“CQC” a velha máquina de humilhar

CQC

Por Wilson Roberto Vieira Ferreira.

Iscas mirins, repórteres dublês de humorista e câmeras escondidas são hoje as principais armas de uma onda de moralismo seletivo que domina as telas de TV, como no caso exemplar que envolveu o deputado José Genoino e o programa “CQC”. Mas há algo de mais profundo nessa onda moralizante do que o atual jogo de cena político-midiático. Por trás da onda de programas televisivos representado pelo “CQC” (programas, por assim dizer, “sensacionalisticamente corretos”) esconderia a própria natureza do funcionamento da indústria cultural que no passado pesquisadores como Adorno e Horkheimer tematizaram: a ritualização de uma espécie de correia de transmissão na sociedade onde “aquele que é duro contra si mesmo adquire o direito de sê-lo com os demais e se vinga da própria dor”. O sensacionalismo seletivo que prefere despejar toda indignação nos “pequenos” que desde o início já estão derrotados e condenados do que nos poderosos seria a ritualização de um prazer voyeurista e sádico do espectador.

O episódio que protagonizou o “repórter” mirim usado como isca para que o programa “CQC” (Custe O Que Custar da TV Band) arrancasse de José Genoino algumas palavras (ele se recusa a conversar com os dublês de repórter/humorista do programa) esconde algo de mais profundo. Condenado pelo julgamento do chamado “mensalão” e exposto extensivamente ao linchamento midiático como um caso exemplar da onda de defesa da moralidade que varre o país, há algo de simbólico na figura de um político acuado em sua sala no Congresso, a portas fechadas deixando entrar uma criança oferecida como isca a alguém isolado e, talvez, carente por simpatia – a criança se dizia filho de militante do PT.

O CQC pareceu querer requentar uma notícia já passada, “chutar cachorro morto”, tentar tripudiar em cima de uma figura já julgada e condenada por chicanas jurídicas e pelo veredito midiático. Em outras palavras, ofereceu para os espectadores alguém supostamente fraco e derrotado para o deleite público da humilhação.

O sintoma mais profundo por trás do episódio pode ser encontrado em uma onda de programas televisivos atuais que não são mais regidos pelo velho modelo dos programas sensacionalistas do passado como “O Povo na TV” ou “Aqui e Agora”. “Profissão Repórter” da TV Globo, “Brasil Urgente” do José Luiz Datena da Band, “Polícia 24 Horas” também da Band e o próprio CQC fazem parte de uma tendência que, poderíamos chamar, de “programas sensacionalisticamente corretos”: aspiram a ser um canal de prestação de serviço comunitário, expõem casos exemplares de imoralidades da máquina pública ou de ações de má fé que prejudicam consumidores e cidadãos, expõem a transgressão de práticas anti-éticas ou que põem em perigo a convivência pública – guiar bêbado, andar de carro no acostamento, o achaque do fiscal da prefeitura a um pequeno comerciante, o baile funk barulhento que prejudica o sono dos vizinhos etc.

O que há em comum em todas as “denúncias” sensacionais de todas essas práticas negativas para a sociedade? Todas essas denúncias parecem ser sempre direcionadas a personagens supostamente em condição inferior a do espectador, seja no aspecto sócio-econômico, pela sua condição (a embriagada que faz um escândalo uma loja de conveniência em um posto de gasolina por problemas familiares) ou apenas por serem flagradas por meio câmeras escondidas que fazem a delícia do público – o prazer voyeurista do espectador em saber que a pessoa na tela não sabe que está sendo observada.

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A indignação moral seletiva para o socialmente inferior desde o início já culpado pelo linchamento midiático

Em outras palavras mais diretas: esses programas parecem ter uma indignação moral bem seletiva ao apontar as câmeras para pessoas miúdas e, desde o início, já derrotadas ou culpadas por antecipação. Ou seja, inferiorizadas. Mas jamais as munições desses programas são detonadas sobre personagens graúdos, poderosos ou de alto prestígio midiático tal como empresários, alto executivos ou grandes corporações.

Matadouros e salsichas

Um flagrante exemplo: novamente o programa CQC volta sua mira para os rincões do interior da Bahia para denunciar as condições insalubres, imundas e desumanas de um matadouro público municipal. Para além da cantilena da má gestão da coisa pública e mostrar de forma sensacionalista pessoas humildes cuja única forma de ganha-pão é através daquilo que escandaliza nossos olhos politicamente corretos, uma questão incomoda: por que essa mesma indignação não se volta a grandes frigoríficos e não é mostrada, por exemplo, a matéria-prima de salsichas – mix de restos de vísceras e ossos dos mais variados lotes de animais, colorizados e aromatizados para se tornarem palatáveis?

O mesmo escândalo e perseguição por helicópteros, câmeras escondidas e de dublês de repórter/humorista não se verifica contra “supostos” criminosos de colarinho branco – lavagem de dinheiro em paraísos fiscais, organização e pressão de lobbies de setores empresariais junto ao Legislativo, sonegação de impostos, ameaça à saúde pública por práticas sanitárias e tecnologias de produção de alimentos temerárias etc.

Essa fixação midiática em escandalizar pequenos, anônimos, derrotados e fragilizados não pode ser apenas compreendida apenas pelo jogo atual político-midiático da indignação seletiva: “aos amigos tudo, aos inimigos a Lei”. Há algo que pertence ao funcionamento da própria Indústria Cultural desde a sua consolidação no período nazi-fascista, tal qual discutido por autores como Walter Benjamin (a estetização da política na mídia) e por Adorno e Horkheimer – a Indústria Cultural como ritualização da “frieza” resultante dos indivíduos atomizados em uma “multidão solitária”.

A correia de transmissão

Em um pequeno texto chamado “Educação Após Auschwitz” Theodor Adorno nos dá uma pequena pista para entender essa questão ao explicar o principal traço da personalidade autoritária ou proto-fascista:

“Aquele que é duro contra si mesmo adquire o direito de sê-lo com os demais e se vinga da dor que não teve a liberdade de demonstrar, que precisou reprimir” (COHN, Gabriel. “Educação Após Auschwitz” In:Adorno. São Paulo: Ática, p.39).

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A correia de transmissão produtora de “frieza” e das relações humanas proto-fascistas

Para Adorno este seria o princípio da gestação de uma configuração totalitária nas relações humanas: o fascismo. Dentro de uma situação que sabem que não podem mudar, indivíduos frustrados, ressentidos e condenados à resignação passam a descontar no outro a sua dor. É o início de uma espécie de “correia de transmissão” que impulsionaria o autoritarismo e indiferença na sociedade.

Podemos descrever essa dinâmica da seguinte forma, tal como Adorno pressentiu à época da ascesão nazi-fascista: o chefe da empresa admira oFüher exposto massivamente pelo rádio e cinema. Frustrado por saber que jamais deixará de ser o que é (mais um admirador de Hitler na multidão solitária) desconta sua dor ao destratar e humilhar seu subordinado na empresa, um assalariado chefe de família. Este, humilhado e frustrado, volta para casa e também desconta na sua esposa com brigas e humilhações. Por sua vez, a esposa se vinga nos filhos com arbitrariedades e surras. Os filhos, sem a presença dos pais e, por isso, expostos a maior parte do dia aos meios de comunicação de massas, vão idolatrar o Füher pop star. E fecha-se o ciclo que se retro-alimenta continuamente.

Para Adorno, na massa todos nós nos sentiríamos “mal amados” – ecos no autor da concepção de Freud sobre as conexões existentes entre multidão e melancolia. Necessariamente, a frustração tem que ser repassada para alguém socialmente mais fraco, criando uma espécie de cadeia de pequenas vinganças movida pelo ressentimento e rancor diante da impotência social. Isso se manifestaria desde a instrumentalização de bodes expiatórios na propaganda política até a explosão de preconceito, intolerância e xenofobia.

Ratinho
Ratinho

Os antigos programas sensacionalistas pelo menos não se escondiam por trás do álibi do “sensacionalis- ticamente correto”

Os conteúdos da indústria cultural seriam, portanto, mobilizados para a ritualização dessas pequenas vinganças da dor de cada um: desde o riso voyeurista no desenho animado ao perceber que o Pica Pau continua a correr sem saber que o chão acabou e que ele está acima de um abismo, até o alívio em descobrir que existe gente em pior estado que você ao ver a alcoólatra da loja de conveniência ser levada pelos policiais em um programa do tipo “Polícia 24 Horas”.

Nessa perspectiva, a tendência atual de programas “sensacionalisticamente corretos”, sob a aparência de prestação de serviço e denúncia moralizante, reedita esse prazer sádico e voyeurístico em descontar no mais fraco a frustração consigo mesmo.

É claro que tripudiar sobre personagens miúdos que, desde o início, já estão condenados e derrotados significa menos trabalho para a produção dos programas de TV do que enfrentar os seguranças e o arsenal jurídico dos poderosos. E mesmo que um programa como o “CQC” começasse a perseguir poderosos com suas iscas, câmeras secretas e histéricos dublês de repórter/humorista, o prazer dos espectadores não seria mais o mesmo. Denunciar as mazelas de pequenos diabos resulta em prazer moralista e compensatório, ao passo que mirar nos poderosos exige um posicionamento ideológico muito mais sério e desgastante para o psiquismo do espectador.

Pelo menos nos antigos programas sensacionalistas como “O Povo na TV” o sadismo e voyeurismo eram mais brutais e evidentes, sem a necessidade do álibi atual da consciência politicamente correta que vê na mobilização de todo um arsenal midiático para denunciar pequenos escroques como o supra-sumo da consciência politizada.

No Cinema Secreto: Cinegnose

Fonte: Com Texto Livre

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