Covid-19 será cortina de fumaça para desmatamento, alerta especialista do Greenpeace

A realidade devastadora incide sobre os povos da floresta (indígenas e comunidades tradicionais) que vivem na Amazônia e se tornam populações ainda mais vulneráveis durante o período de agravamento da covid-19, que segundo o Ministério da Saúde deve atinge seu pico nas próximas semanas.

Foto: Raphael Alves. AFP.

Por. Pedro Stropasolas

Os alertas de desmatamento na região amazônica bateram recorde histórico no primeiro trimestre de 2020. Se comparado com o mês de março de 2019, houve um aumento de 29,9%, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Foi o maior número registrado desde que o órgão começou a monitor a região pelo sistema Deter-B (Detecção de Desmatamento em Tempo Real), há quatro anos.

A realidade devastadora incide sobre os povos da floresta (indígenas e comunidades tradicionais) que vivem na Amazônia e se tornam populações ainda mais vulneráveis durante o período de agravamento da covid-19, que segundo o Ministério da Saúde deve atinge seu pico nas próximas semanas.

Além das limitações de logística e estrutura da Rede de Atenção Primária à Saúde, há outro fator que potencializa o risco de epidemia: o compromisso do governo federal de atender demandas do setor mineral e do avanço do garimpo, e sobretudo, não coibir a derrubada da floresta.

Para entender como o coronavírus está possibilitando uma ação ainda maior de desmatadores, o Brasil de Fato entrevistou Cristiane Mazzetti, uma das responsáveis pela Campanha da Amazônia da ONG Greenpeace. Ela alerta para o risco de colapso da saúde pública em uma região que já sofre com a sobrecarga das unidades de saúde no período de queimadas. De acordo com dados da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), quem vive em uma cidade próxima às queimadas tem 36% mais risco de internação por problemas respiratórios.

A necessidade de repensar o consumo e o modelo de exploração de commodities, na opinião de Mazzetti, está diretamente relacionada com o surgimento de doenças zoonóticas, como a covid-19. Para ela a grande lição que a pandemia pode trazer é repensar a relação do ser humano com a natureza, de forma que seja uma relação “justa e equilibrada”.

Confira a entrevista completa:

Como você vê a pauta ambiental e a gestão do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles quase um ano após as queimadas que atingiram a Amazônia? 

Acho importante pontuar que houve um desmonte na gestão ambiental no Brasil. O governo Bolsonaro, desde que começou, implementou uma política antiambiental, que enfraqueceu órgãos de controle, seja reduzindo orçamento, seja afastando ou mudando posições estratégicas ou reduzindo o número de fiscalizações. Então, a capacidade de controlar o crime ambiental no Brasil ficou muito menor nesse governo. Para além disso tem a parte dos discursos também, que influenciam. A pessoa que está ali no campo ela se sente encorajada pelos discursos que vêm de membros do governo federal. Então, por exemplo. Bolsonaro declarou várias vezes que não demarcaria novas terras indígenas, prometeu propostas que vão abrir mais terras, mais floresta para a mineração. Na verdade não só promessas, já existe um projeto de lei. Outras medidas que vão além do discurso, foi editada esse ano a MP 910, que vai premiar grileiro.

Tudo isso, seja enfraquecer os órgãos de controle, seja o discurso, seja medidas provisória ou projetos de lei, é tudo um conjunto que se soma e leva ao aumento da destruição, o aumento do conflito no campo. A gente já consegue ver os resultados através dos números do desmatamento que foram publicados no final do ano passado. O desmatamento na Amazônia em 2019 teve um aumento de 30% e a agora os alertas de desmatamento também medidos pelo Inpe estão mostrando um aumento expressivo da destruição. Só os três meses desse ano, se a gente comparar com o número de alertas do ano passado, janeiro, fevereiro e março, teve um aumento aí de 51%. Tudo tá devagar nesse momento de pandemia, muitas pessoas em casa, escolas fechadas, mas não parece ser o caso para madeireiros, grileiros, madeireiros, que seguem avançando sobre a floresta.

O que explica o avanço do desmatamento na Amazônia mesmo com a pandemia em curso? 

O coronavírus cria um contexto onde as atenções estão direcionadas ao combate à covid-19. Atenção aos gestores públicos, orçamentos, etc. Ao mesmo tempo houve uma redução ainda maior das atividades de fiscalização. Isso forma um contexto do qual esses criminosos ambientais se aproveitam. Sem contar que o preço do ouro aumentou nos últimos tempos, isso acaba também agindo como um motivador, uma nova caça ao ouro, já que o preço está mais alto e não tem controle. Uma demanda importante é que todos esse garimpos dentro de terras indígenas seja esvaziado imediatamente. A gente entende que tem uma prioridade de conter essa crise na saúde, mas também o meio ambiente não pode ser deixado de lado. Mesmo porque, esses agentes que entram na floresta podem ser também agentes que vão transmitir a doença para populações mais vulneráveis: povos indígenas, comunidades tradicionais, pequenos agricultores. Então é fundamental que essa crise na floresta também não seja deixada de lado nesse momento”.

Como você vê a questão indígena na pandemia, em um cenário em que ações concretas de proteção da floresta e de seus povos não são estimuladas pelo governo federal. O avanço dos garimpos implica em um risco de genocídio para a população indígena?

Com essa promessa do governo de facilitar essa atividade, tem registros de aumento significativo de atividades de garimpo dentro das terras do povo munduruku, caripuna, os próprios yanomami, então isso já está acontecendo. As populações indígenas passam por uma vulnerabilidade tanto imunológica, uma vez que se o vírus chega a esses povos pode atingir de uma maneira mais drástica. Se a gente observar as causas das mortes dos indígenas no século XX a gente vai ver que é por conta da gripe. Então problemas respiratórios como esses causados pelo coronavírus também pode causar esse genocídio. Aí tem também outra vulnerabilidade, que é a vulnerabilidade social. Esses povos têm menos acesso a serviços públicos como a saúde.

No caso da Região Norte, o coronavírus está se espalhando rapidamente. E se a gente pegar o estado do Amazonas, somente Manaus tem leitos de UTI. Se o indígena em uma área remota é infectado, ele teria que se deslocar até Manaus para ser atendido. A gente tem um governo que declaradamente disse que não iria proteger, que não iria criar novas terras protegidas, enquanto isso é um dever constitucional. Proteger os direitos dos indígenas, proteger os seus territórios é um dever que está na Constituição, no entanto o governo não está cumprindo, e isso gera mais uma vulnerabilidade. De que adianta os indígenas falarem que vão se isolar e ficar nas aldeias, e as terras continuarem sendo invadidas por garimpeiros, madeireiros, e outros desmatadores ilegais.

De acordo com dados da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz),  quem vive em uma cidade próxima à região de queimadas tem 36% mais risco de internação por problemas respiratórios. Com o agravamento da covid-19, o que esperar dessas populações  que já sofrem com dificuldades de logística e estrutura da Rede de Atenção Primária?

Eu diria que para essas populações que estão mais vulneráveis em decorrência do coronavírus, é fundamental que tanto seja colocado um plano tanto para atender qualquer necessidade de saúde que elas venham a ter, quanto um plano também de defesa dos territórios. Agir para conter as queimadas. Agora ainda está no período chuvoso, que está quase finalizando na Amazônia. A partir do período da seca, é quando as queimadas começam. E elas não acontecem naturalmente, ela são induzidas pela ação humana, muitas vezes utilizadas para promover o desmatamento. Se nada for feito, a gente tem em breve uma dupla crise, onde uma complementa a outra. As pessoas ficam mais doentes por conta das queimadas, isso  já aumenta a ocorrência de problemas respiratórios e sobrecarrega o sistema de saúde nessas regiões.

Diversos estudos mostram que na época de queimadas, o sistema público recebe mais gente, fica mais lotado. Ao mesmo tempo, vamos ter pessoas ficando doentes por conta das queimadas e pessoas ficando doentes por conta do coronavírus e isso vai sobrecarregar ainda mais o sistema público de saúde, que já tá muito perto do seu limite. É realmente preocupante e fundamental que as ações para evitar e coibir as queimadas sejam colocadas em práticas. No entanto, não é o que a gente está vendo, a gente vê o governo seguindo uma direção completamente oposta. Recentemente foi demitido um coordenador do Ibama, depois que apareceu em reportagem do Fantástico uma operação para retirar garimpeiros dentro de terras indígenas no Pará. Essa não é a forma como a gente deveria estar encarando essa crise que tem desmembramentos no meio ambiente, e na questão social também para além da saúde pública.

As pandemias tendem a ser mais comuns conforme o planeta se degrada? Como a preservação ambiental é importante para conter o avanço de doenças como a covid-19? 

É um fato que a gente está interferindo cada vez mais nos ecossistemas naturais e isso é algo que precisa mudar. Quanto mais a gente destrói os ecossistemas mais facilitamos o aparecimento ou transmissão de doenças que podem se transformar em epidemias e pandemias. Se a gente pegar o caso do desmatamento, a partir do momento em que promovemos a degradação das florestas, tirando madeira, nós humanos entramos em contato com possíveis hospedeiros e patógenos. O próprio coronavírus ele tem a origem zoonótica, que são doenças transmitidas de animais para humanos. Exemplo disso são zika, febre amarela, e o próprio coronavírus.

Desde 1940, se a gente olhar, o maior vetor de transmissão dessas doenças zoonóticas é a mudança do uso da terra. Então, 30% das doenças zoonóticas vieram por conta da mudança do uso da terra, entre eles o desmatamento. A partir do momento que se desmata, entramos em contato com esses seres. Claro que isso tudo é intensificado pela aglomeração das pessoas nas cidades e também pelo padrão atual de viagens, são muitas viagens internacionais, o mundo está conectado, e isso faz com que doenças possam se espalhar de humanos para humanos.

Tem uma segunda questão que é o equilíbrio da floresta. A partir do momento que a gente interfere na floresta, a gente quebra o equilíbrio. A floresta está lá com suas árvores, com sua biodiversidade, e tem patógenos ali circulando. Só que esses patógenos estão em equilíbrio e os hospedeiros deles não ficam doentes e também acabam não passando esses patógenos para humanos. Tanto que a gente vê aí que tem povos indígenas que convivem em harmonia com a floresta a tanto tempo e nem por isso aconteceu um surto de uma doença que dizimou populações inteiras. A partir do momento que a gente age em desequilíbrio com a natureza, isso aumenta por exemplo o número de predadores para um hospedeiro. Um mosquito que é hospedeiro, tem seu predador que some, que migra. E isso aumenta o número de mosquitos. quanto mais a gente mexe nesse equilíbrio, mas a gente pode causar pandemias. Estamos muito perto de romper limites importantes, seja na Amazônia, que os especialistas recomendam que não tenha seu território mais de 20% desmatados, porque senão a Amazônia pode migrar para um equilíbrio muito mais próximo de savana, e com isso perderíamos várias espécies e serviços ambientais da floresta.

É possível aliar o progresso, o crescimento populacional, o desenvolvimento de tecnologias, o consumo, com a preservação da natureza? Existe uma urgência em reverter o modelo de exploração atual? 

Nós vivemos dentro de um modelo que é altamente predatório e injusto. Então consome muitos recursos naturais, e beneficia uma parcela menor da população, enquanto uma parcela maior vai sofrer os seus impactos. Os povos da floresta geralmente não se beneficiam da destruição. Eles não ganham nada com isso. É importante que a gente repense a nossa relação com a natureza, consuma menos, que o modelo de produção e de consumo de proteína animal, de commodities, seja revisto. O que a gente tem é uma demanda muito alta por proteína animal, o que também gera uma demanda muito alta por alimentos para a proteína animal, a soja. A própria proteína animal, o gado na Amazônia, é o principal vetor de desmatamento. Claro que o gado também está ligado com a questão da grilagem, mas também tem a questão da produção bovina.

Então é preciso rever esse modelo e estabelecer um modelo novo, que esteja muito mais alinhado com os limites ecológicos, mas que também seja justo. Por que a gente tem que destruir a Amazônia para beneficiar poucos pecuaristas, em detrimento de toda uma sociedade que vai sofrer com a destruição? Sendo que a gente poderia implementar um outro modelo de desenvolvimento econômico na Amazônia, que beneficiasse muito mais as comunidades locais, que mantivesse a floresta em pé e fosse justo. Essa é uma lição que a pandemia nos trás. A gente realmente tem que repensar nossa relação com a natureza para transformá-la em uma relação muito mais equilibrada e justa.

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