Crianças brasileiras: (des)proteção contra a Covid-19 e cuidados coletivos

Foto: Wilson Dias / Agência Brasil

Por Lívia Albuquerque, para Desacato.info.

A condução criminosa da pandemia é um fato incontestável. Da mesma forma que, durante esse período, fica muito claro o lugar reservado às crianças, qual seja, o último na fila das prioridades. Analisando o planejamento da vacinação – única medida de combate à Covid-19 verdadeiramente adotada no Brasil -, constata-se facilmente que a proteção infantil não foi levada em conta. Por certo, não se poderia ter vacinado as crianças antes do final de 2021, em razão das pesquisas necessárias inerentes ao processo de desenvolvimento de uma vacina, porém outras estratégias poderiam ter sido adotadas visando a proteção da faixa etária infantil. Assim, ao se determinar grupos prioritários para a vacinação, poderiam ter sido incluídos os cuidadores de crianças, ao menos de faixas etárias mais baixas. No entanto, nem mesmo as mães de bebês tão pequenos – ambos considerados grupo de risco aumentado para Covid-19 ao longo das investigações científicas acerca do Sars-Cov2 – foram consideradas grupo prioritário na vacinação. Ainda, difundiu-se fortemente na mídia a ideia de que a doença não seria perigosa para crianças.

A responsabilidade por essa parcela vulnerável e totalmente dependente de cuidados alheios que as crianças representam recaiu exclusivamente sobre a família, mais especificamente, as mães. As mulheres, que já eram demitidas pré-pandemia, assim que retornavam da licença maternidade, e passaram a ser demitidas em número muito maior durante a pandemia. Com creches e escolas fechadas por mais de 1 ano, insegurança física das crianças e ausência total de políticas voltadas a elas, às mães restou fazer o que fosse necessário para que as crianças, muitas vezes, apenas sobrevivam. O lamentável debate, extremamente superficial e quase exclusivamente moral sobre retorno presencial obrigatório das creches e escolas – que sequer pauta a infraestrutura dos prédios, as condições de ventilação, higiene e distanciamento, a distribuição de máscaras PFF2, a exigência de comprovante de vacinação para profissionais e estudantes, a testagem e o cumprimento de protocolos seguindo as evidências científicas –, apenas empurrou as crianças para a contaminação no pior momento da pandemia para elas. Ressalta-se que era um cenário absolutamente previsível, uma vez que crianças são um grupo não vacinado, embora muitos não considerem essa vinculação e até tenham celebrado que a Ômicron apenas mate ou faça desenvolver a forma grave da doença em pessoas não vacinadas. Crianças são pessoas não vacinadas. Crianças estão apresentando aumento considerável de complicações respiratórias, confirmando o pior momento para a faixa etária desde o início da pandemia.

Paralelamente à falta de proteção vacinal contra a Covid-19, a vacinação regular foi totalmente negligenciada politicamente e demonstrou níveis muito preocupantes de adesão. Ainda que seja crescente o discurso anti-vacina, utilizar esse argumento como forma de evitar o debate sobre falta distribuição igualitária de vacinas dentro do País, falta de condições físicas de unidades de saúde, falta de treinamento de profissionais da área, bem como falta de qualquer política ativa visando aumentar a cobertura vacinal da faixa etária infantil e sua assistência pública em geral, é, no mínimo, irresponsável para um agente político comprometido com as necessidades de toda uma classe. Durante a pandemia, as unidades de saúde não receberam orientação para adotar ou sequer adotaram medidas simples para a vacinação de calendário em bebês. Se até mesmo profissionais de saúde, tragicamente, tantas vezes, nem utilizavam máscaras dentro dos estabelecimentos do exercício de suas atividades, as situações que foram vividas com a população em geral são igualmente chocantes.

Como se não bastasse a situação vacinal, neste momento, os Estados estão liberando o uso de máscaras, inclusive em locais fechados. As crianças, que mal estão com a primeira dose de vacina contra a Covid-19 – lembrando que não há previsão para que as menores de 5 anos recebam o imunizante -, apresentam aumento significativo de problemas respiratórios e suas complicações na faixa etária, enquanto todas as demais faixas apresentam queda. É o momento de maior vulnerabilidade para as crianças não só à Covid-19, mas a todas as doenças respiratórias, uma vez que o uso de máscaras segurava também a circulação de outros vírus que causam consequências sérias em crianças pequenas. Dessa forma, somando-se a não vacinação das crianças – tanto para Covid-19, quanto para as demais doenças respiratórias – com a diminuição do uso de máscaras da população em geral, o problema alcança um volume descomunal.

Se o óbvio, que são casos com complicações e mortes de crianças, é ignorado politicamente, questões mais profundas, como possíveis sequelas na constituição de seres humanos que estão em desenvolvimento à pleno vapor, ou como os órfãos da pandemia, não tem como ser dimensionadas em uma sociedade que não nutre qualquer tipo de respeito às futuras gerações. E, ainda que fundamental, não basta uma difusão teórica das bases do capitalismo como causa de diversos problemas, se esse processo for feito desvinculado do processo que a realidade traz ao responsável por uma (ou mais) criança(s). Não se pode esquecer que, infelizmente, não há uma realidade pós revolução de construção da sociedade. Ainda há muito o que ser destruído antes de ser possível confiar filhos ao sistema e também ao próximo. A realidade atual posta pelas cuidadoras (já que a imensa maioria é de mulheres) deve enriquecer as raízes teóricas socialistas, que de fato têm relação com as experiências mais revolucionárias. E, da mesma forma, as bases teóricas precisam ser orientadoras da realidade das cuidadoras. A integração dessas duas forças é capaz de iniciar um movimento tão necessário quanto urgente no que diz respeito ao ser humano dos próximos anos.

Que as manifestações de março de 2022 sejam de mais reflexão, inclusive, para as próprias militantes e ativistas, cujos movimentos não incorporam verdadeiramente mães cuidadoras, especialmente as de bebês e crianças pequenas. Ainda que se escolha não ter filhos, crianças continuarão nascendo, crescendo e representando um povo. E estamos falando de mulheres. E estamos falando de crianças. É preciso entender que a sexualidade da mulher passa pelo parto, pela amamentação e pelo puerpério; que o aborto é também questão de mortalidade materna (ainda que não ocupando o primeiro lugar de causas, que decorrem especialmente da má assistência no pré-natal); que os cuidados com as crianças não são apenas exigir construção de creche: o momento mais temido de uma mãe, ao término da licença maternidade,  é o retorno precoce ao trabalho; que não existe aldeia alguma que cuide de uma criança, porque ser mãe no capitalismo dependente latino-americano é muito solitário e de poucas escolhas verdadeiras. Ainda assim, entender que a maternidade representa para muitas mulheres a expectativa real de uma sociedade melhor e o combustível pessoal da luta e militância.

Na era das lutas pelo seu grupo de identidade, quem luta pelas crianças? Sem adentrar na crítica a essa forma atual de engajamento político, somente quem está com responsabilidade e compromisso ao lado de uma criança pode compreender. Apesar de todos já terem sido crianças, certamente foi um momento sofrido – como é, em regra, a infância em um País como o Brasil -, o que certamente faz ser mais fácil a postura dos adultos de repetir que não morreram e estão vivos. Sobreviventes de uma verdadeira guerra de classes, machucados e feridos de corpo e alma, beirando à morte, mas sem ter consciência crítica do que sua própria vida representa. Se a revolução será um produto da maior compreensão da realidade por parte das pessoas, não poderá acontecer com uma população que desconhece a realidade que acompanha o ser humano desde o seu nascimento, juntamente com a realidade dura enfrentada por quem cuida das crianças. A situação gerada pela pandemia apenas caracteriza mais um exemplo do descuido coletivo com as crianças, que já está posto há muito tempo na realidade brasileira.

Referências:

Agência Fiocruz de Notícias
O tombo na vacinação infantil : Revista Pesquisa Fapesp

A opinião do/a/ autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.