante em constituições anteriores. O que caracteriza uma terra indígena, neste ponto de vista descontinuado, se reduz à aldeia, o lugar de moradia fixa, e não envolve áreas de caça, pesca, roças, coleta, rios, trânsito e relacionadas à cosmologia, rituais, ao sagrado e incidência de cemitérios antigos.
Se na Constituição de 1988 o entendimento de “permanentemente localizados” acabou afastado do texto constitucional, dando lugar ao conceito de terra tardicionalmente ocupada, na prática dezenas de terras indígenas já estavam demarcadas sob o auspício do “permanentemente localizados”. As reduções de terrítório respaldadas pela tese do “permanentemente localizadas” eram definidas a partir de interesses de apropriação privada destas áreas.
“A questão era resolvida no gabinete, riscando a área de interesse privado. O que restava das terras tradicionais, de propriedade da União, eram demarcadas com severas reduções”, ressalta Guimarães. Por um lado havia demarcação, mas em total desacordo com as garantias constitucionais ao território que vêm presentes desde as constituições republicanas anteriores, leis imperiais e coloniais.
Os casos mais flagrantes estão concentrados no período da Ditadura Militar. Os crimes cometidos pelos governos do regime foram além dos assassinatos, desaparecimentos de opositores, torturas e corrupção. Envolveu o genocídio de povos indígenas e uma subtração ainda incalculável de áreas indígenas reduzidas para transferir o bem público para os afazeres privados.
“Uma prática muito comum na Ditadura eram as chamadas Exposições de Motivos. Ministros levavam ao presidente o que era possível demarcar, quais áreas precisavam ficar de fora e o presidente aprovava e virava uma instrução interna de como agir. Então chegavam no gabinete e viam o que ia ter condição de demarcar, desapropriar, comprar. Soluções alternativas para conciliar as pressões. A forma correta de se resolver o problema não se realizava”, analisa Guimarães.
O advogado rememora casos icônicos deste período. “O Parque do Xingu, por exemplo, chegou a ser vendido três vezes. Teve matéria disso na revista O Cruzeiro. Todos os títulos nulos. Na década de 1980 apareceu um advogado no Mato Grosso, o Armando Conceição, se juntou com engenheiros agrimensores, que se diziam antropólogos, e passaram a dizer que a demarcação é uma desapropriação indireta. Chegaram a praticar fraude processual. Uma delas foi descoberta pelo então procurador da República Gilmar Mendes”, conta o advogado.
O Parque do Xingu, por exemplo, chegou a ser vendido três vezes. Teve matéria disso na revista O Cruzeiro.
Paulo Machado Guimarães, advogado indigenista
Este é o período, a década de 1980, o fim da Ditadura, é o mesmo das demarcações Macuxi e Wapichana em Roraima, entre elas a TI Ananás. “Do ponto de vista político, nos parecia que ao constatarem o fim do regime esses indivíduos no governo decidiram fazer uma investida definitiva. A Funai era a expressão dessa esculhambação. Inventavam teorias malucas, e até hoje inventam. Na verdade sempre foi roubo e comércio de patrimônio público de uso exclusivo dos povos indígenas”, conclui.
Voltando ao caso da TI Ananás
“O caso da TI Ananás possibilita a gente enxergar essa ação deliberada do tutor. É muito farta a documentação. Como a gente começa a levantar essas questões dentro de uma lógica de construir a jurisprudência, chegamos a ações truculentas contra os antropólogos enviados para os estudos de demarcação, um carro de missionárias apoiadoras dos indígenas foi jogado de cima de uma ponte. Isso aconteceu no ano 2000!”, explica Marcelo Zelic.
No relatório do Grupo de Pesquisa Indígena do Armazém Memória, documentos apontam que a Funai se envolveu com figuras como latifundiário Nilton Tavares, ocupante de terras nos territórios de Ananás e Raposa Serra do Sol, um sujeito com processos na Justiça Federal por violência contra os povos, e acusado de envolvimento no caso do carro atirado de cima da ponte.
Diante dos conflitos provocados pelo próprio Estado, a demarcação em ilhas acabou sendo a solução para garantir espaços reduzidos aos Macuxi e Wapichana. Por fim, a TI Ananás se consolidou em 10 pequenas terras e nos espaços entre elas estão até os dias de hoje todas as fazendas.
“Temos documentos das reuniões de tuxauas que fica registrado: queremos terras contínuas”.
Para Zelic o objetivo do estudo é tirar as aspas do “crimes de tutela” e torná-lo instrumento jurídico na Justiça de Transição para as garantias de reparação e não-repetição. A revisão das demarcações é uma obrigação do Estado e, ainda que não passe diretamente pela hipótese dos “crimes de tutela”, Zelic entende que esses crimes apontam para uma reparação mais ampla e reforçam os argumentos pela revisão.
O advogado Ivo Macuxi salienta que a TI Ananás está quase em sua totalidade degradada. “São 19 famílias que vivem em uma aldeia perto de um igarapé. É também o lugar onde resta ainda um pouco de floresta. Lá pescam e coletam materiais para fazer as casas, os instrumentos tradicionais. Do outro lado do igarapé não podem ir porque já é fazenda”, afirma.
O restante do território virou lavrado. Como para a colonização fazendeira as florestas de nada serviam, a degradação para a criação de gado devastou quilômetros de hectares do que restou para as demarcações. Mesmo nessas áreas há ainda a presença de fazendas, que nunca foram desintrusadas. “Um fazendeiro “doou” um pedaço de terra para a demarcação. Uma área lavrada. Apesar de ter doado, segue até hoje sobre esse pedaço de terra. A situação é essa”, aponta o advogado Macuxi.