Por Maurício Thuswohl.
“Nesta pandemia, as universidades brasileiras e as instituições de pesquisa estão profundamente empenhadas em buscar soluções, remédios, testes e alternativas de produção de equipamentos. Só que estamos em condições debilitadas porque historicamente não houve um apoio muito grande à ciência e tecnologia no Brasil. O parque industrial brasileiro está em uma situação difícil, temos imensos desafios.”
O desabafo de Lineu Moreira, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), reflete a angústia de um setor que busca dar respostas urgentes à covid-19 ao mesmo tempo em que sofre com o desmonte promovido pelo governo federal nos últimos quatro anos.
Para Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), o Brasil atravessa a pandemia em plena crise política, econômica e social. “É o que a gente pode chamar de tempestade perfeita. Mas, apesar dos aspectos horríveis que traz para todos nós, essa epidemia está trazendo também uma reavaliação do papel do Estado e das instituições públicas de ciência e tecnologia, que têm demonstrado uma força fantástica no enfrentamento da doença. As universidades públicas estão adaptando seus laboratórios para enfrentar a crise, as instituições de pesquisa estão presentes. Isso mostra que, apesar do corte sucessivo de recursos que tivemos nos últimos anos, a ciência está viva no país, enfrentando as emergências que aparecem.”
Agora refletidas nas dificuldades frente ao coronavírus, as sucessivas reduções de recursos para o setor impostas desde o governo de Michel Temer se agravaram com a chegada de Jair Bolsonaro ao poder.
Corte de R$ 2,3 bi em CT&I
Na proposta de orçamento para 2020, o governo federal reduziu em 15% os recursos destinados ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTIC), um corte de R$ 2,3 bilhões em relação ao ano anterior. Para completar, 39% da verba total destinada ao ministério (R$ 5,1bilhões) está bloqueada como reserva de contingência e poderá ser utilizada pelo governo em outras áreas.
“Se pegarmos isoladamente no orçamento do governo federal a função de Ciência e Tecnologia, temos pouco mais de 0,08% do PIB. Isso pode chegar a 1,5% do PIB quando fazemos todo o tipo de manobra contábil para juntar tudo, desde as fundações estaduais de amparo à pesquisa, as empresas, os laboratórios até as universidades. Há dez anos, o investimento federal era 0,1% do PIB. Isso significa dizer que a gente vem perdendo espaço de financiamento para a ciência brasileira”, afirma Fábio Guedes, presidente do Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap).
Nos últimos anos, os países da OCDE tiveram investimento médio em ciência e tecnologia superior a 2% do PIB. Alguns, como a Coreia do Sul, investiram mais de 4% do PIB. De acordo com o Índice Global de Inovação, o Brasil caiu 19 posições na última década, passando para a 66ª posição no ranking de investidores em CT&I no ano passado. “Esperamos para este ano um resultado ainda pior. A posição que o país ocupa nos rankings internacionais não é compatível com o fato de sermos, ainda, a nona economia do mundo. A tendência é perder posições. Isso significa fechar indústrias, perder empregos e diminuir a qualidade de vida da população”, afirma Gianna Sagazio, diretora de Inovação da Confederação Nacional da Indústria (CNI).
Na contramão
O governo brasileiro, segundo Sagazio, segue na contramão do mundo. “Mesmo antes da pandemia, o Brasil já vinha em movimento contrário ao que estava acontecendo nos países desenvolvidos. Nos Estados Unidos, na Europa, na China, no Japão e em Israel existe o reconhecimento por parte do governo e da sociedade de que investir em CT&I é prioridade e um vetor para o desenvolvimento. No ano passado, em termos absolutos, EUA e China investiram acima de R$ 500 bilhões em Pesquisa & Desenvolvimento.”
Davidovich também cita o caso específico dos Estados Unidos. “Lá, por três vezes o presidente Donald Trump enviou ao Congresso um orçamento com fortes cortes na área de ciência e tecnologia. Em todas essas vezes, o Congresso reagiu anulando os cortes e aumentando o orçamento em relação ao ano anterior. O Congresso norte-americano não faz isso só porque tem compreensão da importância da ciência no desenvolvimento dos EUA, mas também porque há fortes pressões de empresas como Google, IBM e General Motors para que ele valorize o orçamento em ciência e investigação de tecnologias nas universidades e instituições do setor”.
Ao debilitar a ciência, o governo prejudica também a indústria brasileira, atesta a CNI. “Mesmo antes da pandemia temos visto ao longo dos últimos anos um enfraquecimento da indústria. Isso traz um problema muito sério para o desenvolvimento do país porque a indústria está em todas as áreas. Neste momento de crise sanitária, vemos que respiradores, fármacos, transporte e logística vêm da indústria. Ela permeia toda a economia. Se não tivermos uma indústria forte e dinâmica, é impossível termos um país desenvolvido. É preciso que a CT&I seja valorizada e que a essa valorização correspondam recursos”, diz Gianna Sagazio.
Projeto de nação
A empresária, que também integra a Mobilização Empresarial Pela Inovação, afirma que debilitar a ciência atrasa o desenvolvimento econômico do país. “Precisamos de uma estratégia de país em longo prazo que coloque ciência, tecnologia e inovação como prioridade e como vetor para o alcance do desenvolvimento. Só assim teremos uma indústria forte. Nenhum país é desenvolvido sem ter uma indústria forte, criando postos de trabalho e oferecendo empregos de qualidade. A ciência é fundamental porque vai irrigar com conhecimento toda a pesquisa e o desenvolvimento que se precisa fazer.”
Neste momento de combate à covid-19, as fundações e demais entidades de apoio à pesquisa também sentem na pele os cortes orçamentários. “As fundações estaduais estão com muitas restrições para atuar nesta pandemia porque não contam com a parceria direta da unidade federativa. Apesar da comunidade científico-acadêmica, das nossas associações e entidades estarem à disposição, lutando no âmbito local com o apoio de prefeituras e governos estaduais, não há movimento nesse sentido do ponto de vista federal. Há o movimento contrário de negar a realidade ou construir a realidade a partir de falsas premissas”, diz Fábio Guedes. Cortes orçamentários em CT&I dificultam ação contra o coronavírus
O presidente do Confap lamenta a situação das agências de fomento. “O CNPq e a Capes vêm desidratando em termos de recursos ao longo dos últimos quatro anos. Com a Inciativa de Ciência e Tecnologia no Parlamento (ICTP.br), a comunidade científico-acadêmica conseguiu a duras penas reverter o quadro de queda abrupta dos recursos de financiamento para as agências. Mas, não conseguiu ainda reverter o sério contingenciamento do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Isso se reflete nas fundações estaduais de amparo à pesquisa.”
Esforço jogado fora
Lineu Moreira ressalta que o esforço de muitos anos pode estar sendo jogado fora pelo atual governo. “O resultado de décadas de trabalho continuado de financiamento de órgãos como CNPq, Capes, Finep, fundações de amparo à pesquisa e universidades criou um sistema nacional de ciência e tecnologia robusto que hoje representa mais de 50% do que é produzido na América Latina inteira. Mas, precisamos melhorar a qualidade da nossa pesquisa, seu impacto científico poderia ser bem melhor do que é.”
O presidente da SBPC critica a política de cortes e restrições temáticas na concessão de bolsas de pesquisa. “A ciência é fundamental pelo lado econômico, mas não só isso. Ela é fundamental para a cultura de uma nação. As ciências humanas e sociais são essenciais justamente para a gente pensar o mundo e as relações humanas e sociais. Não devem ser deixadas de lado. Valorizar o ensino superior e o ensino técnico para formar pessoal qualificado é um desafio para o Brasil”, diz.
Moreira faz um apelo pela salvação da ciência brasileira. “Que a CT&I esteja integrada em um projeto de nação democrática, soberana, menos desigual e com desenvolvimento sustentável. As entidades do setor têm discutido programas mobilizadores em áreas como energia, agricultura sustentável, mar, Amazônia e redução das desigualdades, entre outros. Poderemos certamente fazer muito mais do que estamos fazendo se tivermos apoio e estivermos encadeados em um projeto de nação, um projeto de país mais amplo.”