Por Schirlei Alves e Hyury Potter.
As imagens de praias do litoral catarinense lotadas no feriado de 12 de outubro contrastam fortemente com as medidas de isolamento para controle da pandemia de covid-19. Em alguns casos, como uma festa na Praia do Rosa, em Imbituba, no litoral Sul de Santa Catarina, tem tanta gente amontoada que encontrar a faixa de areia se torna um desafio. Em Balneário Camboriú, fiscais da prefeitura já interditaram até festa com aglomeração em lancha.
Para especialistas, cenas como essa ajudam a explicar por que o estado passou a registrar números recordes de covid-19 nos meses seguintes. Foram 648 mortes em novembro, mais do que o dobro de vítimas fatais de outubro. E dezembro já registra 177 óbitos apenas nos primeiros quatro dias.
O número de infectados também é recorde, com média diária acima de 6 mil casos na última semana. O resultado é uma ocupação de leitos de covid-19 em todo o Estado que se aproxima de 90% pela primeira vez desde o começo da pandemia. A saída encontrada pelo governo para frear essa alta nos números de covid-19 foi publicar um decreto na sexta-feira (4/12) estabelecendo um toque de recolher — limitando a circulação de pessoas de madrugada. O decreto também determina que estabelecimentos de atividades não essenciais, como bares, restaurantes e baladas, fechem as portas à meia-noite.
Apesar do decreto ter sido publicado no final da tarde de sexta-feira, o governo já tinha anunciado as medidas dois dias antes. Alguns lugares chegaram a cancelar eventos, mas não é difícil encontrar propaganda de festas em bares badalados de Florianópolis e Balneário Camboriú.
A BBC News Brasil entrevistou frequentadores dessas festas, que explicaram que os estabelecimentos usam a aparência de restaurante ou bar para promover aglomerações maiores, sem distanciamento ou fiscalização do uso de máscara.
O governo encaminhou em nota que os municípios têm “autonomia” para fiscalizar essas situações. O secretário de Saúde de Santa Catarina, André Motta Ribeiro, aponta ainda a aproximação do verão, quando muitos turistas passam a visitar o Estado, e as eleições municipais como fatores que prejudicaram o combate à covid-19 nos últimos meses.
“Os resultados ruins fazem parte de uma sequência de fatores. Nós ainda estamos no meio de uma pandemia. Apesar de ter tido decréscimo nos meses de agosto e setembro, aumentou a velocidade da transmissão principalmente pelo descumprimento de regras, falta de distanciamento social e também em função do calor, dos feriados prolongados e da campanha política”, disse o secretário.
Santa Catarina se orgulha dos bons números econômicos, como a quarta posição em PIB (produto interno bruto) per capita do país, e, ainda em março, foi um dos primeiros Estados a estabelecer restrições de transporte coletivo e fechar escolas por causa da pandemia.
Em julho, as competições esportivas, atividades de cinema e teatro, casas noturnas e eventos ainda estavam proibidas. Uma atualização da portaria publicada em 28 de agosto, quando a taxa de ocupação de leitos era de 70%, liberou a circulação de ônibus e a abertura de bares e shoppings mesmo em regiões consideradas de risco gravíssimo na matriz de risco — que estabelece níveis da pandemia nas regiões de acordo com fatores como o número de casos e a capacidade de atendimento em saúde.
Hoje, o mapa que mede o nível de risco da doença por região mostra praticamente todas as regiões marcadas na cor vermelha — gravíssimo. A única região na cor laranja (nível grave) é o extremo-oeste. No entanto, Ribeiro nega que tenha havido afrouxamento das medidas restritivas nesse período e disse que o que houve foi “regulamentação das atividades econômicas conforme a matriz de risco”.
Não é assim que o professor Oscar Bruna-Romero, do Departamento de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), vê a atual situação do Estado. Para o pesquisador, que acompanha os casos de covid-19 desde o início da pandemia, houve relaxamento e falta de fiscalização por parte do poder público.
“O relaxamento é, sem dúvida, a principal causa do aumento dos casos no último mês e meio ou dois meses. Não existe fiscalização de verdade, as reuniões de grupos de pessoas sem respeito ao distanciamento, à ventilação e às máscaras acontecem em todos os lugares”, disse o professor.
“Por algum motivo que desconheço, na mesma situação ou pior que a que tínhamos meses atrás, o governo está atuando de forma diferente. Para deixar claro, não estou dizendo para limitar as atividades econômicas, estou falando sobre organizar e fiscalizar a realização dessas atividades de forma adequada e com o conhecimento científico”, afirma o professor.
A cobrança por mais fiscalização chegou ao Judiciário. No dia 27 de novembro, a Justiça atendeu a um pedido do Ministério Público de Santa Catarina e deu ao governo o prazo de cinco dias para comprovar que está cumprindo o acordo judicial de combate à pandemia firmado em setembro. Para o promotor Luciano Naschenweng, da 33ª Promotoria da Capital, os números e as ações de governo não estavam demonstrando que o compromisso estava sendo executado.
Uma crise política no meio da pandemia
Nos últimos meses, a covid-19 ficou em segundo plano por causa de uma crise política, que que chegou a provocar o afastamento do governador Carlos Moisés (PSL) por mais de um mês, entre 24 de outubro e 27 de novembro.
A vice-governadora Daniela Reinehr (sem partido) assumiu o posto e, em meio a polêmicas por causa da simpatia do pai pelo nazismo, recuou em declarações sobre cuidados para se proteger da covid-19. Após críticas de bolsonaristas, ela até apagou uma postagem em uma rede social onde orientava pessoas a usar máscara e limpar as mãos. No dia 17 de novembro, Reinehr testou positivo para covid-19.
A falta de medidas mais efetivas para conter a alta dos casos já visível no começo de novembro levou Santa Catarina ao seu pior momento na pandemia. Em áudio enviado à reportagem na sexta-feira, o secretário André Motta Ribeiro criticou a gestão da governadora interina.
“Por que medidas de restrições não foram tomadas antes? As medidas são claras né, há muito tempo, conforme risco sanitário, o que tem que ser feito. E as medidas vieram agora porque justamente agora a gente tem gestor nesse Estado”, afirmou Ribeiro.
Moisés retornou ao posto de governador no dia 27 de novembro. Mesmo com números altos, o governador demorou mais de uma semana para apresentar o decreto que estabelece restrição de circulação de pessoas e horários para fechamento de estabelecimentos pelos próximos 15 dias. Ainda segundo o decreto, transportes coletivos urbanos devem respeitar a ocupação máxima de 70% da capacidade do veículo, abrindo exceção para pessoas em atendimento de situação de emergência, percurso de trabalho ou em atividades essenciais.
As novas restrições não agradaram a representantes sindicais dos setores de turismo, como bares, restaurantes e hotéis. O presidente sindical do setor em Florianópolis, Estanislau Bresolin, responsabiliza as aglomerações clandestinas e a falta de fiscalização pelo agravamento da pandemia.
“É mais fácil fiscalizar CNPJ do que CPF, paga o preço quem não merece. Esse novo decreto é altamente prejudicial aos bares noturnos”, disse. Ele também não concorda com a limitação de ocupação dos hotéis. “Prédios inteiros estão sendo alugados [para a temporada de verão] sem restrição e as restrições são válidas para quem cumpre os protocolos”, protesta.
Cientistas recomendam distanciamento
Para a comunidade científica, o desencontro de informações sobre a doença — o que inclui o incentivo de tratamentos que não tiveram eficácia comprovada como a cloroquina, a ivermectina ou até mesmo a ozonioterapia retal proposta pelo prefeito de Itajaí, em Santa Catarina —, e a falta de sincronia e comando nas ações dos governos seja na esfera municipal, estadual ou federal deixam a população confusa.
O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, disse nesta semana que não houve aumento de casos após as aglomerações das eleições. No entanto, os números de casos de covid-19 cresceram em média 35% nos últimos sete dias de novembro, em comparação com 15 antes, segundo um consórcio de veículos de comunicação que organiza dados de covid-19 no país.
Para Luiz Almeida, microbiólogo e integrante do Instituto Questão de Ciência, há diversos estudos que comprovam que o risco de contaminação em locais fechados, como bares e baladas, é maior, pois o vírus pode permanecer no ambiente por até três horas.
“O problema da aglomeração em praias é que as pessoas vêm de vários lugares do país e elas precisam sair de casa para comer, fazer mercado, elas frequentam restaurantes, bares e isso acaba aglomerando em um único lugar”, diz Almeida.
O indicativo de que a vacina está mais próxima da realidade, e que estará disponível na rede pública possivelmente no primeiro semestre do ano que vem, também contribui para a falsa sensação de que não é mais preciso manter o distanciamento social.
Segundo o Almeida, o isolamento deve ser mantido até que boa parcela da população seja vacinada para reduzir a circulação do vírus, uma vez que os primeiros vacinados serão os de grupo de risco. Além disso, as primeiras vacinas que estão chegando são ministradas em duas doses em intervalo de até um mês.
“A OMS pede que, se a eficácia da vacina for de 50%, precisa vacinar 100% da população. Com uma vacina com 90% de eficácia, precisa vacinar entre 60% a 70% da população, isso com os resultados de laboratório. Mas agora é que a gente vai ver realmente qual é a efetividade da vacina, que é a capacidade de mudar o cenário atual de muitas internações e mortes por covid-19. Só o tempo vai dizer quantas pessoas a gente realmente vai ter que vacinar”, explicou o pesquisador.