Covid-19 não torna homens agressivos. A violência vem do vírus do machismo

Especialistas alertam que violência contra a mulher não se resolve com o fim do isolamento, mas com desconstrução da ‘masculinidade clássica’ e da desigualdade de gênero, além de políticas sociais e de renda

Foto: Fernando Frazão/EBC

Por Clara Assunção /RBA

Na semana passada, a ligação de uma aluna para relatar um caso de violência doméstica chamou a atenção da professora e pesquisadora Ana Flávia Pires Lucas d’Oliveira. Pelo telefone, a estudante descrevia a história de uma empregada doméstica, conhecida de sua família, que estava confinada em casa com o marido, um sujeito com histórico de comportamento abusivo, mas que agora, na quarentena, passara a ficar ainda mais violento, andando pela casa com uma faca e ameaçando a mulher de morte.

 

A mulher, no entanto, encontrava-se presa à situação. De um lado impossibilitada de ligar para alguém pela constante presença do marido, que limitava a comunicação ao uso do Whatsapp, por onde passava mensagens com dificuldades por não ter domínio da escrita e da leitura. E, por outro lado, das próprias políticas de isolamento, adotadas para conter o contágio do novo coronavírus.

Um “retrato da violência contra a mulher na epidemia”, como sintetiza Ana Flávia, a especialista em violência de gênero e serviços de saúde da mulher, E também docente do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

“São mulheres em casa, suportando relações que já eram violentas antes e agora com mais dificuldade, porque elas estão com medo de se locomover. Ninguém quer ir ao um posto de saúde ou um local com aglomeração sem necessidade. E os agressores, estando em casa, torna a vida da vítima ainda mais difícil”, explica Ana Flávia.

Perigo histórico

Os primeiros índices de violência contra a mulher neste mês de março – quando foram estabelecidas medidas de quarentena – sugerem um reflexo desse agravamento. No estado de São Paulo, por exemplo, o Ministério Público identificou um aumento de 51,4% nas prisões em flagrantes – um total de 268 contra 177 em fevereiro deste ano.

Também houve alta no número de pedidos urgentes de proteção às vítimas da violência de gênero, que saltaram para 2.500 medidas em março, ante 1.934 no mês anterior. Um outro levantamento, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, identificou para o mesmo período aumento de feminicídio também no Rio Grande do Norte, Acre e Mato Grosso, alertando que o lugar mais perigoso é a própria casa.

As mulheres estão, de fato, mais vulneráveis diante da pandemia do coronavírus. Mas isso não significa um fenômeno recente em função das medidas de quarentena, ao contrário.

A RBA consultou especialistas que atuam diretamente com as vítimas e os agressores, e todos foram unânimes ao assegurar que o isolamento, ou a convivência domiciliar, não são a causa dessa violência.

Há pelo menos três anos os registros de assassinatos de mulheres pelos companheiros crescem no Brasil por exemplo, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. E a razão por trás disso é, antes de tudo, histórica. “Tem a ver com a nossa cultura machista de ser um país patriarcal”, destaca a pesquisadora da USP.

Tensão ambiental e fragilidade

Os dados sobre a violência, no entanto, ainda são preliminares, como analisa Ana Flávia. “Temos ainda pouco tempo de observação. Não que eu duvide que a violência aumentou. Temos toda a lógica para imaginar que ela tenha crescido, porque os fatores de risco aumentaram”, pondera, chamando atenção para o primeiro deles, a crise econômica, associada à diminuição da renda e ao desemprego. “Porque o homem tem essa expectativa dele, e dos outros, de ser o provedor da casa”, justifica.

Além do estresse sobre as questões financeiras, a recomendação “fique em casa” também cria outra tensão sobre o ambiental familiar, em muitos casos divididos também com filhos, já que as escolas estão fechadas. O trabalho doméstico da mulher, portanto, aumenta, mas, sob o efeito da “cultura machista”, que normaliza as desigualdades de gênero, “os homens se sentem inferiorizados por estarem confinados no espaço doméstico e por terem de dividir as tarefas de casa”, acrescenta a professora.

Outros três fatores de risco, já verificado pelos pesquisadores, é quanto ao uso contínuo e maior de álcool, que também acarreta aumento da violência doméstica, à falta de cuidados com o suprimento e a contracepção relacionadas à reprodução e sexualidade e o próprio estresse sobre a morte que a covid-19 traz para todo mundo.

“É a fragilidade. É muito difícil para os homens lidarem com a fragilidade e a vulnerabilidade que todos nós temos. Muitas vezes a reação da masculinidade ao medo, à insegurança e à impotência é a violência. É assim que a nossa sociedade constrói a masculinidade”, aponta Ana Flávia.

O clássico: meninos não devem chorar 

O mestre em Direito e pesquisador Ivan Augusto Baraldi também concorda que não há uma resposta única ou simples para entender os porquês da violência dos homens contra as mulheres, principalmente neste momento em que ele sai de seu lugar “mais tradicional”, o espaço público, para ficar no ambiente privado, o da casa.

Mas é certo é que essa resposta agressiva está diretamente relacionada ao “modelo tradicional de masculinidade, em que o homem acha que deve se encaixar no papel do que não pode expor seus sentimentos, aquele clássico: ‘meninos não devem chorar’”, compara o pesquisador. “Expor sentimentos e a afetividade seriam sinais de fraqueza”.

Todo esse contexto não retira do homem, contudo, sua responsabilidade na agressão de gênero. Atuando há mais de um ano como facilitador de um grupo reflexivo para homens autuados na Lei Maria da Penha, da ONG Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, na capital paulista, Ivan destaca que o desafio é fazer com que esses homens tenham repertórios e respostas diferentes diante dessa vulnerabilidade própria do ser humano.

“A aposta maior, do porquê os homens são mais violentos e do porquê o que vem à tona são homens que batem em mulheres, e não o contrário, é por achar que elas têm de ser submissas, devem satisfação. O homem se sente autorizado a usar dessa violência se achar necessário”, lembra o pesquisador.

O trabalho do grupo reflexivo do coletivo, que ocorre há mais de 10 anos à luz da principal lei para coibir a violência de gênero, tenta anular esse papel. São homens comuns, de todo o perfil, que enquadrados legalmente como agressores, não necessariamente culpados, participam ao todo de 16 encontros, durante quatro meses, para que entendam a gravidade do crime que cometeram e não voltem a praticar uma nova agressão.

“João” da Penha? 

Ivan conta, no entanto, que de tão enraizada que é a cultura machista e patriarcal – apesar das conquistas feministas nos últimos anos pela igualdade –, os homens chegam ao grupo ainda muito reativos, se sentindo vítimas e injustiçados. Não à toa, em meio a pandemia e as denúncias de violência de gênero, há aqueles que usam do número maior de mortes dos homens em decorrência da covid-19, para atenuar a agressão contra mulheres.

“Porque eles acham que nesse momento ‘as mulheres estão com muitos direitos’, ‘não existe lei que protege o homem’, uma coisa meio que ‘não tem uma lei João da Penha’. Existe esse tipo de questionamento e reclamação”, descreve o pesquisador.

“A gente procura trazer para eles que a Lei Maria da Penha é uma lei que se mostrou necessária porque, ao longo do tempo, o homem achou que a mulher era propriedade dele, que ele era dono da mulher, que podia fazer o que quisesse. É uma legislação mais nova agora que, comparada historicamente, é uma coisa muito pequena e pontual”.

Para a advogada Tainã Góis, co-fundadora da Rede Feminista de Juristas (DeFEMde) e integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB e do Conselho Municipal de Políticas para Mulheres de São Paulo, todo esse contexto de violência contra a mulher expõe “que não seria o fim do isolamento que resolveria essa questão”, como chegou a sugerir o presidente Jair Bolsonaro, que tenta minimizar a gravidade da pandemia para ir contra a quarentena.

Desenhando medidas 

“A gente sabe que a violência doméstica é epidêmica com ou sem isolamento, com ou sem coronavírus. Seriam fundamentais políticas de garantia de renda e o fortalecimento de equipamentos de recebimento de denúncias, guarda comunitária. Todos esses equipamentos são necessários, não o fim do isolamento”, ressalta Tainã.

Como conselheira, a advogada relata que já sente em seu dia a dia, a partir das denúncias que recebe, os impactos da violência sobre as mulheres, mas também sobre as crianças, outro grupo que vem recebendo denúncias de agressões. A preocupação, porém, é também com a capacidade da própria rede de equipamentos públicos de saúde, assistência social e de acolhimento, que nos últimos anos sofrem com um “desmonte neoliberal”.

A falta de investimento público já havia sido apresentada no ano passado pela professora Ana Flávia Pires d’Oliveira, quando, em entrevista à RBA , contou sobre seu trabalho, nos últimos 15 anos, atendendo mulheres vítimas da violência no ambulatório do Centro de Saúde Escola do Butantã, Conflitos Familiares Difíceis (Confad), e percebeu que tanto a rede informal da família, amigos, trabalho e as formais, de saúde, delegacias da mulher, centro de referências, falhavam em atendê-las, dando origem à pesquisa Atenção primária à saúde e o cuidado integral em violência doméstica de gênero: estudo sobre a rota crítica das mulheres e crianças e redes intersetoriais. 

Diante da pandemia, nesse caso, a rota, que já era crítica, pioru. Tainã concorda. “Toda a cadeia de serviço social fica prejudicada e a resposta agora (na crise) é sempre a mesma, fortalecer esses equipamentos, fortalecer a assistência social, os serviços públicos, e não as medidas penais. A gente tem uma pesquisa que vê quantas medidas penais foram tomadas, mas eu queria saber como é que está a demanda para o equipamento público, sabe?”.

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