Por Raphael Tsavvko Garcia.
Eram esperadas 50 mil pessoas para compor a corrente humana proposta pelo coletivo Gure Esku Dago (“Está em Nossas Mãos”, em basco ou euskera) que deveria ligar os 123 quilômetros que separam as cidades de Durango, próxima a Bilbao, e Pamplona, capital da região de Navarra (politicamente separada do País Basco, mas culturalmente parte deste).
O resultado foi melhor do que o esperado. Mais de 150 mil pessoas se juntaram à corrente humana e pontualmente ao meio-dia essa maré humana se deu as mãos por meia hora, um símbolo da unidade do povo basco e de sua luta pelo direito a decidir seu próprio futuro.
Participaram da corrente pessoas de todas as sensibilidades políticas, idades e classe social, além de imigrantes sensíveis à causa e pessoas vindas da diáspora, como uma família do oeste americano, região que recebeu grande contingente de imigrantes bascos durante a primeira metade do século 20, que veio especialmente para o evento e aproveitou para conhecer suas raízes.
O clima era de festa durante toda a manhã. A organização do evento contratou mais de 700 ônibus para poder levar as milhares de pessoas aos locais onde deveriam formar a corrente. Foram tantos os ônibus contratados que foi preciso buscar empresas da região vizinha da Cantábria e mesmo da França, pois não havia contingente suficiente no País Basco.
A logística do evento foi uma das maiores já vistas organizada por um coletivo social sem ligações com partidos políticos – ainda que tenha recebido subvenções governamentais a fim de organizar o ato.
De dezenas de cidades do País Basco espanhol e francês ônibus saíram lotados ou mesmo superlotados. Trens ficaram cheios e muitos foram ainda de carro até os pontos de encontro em cada um dos 123 quilômetros demarcados em um dia de sol forte, um dos primeiros da primavera que tem sido em geral fria até o momento. O clima era perfeito, em todos os sentidos, para a verdadeira confraternização que se seguiu.
Bandas musicais animavam quem estava presente à corrente humana e, em Durango e em diversas outras cidades, festas populares seguiram o ato, com danças típicas bascas, comida e bebidas.
Movimento irreversível
Para muitos, o ato do coletivo Gure Esku Dago coloca em definitivo a pauta da independência no cenário político basco e mostra sua força. De forma irreversível. Com o fim da luta armada do grupo separatista ETA e a normalidade política também voltando – com o fim das ilegalizações de partidos da esquerda nacionalista –, chega o momento de debater a grande questão que foi por anos escondida ou suprimida pela violência de ambos os lados.
Por décadas, o tema da independência foi sussurrado frente ao franquismo e, com a democratização, foi perseguido, ilegalizado e condenado sob a desculpa de combate ao terrorismo. Neste momento, inicia-se uma nova etapa, livre de amarras e de desculpas para a negação ao debate.
Os dois maiores partidos bascos, Euskal Herria Bildu e PNV, são nacionalistas e juntos controlam a maioria absoluta do parlamento e cada vez mais torna-se irreversível um processo decisório aos moldes do que vem sendo proposto na Catalunha. A Catalunha, aliás, que já organizou sua própria corrente humana, ligando o Norte e Sul do país no último dia 11 de setembro (em 2013), dia em que se comemora a Diada catalã, sua festa nacional, com mais de 1 milhão e 60 mil pessoas por 400 quilômetros.
Em novembro deste ano está marcada uma consulta ao povo catalão que os perguntará se querem ser independentes. A Espanha tenta barrar a consulta, mas os catalães se mostram decididos.
Ideia que deu certo
A ideia da corrente humana enquanto ponto intermediário de um profundo processo de reflexão e luta por independência, porém, não é nova. Em 1986, mais de 1 milhão de pessoas deram as mãos para formar uma corrente humana de mais de 600 quilômetros cruzando as três repúblicas bálticas (Letônia, Estônia e Lituânia) para chamar a atenção da opinião pública mundial da situação em que se encontravam sob domínio soviético. Era, então, uma forma de denunciar ao mundo sua situação e de exigir maior autonomia. Com o tempo, os três países conseguiram sua independência, o objetivo tanto da Catalunha quanto do País Basco. Aumenta a pressão sobre a Espanha, cujo delegado no País Basco, Carlos Urquijo, declarou antes do ato que nada mudaria na relação da região com a Espanha.
Após a maré humana vista no domingo fica a certeza de que alguns alarmes soaram em Madri. Bascos se unem a catalães na rota para a independência. O momento da Espanha é delicado, com a renúncia do rei e protestos pela república tomando o país, com a crescente descrença em relação aos dois principais partidos e o possível fim do bipartidarismo, pulverizando a representação política no congresso – algo a ser visto nas próximas eleições, o que dificultará a tomada de decisões políticas por parte do governo que hoje o PP domina com maioria absoluta.
Além, obviamente, da crise que ainda assola a Espanha, o que acaba reforçando sentimentos nacionalistas e acrescenta uma dificuldade ao governo espanhol no controle da crescente insatisfação de suas minorias.
Apenas o tempo dirá o verdadeiro efeito deste ato, mas a certeza é a de que estruturas foram abaladas e o sucesso do Gure Esku Dago criou uma rede de cidadãos com força para pressionar atores políticos diversos a ouvir a voz das ruas, a voz do povo.
Fonte: Sul 21.