Por Nathalia Passarinho.
“Como eu vou me manter? Como vou me alimentar?” Essas eram as perguntas que martelavam na cabeça de David Nascimento, de 24 anos, quando começou a ter sintomas de covid-19, no início de janeiro. Morador da favela da Maré, no Rio de Janeiro, ele trabalhava numa pequena loja de conserto de celulares e precisava do dinheiro.
“Eu pensei: não tem como eu ficar duas semanas (de quarentena) em casa. Vou ter que sair”, conta à BBC News Brasil. Foi então que a mãe de David pediu que ele fizesse o teste de covid por meio de um programa de combate ao coronavírus na favela da Maré criado, sem ajuda do governo, por moradores, pesquisadores da Fiocruz e ONGs.
“Ela já tinha ouvido falar no Conexão Saúde por vizinhos e a internet. E pediu para eu agendar o teste no aplicativo Dados do Bem, que é parte do projeto. Eu agendei, fiz o teste e, a partir daí, começaram a cuidar de mim”, conta.
David recebeu um oxímetro e um kit com produtos de higiene, passou a ter acompanhamento médico por telefone, teve acesso a sessões online com uma psicóloga e, o mais importante: teve o que comer pelos 14 dias que passou isolado em casa.
“A comida chegava todo dia lá em casa, ao meio-dia. Uma quentinha enorme, que dava para quatro pessoas. E tinha sanduíche natural e outras coisas também. Ter o que comer me tranquilizou.”
Mas David morava com a mãe e um irmão, numa casa pequena na favela. A preocupação passou a ser o que fazer para não passar o vírus ao restante da família.
Para tentar evitar o contágio doméstico, assistentes sociais voluntários do Conexão Saúde fizeram uma avaliação das condições de moradia e criaram uma estratégia de isolamento para a família de David.
“Recomendaram que a minha mãe fosse para a casa da minha avó e meu irmão ficou na namorada. Eu passei a fazer o isolamento com um amigo que também testou positivo. Ele morava com outras pessoas e veio para a minha casa nesse período”, conta David.
Como fazer isolamento na favela?
Exatamente para minimizar os riscos de contágio em casas apertadas, muitas vezes compartilhadas por várias pessoas, um dos braços do projeto é traçar planos sob medida para cada morador que testar positivo para covid. O projeto também inclui testagem em massa, atendimento médico por telefone, alimentação a quem precisa se isolar e muita comunicação para combater notícias falsas.
“Na ausência do Estado, quem está agindo são os pesquisadores, moradores, ONGs, a sociedade civil”, disse à BBC News Brasil o infectologista Fernando Bozza, pesquisador da Fiocruz e um dos idealizadores do Conexão Saúde.
“A gente conseguiu que 96% das pessoas atendidas pelo programa ficassem em isolamento em casa por 14 dias, reduzindo a transmissão do coronavírus na comunidade”, destaca.
Ou seja, o projeto demonstra que, com alimentação e suporte, é possível, sim, fazer isolamento numa favela. O resultado foi uma redução de quase 90% nas mortes por covid na Maré após 15 semanas de implementação do programa. E, atualmente, no auge da crise no Brasil, a mortalidade por covid na favela continua a ser muito menor que a média de mortes na cidade do Rio de Janeiro.
“As pessoas vivem em situações precárias de moradia, mas é possível gerar condições de conter a pandemia mesmo nessas localidades”, diz Luna Arouca, coordenadora da Redes da Maré, uma das ONGs que integram o Conexão Saúde.
‘Máscara dentro de casa e muito álcool em gel’
Rachel de Lima é um exemplo disso. Ela vive num “puxadinho” de um cômodo com o marido, no terreno da sogra, na favela da Maré. Em fevereiro deste ano, ela e a sogra testaram positivo para covid-19 e se viram diante do desafio de fazer o isolamento numa casa dividida com outras quatro pessoas da mesma família.
As duas passaram a receber alimentos e o kit higiene, como aconteceu David, e os assistentes sociais do Conexão Saúde ajudaram a traçar um plano para reduzir os riscos de contágio dos outros parentes.
“Eu fiquei isolada no cômodo do meu puxadinho. Minha sogra ficava na sala e o marido e os dois filhos dormiam no único cômodo que tem na casa dela”, conta.
“Ela ficou de máscara 24 horas por dia, usamos muito álcool em gel e separamos pratos e talheres. Ninguém mais se contaminou”, comemora.
Mortes despencaram para muito abaixo da média do RJ
O Conexão Saúde começou a operar de maneira coordenada a partir de julho de 2020. Após 15 de semanas de funcionamento do projeto, ele conseguiu reduzir em 87,9% as mortes por covid na favela da Maré, uma das maiores do Rio de janeiro, com 140 mil moradores.
Isso foi feito com atendimento médico e psicológico por telefone, isolamento de infectados e testagem de mais de 10% da população, segundo dados da Fiocruz.
Em julho de 2020, a mortalidade de infectados por covid na Maré era de mais de 19%, quase o dobro da média da cidade do Rio de Janeiro, de 11,9%. Em novembro, quase quatro meses após a implementação do programa na Maré, a mortalidade na favela havia caído para 2,3%, equivalente à média nacional.
Com o pico de descontrole da pandemia em todo o país neste ano, as mortes na favela voltaram a aumentar. Mas, ainda assim, estão bem abaixo da média da cidade do Rio de Janeiro, apesar de se tratar de uma das comunidades mais pobres do país.
A taxa de mortalidade no RJ é de 359 mortes por covid-19 a cada 100 mil habitantes. Na favela da Maré, são 188 óbitos pelo vírus a cada 100 mil habitantes, segundo Fiocruz e Redes da Maré.
Ou sejam, morre-se menos de covid nessa favela que em outras partes do Rio de Janeiro.
“O universo de pessoas testadas começou a condizer com a realidade. Antes poucas pessoas com sintomas eram testadas. Mas possivelmente o acesso ao diagnóstico, atendimento médico, isolamento criaram condições para o não agravamento dos casos. A gente vê durante esses meses que o número de pessoas morrendo veio diminuindo”, explica Luna Arouca, da ONG Redes da Maré e uma das coordenadoras do Conexão Saúde.
‘Tudo isso tinha que estar sendo feito pelo governo’
Sem contar com financiamento público, o projeto implementado pela Fiocruz e ONGs conseguiu recursos do Fundo Todos pela Saúde, do Itaú-Unibanco, pelos três meses primeiros meses de existência.
Mas o ideal, segundo os idealizadores, era que as políticas fossem incorporadas pelo governo e o Sistema Único de Saúde, e ampliadas para outras favelas.
“Isso tudo deveria estar sendo feito pelo governo. Na verdade, é uma angústia permanente porque sabemos que não podemos dar toda a estrutura que a população da Maré precisa”, diz Luna Arouca.
“Nós mostramos que é possível fazer entrega (de alimentos e testes), fazer o isolamento, testagem em massa e idealizamos toda a logística. Mas é responsabilidade do Poder Público fazer isso. Estamos fazendo esse trabalho por conta da ausência do Estado.”
Os 4 eixos do programa na Maré
O Conexão Saúde atua em quatro frentes: testagem gratuita para covid, comunicação, atendimento médico e psicológico por telefone e auxílio para garantir o isolamento de infectados.
Seis instituições de pesquisa e ONGs participam: Fiocruz, Redes da Maré, Conselho Comunitário de Manguinhos, SAS Brasil e Dados do Bem.
E os próprios moradores da Maré lideram várias das ações do programa, principalmente na área de comunicação, combatendo fake news e informando sobre como obter ajuda.
“Temos equipe de campo de moradores que circulam pela rua, falando no megafone e que usam suas redes pessoais, informando sobre os serviços e onde procurar ajuda. Além disso, produzimos panfletos, um jornal, faixas, conteúdo para circular no WhatsApp e redes sociais”, diz Luna Arouca.
Com auxílio da Fiocruz, infectologistas e profissionais de tecnologia da informação, foi aberto um centro gratuito de testagem na favela e lançado um aplicativo de celular chamado Dados do Bem.
Lá, a pessoa com sintomas agenda um teste de covid para fazer na própria comunidade e, se o resultado der positivo, ela é direcionada para receber auxílio alimentação, kit limpeza e atendimento médico e psicológico.
“O centro de testagem também fica aberto para quem quiser fazer o teste de graça. E lá já direcionamos quem testa positivo para os outros atendimentos”, explica Arouca.
Agora, o Conexão Saúde está lançando unidades móveis de testes, para alcançar pontos mais isolados da favela. “Temos um grupo que vai de carro às áreas mais remotas”, diz Fernando Bozza, da Fiocruz.
Após testar positivo, o morador da Maré é encaminhado para as demais etapas do programa: passa a ser acompanhado por profissionais de saúde em consultas diárias por telefone; recebe orientações individualizadas sobre como fazer o isolamento, é atendido por psicólogos, se quiser, recebe um kit higiene, com álcool em gel, máscaras e produtos de limpeza, e passa a receber todos os dias “quentinhas” para garantir a alimentação durante a quarentena.
“Quando descobri que estava com covid passei a ter crise de ansiedade e sentir falta de ar. Mas era falta de ar pela angústia. Eles me colocaram em contato com uma psicóloga e comecei a fazer sessões online, além do atendimento médico”, diz David Nascimento, de 24 anos.
“Eu tinha o maior preconceito, achava que terapia era coisa para doido. Mas o atendimento psicológico foi uma das melhores coisas para mim nesse período de isolamento.”
As oportunidades que o Brasil perdeu
Para os idealizadores do Conexão Saúde e os moradores da Maré, o projeto é prova viva de que a pandemia no Brasil poderia ter sido controlada, inclusive nas áreas mais pobres e povoadas, se governo federal e Estados tivessem adotado políticas baseadas na ciência e no aprendizado deixado por outros países.
“Ao longo de um ano de pandemia a ciência e a sociedade já sabem o que funciona contra a covid. Mas o país perdeu tempo falando de cloroquina”, critica o infectologista Fernando Bozza, pesquisador da Fiocruz e integrante do Conexão Saúde.
“O que precisa ser feito é discutir e aplicar o que funciona: Telemedicina para identificação precoce de falta de ar, testagem em massa, medidas de higiene e isolamento. Isso é o que funciona para controle da pandemia.”
Em diversos momentos, integrantes do governo Bolsonaro diziam que medidas de isolamento eram inviáveis, especialmente em comunidades pobres. Mas Luna Arouca diz que o que falta é o Estado dar condições para que as pessoas mais pobres possam se proteger da covid sem passar fome.
“A contenção da pandemia deve passar por políticas sociais. E a gente, de maneira pontual e específica, demonstra isso. Se você traz o mínimo de sobrevivência para aquela família, alimentação, kit de higiene, limpeza, acompanhamento médico, ela consegue fazer o isolamento.”