Por Lu Sudré, Brasil de Fato.
As perversidades do modelo privado de saúde estadunidense estão ainda mais explícitas em meio à pandemia do coronavírus. É o que denuncia a ativista Nijmie Zakkiyyah Dzurinko, co-fundadora e coordenadora do grupo Put People First (Pessoas em primeiro lugar, tradução livre em português), organização que atua em defesa do direito à saúde da população estadunidense em diversos estados do país e principalmente na Pensilvânia.
De acordo com informações no Centro de Prevenção e Controle de Doenças (CDC, na sigla em inglês), até o momento, os Estados Unidos registraram 150 mortes causadas pelo coronavírus e 10.442 pessoas foram infectadas no país.
Segundo Nijmie Dzurinko, a pandemia atingiu em cheio a população estadunidense, que, em grande parte, não pode arcar com os altos custos de um sistema completamente privatizado e fragmentado.
“O que essa pandemia está fazendo é revelar o total desprezo e degradação de um sistema de saúde que não está atendendo nossas necessidades. Também está revelando a fraqueza da nossa economia, que não está fornecendo o que as pessoas precisam. A população está muito assustada agora e recebendo muita pouca ajuda”, relata a ativista.
Nijmie explica que a crise do frágil sistema de saúde estadunidense é anterior ao vírus, mas se aprofundou com a rápida transmissão da doença, que se tornou preocupação emergencial em todo o mundo.
Além da fragmentação do modelo, as altíssimas contas de hospitais e a ausência de uma rede de proteção pública, a grande maioria dos estadunidenses, segundo a integrante do Put People First, não está sendo ao menos testada para o covid-19.
“Não existem testes amplos, para todos. Eles são muito limitados e racionados. Estamos em uma situação em que, ao invés do Estado manejar os recursos para garantir que o vírus não se espalhe, acaba sendo uma decisão individual. Cada pessoa se isolando e se perguntando se está carregando o coronavírus ou se irá ficar doente. É uma situação aterrorizante, na qual ninguém deveria estar”, comenta.
A ativista critica a atuação do governo de Donald Trump e dos governos estaduais que, na sua avaliação, demoraram para assumir a real gravidade do problema. Para ela, não existe clareza política ou uma liderança real para enfrentar a crise.
Enquanto parcela considerável dos estadunidenses não conseguem pagar um plano de saúde para serem ao menos testados, Trump afirmou nesta quinta-feira (19), ter solicitado à entidade reguladora de medicamentos do país que acelere o processo de aprovação para potenciais terapias que tenham efeito contra a covid-19.
Njimie é enfática ao afirmar que apenas pessoas que realmente possuem dinheiro poderão se proteger das consequências da pandemia. “O sistema privado está, absolutamente, matando as pessoas. Não há a menor dúvida em relação a isso”, afirma.
Também integrante da Poor People’s Campaign: A National Call for Moral Revival, uma campanha estadunidense contra a pobreza, ela acrescenta que ficar de quarentena em casa, para muitos trabalhadores é uma decisão de vida ou morte, já que, sem trabalhar, a renda para o aluguel e alimentação é inexistente.
Confira a entrevista com Nijmie Zakkiyyah Dzurinko na íntegra
Brasil de Fato – Como funciona o sistema de saúde estadunidense?
Nijmie Zakkiyyah Dzurinko – Não funciona muito bem. A pandemia do coronavírus está mostrando como o sistema de saúde na Pensilvânia e nos Estados Unidos, não é um sistema abrangente, que atende às necessidades das pessoas. Coloca o lucro acima das vidas humanas. É um sistema muito complicado e fragmentado.
Existem muitas formas diferentes das pessoas terem acesso à saúde, mas depende se você tem um trabalho ou não. São muitas pessoas que tem o cuidado com a saúde negado por diferentes razões, incluindo conseguir arcar com os custos, onde moram, quanto de dinheiro possuem, se possuem ou não documentos. É um sistema muito fragmentado e que não tem atendido nossas necessidades.
E em relação aos programas Medicare e Medicaid? Eles são privados?
São dois programas com uma longa história por trás deles. O Medicare é para as pessoas mais velhas, acima de 65 anos. O Medicaid é para pessoas pobres, que não possuem nada, pessoas com renda baixa. E os dois começaram como programas de governo e foram privatizados.
O Medicaid está cada vez mais sendo administrado por empresas privadas. Apesar de ser pago com nossos impostos, esse dinheiro está sendo entregue às empresas privadas. E isso é o que também está acontecendo, de forma crescente, com o Medicare. São empresas privadas que estão o administrando e tirando muito lucro desses programas.
O que mudou com o chamado Obamacare, criado pelo ex-presidente Barack Obama?
O Obamacare também é privado. Na verdade, é baseado na indústria privada. De muitos jeitos, se olharmos para trás e avaliarmos, o que o Obamacare estava fazendo era um esforço para tentar sustentar e reforçar a indústria dos seguros, demandando que todos adquirissem os seguros [convênios médicos].
A coisa boa que o Obamacare fez foi expandir o Medicaid, o programa para pessoas pobres… Ele expandiu o número de pessoas aptas para ter o Medicaid, de acordo com a linha da pobreza.
Isso foi bom, mas eles colocaram como uma opção, então muitos estados não expandiram o programa mesmo com o governo federal oferecendo dinheiro para pagar por isso. E mesmo durante essa expansão, nem todos conseguiram ter o acesso.
A desvantagem do Obamacare é que, para todos que estavam no Medicaid, eles disseram que era preciso ter o seguro de saúde e forçou pessoas a adquiri-los, o que não poderia ser mais capitalista. Tiveram que ir a um site e comprar um plano de saúde agrupado de acordo com o que você consegue pagar.
Então existem os planos bronze, prata e ouro. Como você pode imaginar, o plano ouro é o melhor, o prata é o médio e o bronze é o pior, reforçando a ideia de que, para cuidar da saúde, é preciso procurar as empresas do plano de saúde, o que não é verdade.
Reforça a ideia de que você só consegue o que puder pagar e que todos têm que estar pagando os convênios, ao invés de ter um sistema público de saúde. O Obamacare reforçou a privatização e fomentou o sistema de saúde privado nos Estados Unidos.
Como os estadunidenses estão se sentindo em meio a essa pandemia?
Muitos estão apavorados. A resposta do governo foi muito atrasada, veio muito tarde. Alguns ainda não reconhecem a gravidade da questão, porque há muita desinformação e dúvidas sobre o que realmente está acontecendo e posicionamentos do governo.
Eu acho que ainda está caindo a ficha para muitas pessoas que isso é muito sério, que não é só uma gripe sazonal. Outros realmente entendem o que está acontecendo, especialmente os 140 milhões de pessoas pobres que temos nesse país, que é quase metade da população.
Realmente reconhecemos que vamos ser atingidos de maneira muito forte, não só pelo coronavírus, mas por conta da recessão que é resultado do fato de tantas pessoas estarem fora do trabalho agora. Resultado dos estabelecimentos fechando, já que a nossa economia depende, majoritariamente, do que é gasto com consumo.
O que essa pandemia está fazendo é revelar o total desprezo e degradação de um sistema de saúde que não está atendendo nossas necessidades. Também está revelando a fraqueza da nossa economia, que não está fornecendo o que as pessoas precisam. A população está muito assustada agora e recebendo muito pouca ajuda.
Quais são as principais dificuldades nesse exato momento?
As únicas pessoas que estão sendo tratadas agora, de verdade, são pessoas famosas, ricas, celebridades. Eles estão testando positivo porque estiveram em contato com pessoas que viajaram internacionalmente. Você pode ver nas notícias que todos esses atores e pessoas famosas que estão dizendo que testaram positivo para o coronavírus, são os que estão sendo testados e recebendo tratamento. O resto não está sendo testado e está sem tratamento.
Você citou a resposta tardia do governo. Como você acha que ele deveria estar agindo?
É claro que a resposta deve ser do Trump, mas também a dos dois partidos e dos políticos. Temos um governo democrata na Pensilvânia e não temos a resposta que deveríamos ter.
Precisamos de produção imediata de testes. Se tivéssemos o poder nas mãos da classe trabalhadora, poderíamos começar imediatamente a produzi-los porque todos deveriam ser testados.
No momento, temos uma situação na qual poucas pessoas estão sendo testadas porque não existem testes suficientes. A produção deveria ser acelerada para que de fato os testes sejam produzidos.
Também precisamos imediatamente de liberação para aqueles que não podem ir para o trabalho agora. Logo, em todo país, será pedido que as pessoas fiquem em casa. Precisamos, imediatamente, de uma renda universal básica para ajudar as pessoas durante essa crise. Eles estão dizendo que poderia durar até 1 ano ou 18 meses de isolamento.
Precisamos ter certeza que aqueles que possuem mais idade ou tem o sistema imune comprometido tenham acesso à comida e sejam abastecidos com o que precisam. Isso precisa ser organizado e certamente poderia ser mas, no momento, são as próprias pessoas que estão fazendo. Não é organizado pelo Estado.
Precisamos suspender pagamentos de aluguéis, de contas, de dívidas. Isso é muito importante agora. Algumas dessas coisas estão acontecendo em um nível local mas não nacionalmente e algumas propostas estão sendo feitas, mas são coisas que precisamos agora.
Podemos dizer, então, que esse modelo privado está aprofundando a proliferação do coronavírus?
Sim, absolutamente. Essa é a crise que temos antes do coronavírus e essa é a razão do porque as pessoas irão morrer… o sistema privado não tem interesse em atender as necessidades da população. É por isso que não temos testes generalizados e não temos as condições para que as pessoas recebam tratamento.
Também temos as pessoas que estão encarceradas em todo país, que não estão sendo soltas, mesmo que estejam em uma situação de extrema vulnerabilidade. Elas podem pegar o vírus se apenas uma pessoa contaminada entra em uma prisão ou cadeia.
O sistema privado está, absolutamente, matando as pessoas. Não há a menor dúvida em relação a isso.
E como está o clima cotidiano, nas ruas, entre a população?
Ainda estamos no começo disso tudo. Eu acho que cada vez mais as pessoas vão entender esse processo e não é culpa das pessoas. O governo não tem sido honesto e claro sobre o que está em jogo nessa pandemia. Eles tem diminuído a real importância da pandemia até agora por conta da economia.
As pessoas estão começando a perceber que o coronavírus tem o potencial de matar milhões no país nesse momento. Elas estão percebendo que não pode ser tratado como uma coisa normal e que temos que agir para mudar o que está acontecendo.
Em muitos lugares, em muitas cidades, as pessoas estão se abrigando, supermercados estão fechando, estão sendo estimulados a isso. E as pessoas não estão indo a bares e restaurantes e coisas do tipo.
Mas ainda não é assim em todos os lugares. Só existem alguns lugares onde isso de fato tem acontecido. De novo, não existe uma clareza política e uma liderança real vindo dos políticos sobre o que precisa acontecer. Porque vivemos em uma sociedade onde 140 milhões de pessoas não podem pagar uma conta emergencial de U$400.
Pensar em ficar em casa para trabalhar é literalmente uma decisão de vida e morte. Você não terá uma casa se não pagar o aluguel. Você não terá comida, se não trabalhar. É um problema muito sério. Uma contradição na qual estamos presos.
O que essa situação demonstra é que tudo é muito perigoso porque não temos nenhum tipo de rede de segurança. Não temos direito à alimentação, direito à moradia, direito à saúde. Não temos direito a nada. A única coisa que nos dá segurança é trabalhar e se não podemos fazer isso, será extremamente difícil para a população.
O clima está mais intenso e as pessoas estão percebendo o que isso [a pandemia] realmente significará. É difícil.
Essa não é a primeira pandemia que temos. Quais ações foram tomadas ou deveriam ter sido tomadas com o surto do H1N1 ou com a gripe aviária?
Tudo se resume a garantir que as pessoas possam receber o tratamento de forma universal. Ter certeza de que não há questionamentos, que a economia é mais importante que as pessoas. E é isso que está acontecendo agora. Essa afirmação de que os negócios serão prejudicados se as pessoas estiverem isoladas e em quarentena. Mas ninguém deveria ter medo de perder seu trabalho, sua renda, por conta desse vírus.
Eu não era tão velha [risos] ou tão ligada antes, e, de algum jeito isso [a pandemia do coronavírus] está me afetando muito mais. Estou mais atenta a essa situação atual, também acho que as outras pandemias tiveram implicações diferentes para os Estados Unidos do que essa. Eu acho que dessa vez terá um impacto muito, muito maior aqui.
A classe trabalhadora global está passando por tudo isso junto. E temos que pensar soluções juntos. Não é apenas sobre o país de alguém ou sobre um político. É sobre nossa habilidade enquanto classe para mudar o sistema mundial, para mudar o sistema e a economia que estão em voga agora.
Este ano, 2020, ocorrem eleições nos Estados Unidos. Qual o peso que o coronavírus e o tema do sistema de saúde estadunidense tem e terá nessa disputa?
Será um grande fator, eu imagino. Assim como a economia. Estamos indo para uma grande recessão e, ao mesmo tempo, já estamos vendo os sinais dela. Acontecerá antes do que o previsto por conta da pandemia.
Eu realmente acho que a pandemia e a recessão terão um grande impacto na eleição. Mas há uma outra coisa: talvez não seja nem seguro sairmos para votar. Penso que teremos que pensar e estar atentos como de fato vamos nos engajar na próxima eleição.
Vamos ter que manter o olho aberto em relação a isso e garantir que não haja uma supressão ainda maior na votação do que já existe. Eu penso que se na eleição ainda estivermos no meio dessa pandemia, precisaremos estar muito atentos.
Acredita que algum dia será possível criar esse sistema público de saúde nos Estados Unidos?
Não tem nenhuma razão pela qual não podemos ter além da classe dominante não querer abrir mão do dinheiro, que vem do lucro gerado pelas nossas doenças e nossas mortes.
Sabemos que só poderemos fazer isso com uma honesta e real revolução nesse país e isso é construído de baixo. É construído por meio dos esforços de grupos como o Put People First e Poor People’s Campaign – A National Call for Moral Revival, que é ativo em 40 países, nos Estados Unidos e muitos outros grupos que estão construindo um movimento e estamos indo em direção a tempos intensos onde penso que muito será possível mas também será muito difícil.
Estamos indo para um tempo extremamente difícil aqui nos Estados Unidos. E nos abrirá possibilidade enquanto nos mantivermos organizados, mesmo durante uma crise na qual não podemos sair e mobilizar como normalmente faríamos.
É muito possível [ter um sistema público de saúde]. Mas será uma grande luta e um grande sofrimento.
Edição: Leandro Melito