Por Danilo Queiroz e Amanda Audi
Edição Mariama Correia
Durante anos, o professor Marcel Couto frequentou o centro de São Paulo para conversar com pessoas transgêneras, travestis e não binárias que precisavam de incentivo para concluir a educação formal. Em 2015, ele criou o cursinho popular Transformação, que oferece alfabetização, cursos técnicos, profissionalizantes e preparatórios para o vestibular, com foco neste público. Mais de 100 pessoas já passaram pelo cursinho e sete conseguiram entrar na faculdade – todas em instituições privadas. “Ainda há uma dificuldade muito grande no acesso à educação superior, especialmente em instituições públicas”, diz Couto. “Pouca pessoas trans e travestis conseguem entrar na universidade. Menos ainda conseguem permanecer.”
Apenas duas das 27 universidades federais das capitais brasileiras reservam cotas para pessoas trans, travestis e não binárias, de acordo com levantamento feito pela Agência Pública. A Universidade Federal da Bahia (UFBA) adotou o sistema em 2019, e a de Santa Catarina (UFSC) no ano passado. A Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a Universidade Federal de Sergipe (UFS) e a Universidade de Rondônia (Unir) estão em fase de implantação, que deve começar no processo seletivo deste ano para ingressantes em 2025.
No Brasil, 0,3% dos estudantes de instituições federais se identificam como transgêneras, segundo o último estudo feito pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ações Afirmativas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em 2018.
Além da UFBA, da UFSC e da Unir, outras seis universidades fora de capitais introduziram cotas para pessoas trans: a universidade de Campinas (Unicamp); Federal do ABC (UFABC); Estadual da Bahia (Uneb); Federal do Sul da Bahia (UFSB); Estadual do Amapá (UEAP); e Estadual de Feira de Santana (UEFS). Apenas a UFSC possui uma política que vai além das cotas – englobando a facilitação do acesso a bolsas, adaptação da estrutura física (como a adoção de banheiros inclusivos), ouvidoria para receber denúncias, oficinas de formação para o corpo docente, entre outros.
A maioria das instituições de ensino consultadas pela reportagem – 20 das 27 – adotou parcialmente as cotas para transgêneros, exclusivamente em alguns cursos de pós-graduação. É mais fácil oferecer cotas no mestrado e doutorado porque a burocracia é menor. Cada programa tem uma certa autonomia para tomar decisões – ao contrário da graduação, em que cada passo é definido por um colegiado de professores, alunos e servidores, o que torna o processo bem mais lento.
Já as federais do Acre (UFAC) e da Paraíba (UFPB) são as únicas universidades públicas de capitais que, até agora, não criaram políticas afirmativas para o acesso deste público à graduação ou pós-graduação. De acordo com elas, porém, existe pressão interna para que alguma iniciativa seja tomada – principalmente dos movimentos estudantis. A oferta de cotas apenas na pós-graduação não responde ao problema da falta de acesso de pessoas trans, já que a graduação é a porta de entrada no Ensino Superior.
A lei de cotas do Governo Federal diz que deve haver reserva de vagas para alunos negros, indígenas, pessoas com deficiência e de baixa renda nas universidades públicas. Existem discussões para que pessoas trans e travestis sejam incluídas, mas nenhuma avançou o suficiente.
No Congresso, a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) apresentou dois projetos de lei sobre o tema – um propõe a reserva de vagas nas universidades e o outro em concursos públicos. “As iniciativas visam incluir as pessoas trans e travestis, por meio da educação e do trabalho digno, em nossa sociedade. Ajudam a resgatar a cidadania historicamente negada à nossa comunidade”, diz ela, a primeira mulher trans eleita à Câmara dos Deputados.
“É preciso oferecer políticas de permanência e inclusão”
Mesmo nas poucas universidades com cotas na graduação, ainda há uma dificuldade em preenchê-las. Quando a Universidade Federal do ABC (UFABC) adotou o sistema, em 2019, foram oferecidas 32 vagas para pessoas trans, mas apenas 17 foram preenchidas. Na edição mais recente do vestibular, em 2023, foram 40 vagas e só 23 ocupantes.
Na avaliação de Cláudia Vieira, Pró-Reitora de Assuntos Comunitários e Políticas Afirmativas da UFABC, a disparidade que há no número de vagas disponíveis em relação ao número de matrículas é consequência de um ambiente universitário que ainda não conseguiu se ajustar totalmente para atender a todas as pessoas, sem distinção. Na universidade, 1,6% das vagas são proporcionalmente distribuídas pelo número de vagas disponíveis nos quatro cursos de ingresso, sendo o Bacharelado em Ciências e Tecnologia (BCT) o curso que mais possui vagas e consequentemente ingressantes trans e travestis.
“Felizmente graças ao trabalho conjunto do coletivo de estudantes trans da UFABC e a pró-reitoria, conseguimos iniciar o processo de dizer a esse público que esse lugar é também deles. Ofertamos a reserva de vagas por meio das cotas trans do cursinho popular da universidade até os programas de pós-graduação na tentativa de acelerar esse processo e ampliar o número de docentes trans, travestis e não-binárias”, diz.
“Além de ampliarmos o número de bolsas e auxílios, entendemos a importância de ter esse público nos espaços de tomada de decisões e liderança, como a professora Ana Lígia Scott, primeira mulher trans a concorrer à vice-reitoria da UFABC”, diz Cláudia Vieira. Ela ressalta que, para além de garantir o acesso à universidade, “é preciso oferecer políticas de permanência e inclusão”. “Ao contrário disso, essas pessoas até poderão ingressar, mas certamente não irão se sentir pertencentes o suficiente para concluir o Ensino Superior”.
Além de serem alvos recorrentes de transfobia e homofobia, 33% das pessoas trans, travestis e não binárias que acessam universidades dependem de programas e bolsas que auxiliem sua permanência, segundo pesquisa do Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ações Afirmativas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Gemaa). O levantamento também mostrou que 58% desses estudantes são negros e 76% têm renda per capita de menos de 1,5 salário mínimo.
No ano passado, a estudante de licenciatura em Pedagogia pela Faculdade de Educação Francisca Silva se juntou à luta pela adesão às cotas trans na graduação da Universidade de São Paulo (USP). “O reitor olhou para o documento que tínhamos feito e simplesmente ignorou alegando que não ia discutir o assunto. Nem passa na cabeça das pessoas que isso pode acontecer em um espaço como a USP, onde o prestígio instrumental dos rankings internacionais invisibiliza pautas como a permanência e inclusão”.
Gabriele Weber, pós-doutora em Física, diz que precisou se esconder para se sentir aceita dentro do campus da Universidade de São Paulo (USP), durante 35 anos da graduação até o pós-doutorado. “Não respeitavam meu nome social, os pronomes no feminino. Fora os olhares e comportamentos velados que a gente não consegue denunciar. Nem passava pela minha cabeça transicionar nesse período. Só me senti preparada para sair do armário quando assumi uma posição de liderança. Mesmo assim, fui excluída de grupos de pesquisa e laboratórios após assumir publicamente que sou uma mulher”, afirma.
Para ela, o ambiente universitário é excludente. “Até hoje, o conhecimento científico pelo qual convivo é comandado, sobretudo, por homens brancos heterossexuais de classe média e meia-idade. Existe uma construção social para associar as ciências exatas, no geral, à masculinidade. Romper ou hackear isso é estar preparada para se submeter a diversos tipos de violências”, diz.
Por essas e outras, apesar de não ter estudado na UFSC, eu a amo. Ela me enche de orgulho. Em um estado que a anos, só me envergonha.