Corte Interamericana determina que Brasil proteja monumento no PR em memória à luta pela terra

Órgão reconhece que monumento recupera a memória das vítimas, dos fatos ocorridos e da luta pela reforma agrária

Obra projetada por Oscar Niemeyer em 2000 marca o local onde o trabalhador rural e integrante do MST, Antônio Tavares Pereira, foi assassinado pela Polícia Militar do Paraná – Foto: Wellington Lenon

Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou, em caráter excepcional, que o Estado brasileiro proteja o monumento em memória à luta pela reforma agrária e ao trabalhador rural Antônio Tavares Pereira, assassinado em 2000 pela Polícia Militar do Paraná.

A decisão da Corte Interamericana, proferida no último dia 24 de junho, reconhece o risco iminente de dano ao monumento projetado por Oscar Niemeyer e fixado às margens da rodovia BR-227, no km 108, em Campo Largo (PR), com a manifestação pela empresa Postepar, proprietária do terreno onde a obra foi instalada, de interesse em removê-lo do local.

Em 2001, a empresa cedeu a área para instalação do monumento. Segundo o contrato de comodato firmado entre a Postepar e organizações sociais, o período de vigência da sessão seria de cinco anos. Antes do fim de cada período de cinco anos, o contrato poderia ser rescindido por manifestação expressa.

Caso as partes não se manifestem durante o período, a renovação do contrato é automática, por um novo período de cinco anos – durante o qual a sessão da área está assegurada. A empresa tentou rescindir o contrato em fevereiro de 2016, mas notificou fora do prazo – após 21 de fevereiro – e já na vigência do novo período de cinco anos de validade do contrato. Em recente comunicado, a empresa solicitou novamente a revogação do contrato.

O caráter excepcional da decisão pela Corte Interamericana de Direitos diz respeito ao fato de que o órgão acolhe medidas provisórias que assegurem proteção, principalmente, a pessoas em risco de vida, e não a um bem cultural – como um monumento.

No entanto, a Corte reconheceu que o pedido realizado por Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Terra de Direitos e Justiça Global para proteção da obra cumpre três condições fundamentais para determinação de medida provisória: a defesa da obra é urgente, tendo em vista o risco de dano com possível remoção do monumento; a ameaça ao monumento e à memória de luta é grave; e uma possível danificação à obra configura-se como dano irreparável.

“Cabe ressaltar que, embora o objeto imediato deste pedido de medidas provisórias seja a proteção de um bem, o objeto imediato da proteção solicitada é a memória de Antônio Tavares Pereira e das dezenas de supostas vítimas do caso sub judice”, destaca um trecho da decisão.

No documento, o órgão judicial autônomo reconhece que o monumento presta homenagem não apenas a Antônio Tavares e os demais trabalhadores rurais feridos na ação militar realizada em 2000, como também recupera a memória destas pessoas, dos fatos ocorridos e da luta pela reforma agrária no estado.

A medida cautelar proferida pela Corte na última semana tem vigor até a decisão do mérito do caso. Em fevereiro, a Corte Interamericana de Direitos Humanos acolheu o caso apresentado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre o assassinato do trabalhador rural Antônio Tavares e as lesões corporais sofridas por 185 camponeses integrantes do MST, por policiais militares, em 2 de maio de 2000, no Paraná.

Criminalização

O episódio é considerado pelo MST “um dos momentos mais emblemáticos do processo de violência e de criminalização na luta pela terra”. A apresentação do caso à Corte Interamericana é resultado – passados mais de 21 anos do fato – da omissão e não responsabilização dos envolvidos na morte do trabalhador e repressão massiva pelo Estado.

José Damasceno, integrante da direção estadual do MST, relembra que o monumento foi erguido em um período de forte repressão do Estado à luta pela reforma agrária, por isso considera “mais do que justa” a decisão da Corte.

“A presença do monumento naquele espaço é uma denúncia permanente e para toda a sociedade brasileira, de um crime que tirou a vida de um trabalhador, e que até hoje segue impune, sem que nenhum dos culpados tenha sido responsabilizado”, diz.

A reparação da violência sofrida pelo MST passa pelo reconhecimento de que o ato ocorreu e pela garantia do direito à memória de suas vítimas, conforme avalia a advogada Luciana Pivato, coordenadora do Programa Nacional da Terra de Direitos.

“O monumento Antônio Tavares é uma das únicas obras de arte de valor cultural relacionada aos conflitos de terra do Estado do Paraná e do país. A Corte reconheceu, em sua decisão cautelar, que além de ser uma obra de arte projetada por um renomado arquiteto brasileiro, hoje falecido, o monumento representa um importante símbolo de memória e uma referência histórica, das trabalhadoras e dos trabalhadores sem terras vítimas de conflitos fundiários na região”, explica.

Para Sandra Carvalho, coordenadora da Justiça Global, a determinação da Corte aponta para a necessidade do Estado brasileiro em adotar medidas efetivas de memória e justiça para reparar as violências cometidas contra os trabalhadores rurais.

“O direito à memória adquire por este monumento não apenas uma dimensão individual, mas uma dimensão verdadeiramente coletiva, que se relaciona à história da luta pela terra no Brasil. A Corte, em sua decisão, não apenas reconhece esta dimensão, mas admite que a preservação do monumento pode configurar uma das medidas de reparação em uma futura condenação do Estado Brasileiro.”

Ações de defesa do monumento

Para garantir a integridade do monumento e amparada na Constituição Federal e leis municipais sobre preservação da memória, as organizações sociais solicitaram ao município de Campo Largo, neste ano, o tombamento da obra.

Com processo administrativo instaurado, o Departamento de Cultura do município solicitou uma análise da Procuradoria Geral da Prefeitura e notificou a Postepar, que declarou não estar interessada em continuar com o contrato de comodato.

Ignorando o elemento territorial como fator simbólico da obra – já que o monumento está nas proximidades de onde ocorreu a violência contra os trabalhadores -, a Postepar sugeriu deslocamento da obra e declarou que o monumento “é apenas um pedaço de concreto no meio do mato”.

A Procuradoria Geral encaminhou o processo à Secretaria Municipal de Educação, Esportes e Cultura de Campo Lago para a continuação do processo administrativo, sem, no entanto, determinar que a Postepar não pode realizar qualquer intervenção no monumento que signifique dano ou remoção da obra.

Na denúncia realizada à Corte Interamericana, as organizações apontaram que a remoção do monumento não só o descaracterizaria, já que sua vinculação com o local específico onde se encontra é fundamental, mas também traria consigo um risco de danos graves, inerentes a qualquer deslocamento de um bem cultural.

Antes da instauração do processo administrativo, o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Habitação, Urbanismo e Meio Ambiente do Ministério Público do Estado do Paraná solicitou, ainda em 2016, medidas de proteção ao monumento e abertura de um procedimento administrativo para analisar seu tombamento e proteção em um local provisório.

Sobre o caso

No dia 2 de maio de 2000, cerca de dois mil integrantes do MST se dirigiam à capital paranaense para participarem da Marcha pela Reforma Agrária, em comemoração ao Dia dos Trabalhadores e das Trabalhadoras.

Orientados pelo governo sob comando do governador Jaime Lerner, a Polícia Militar do Paraná, organizada em uma tropa de 1500 agentes, bloqueou a BR-277 e impediu –  a bala – a chegada da comitiva de 50 ônibus à Curitiba.

Na altura do quilômetro 108, sem antes mesmo de qualquer diálogo, os agentes públicos de segurança dispararam contra os trabalhadores assim estes que desceram dos ônibus.

Entre os cerca de 185 feridos, o agricultor Antônio Tavares tombou ao disparo letal do policial militar Joel de Lima Santa Ana. Tavares, à época, tinha 38 anos e era pai de cinco filhos. Somente em 2012, o Tribunal de Justiça do Paraná condenou o Estado do Paraná pelo assassinato do trabalhador.

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