#FiqueEmCasa
Por Jonattan Rodriguez Castelli, para Desacato.info.
A crise de saúde provocada pela pandemia do coronavírus ao redor do mundo tem evidenciado os limites da mão invisível do mercado para garantir a manutenção de vidas. Diante da catástrofe, a entidade mercado e seus mais ignóbeis arautos, como o velho da Havan e o dono da hamburgueria Madero, têm clamado pelo auxílio do Estado [1]. Não para salvar vidas, mas os lucros das empresas. Revelando aí, de maneira singela, a lógica do neoliberalismo (e do capitalismo): entre o lucro e as pessoas, escolhe-se a primeira opção. O que se esquece é que não existe lucro sem pessoas, sem trabalhadores. Optar por romper com a medida de quarentena, como pedido pelas carreatas ocorridas no dia 27 de março [2], a fim de retomar a economia ataca o maior gerador de valor na sociedade: as pessoas.
Uma lição que se aprendeu ainda na crise de 1929 e nos escritos de John Maynard Keynes (e que sempre vale a pena relembrar) é de que o nível da demanda agregada (o lado da procura) serve de principal estímulo para a realização de novos investimentos por parte dos empresários (o lado da oferta). A decisão do empresário de investir está estritamente ligada à sua expectativa da realização da sua mercadoria, isto é, de que seu produto encontre quem o consuma.
Nesse sentido, o cenário da economia brasileira é desalentador, à medida que essa se encontra estagnada desde 2014 e as políticas de austeridade fiscal, adotadas a partir de 2015 e aprofundadas nos últimos anos, não conseguiram retomar a trajetória de crescimento. Mais do que isso, ampliaram a desigualdade social no país [3] [4], o que reduz o mercado consumidor e deprime a demanda agregada.
Um resultado dessa estagnação pode ser observado no relatório da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-C) divulgada no início deste ano pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Apresentando indicadores referentes ao 4º trimestre de 2020 e ao acumulado do ano [5], o relatório indica que apesar de a taxa de desocupação no Brasil ter caído de 12,3% em dezembro de 2018 para 11,9% em dezembro de 2019, a taxa média nacional de informalidade atingiu o seu maior nível desde 2016, 41,1%. Esse resultado é preocupante, pois a população que mais sofrerá os impactos da pandemia e do isolamento social são exatamente os trabalhadores informais, uma parcela considerável da população brasileira (principalmente de baixa renda).
Conforme estudo publicado por economistas do Centro de Estudos de Desenvolvimento e Planejamento Regional da UFMG (CEDEPLAR/UFMG) [6], projeta-se que a chegada do Coronavírus provoque um baixo crescimento econômico do PIB (o último relatório Focus, elaborado pelo Banco Central a partir das expectativas do mercado financeiro sobre alguns indicadores macroeconômicos, aponta para uma taxa de crescimento -1,18% para este ano [7]) e um aumento do desemprego.
A partir disso, o referido estudo busca inferir quais seriam os efeitos da ampliação do desemprego e de uma desaceleração da taxa de crescimento do PIB na renda disponível nas diferentes classes, a partir de faixas de renda. O resultado encontrado é de que as classes que seriam mais prejudicadas seriam aquelas com rendimentos até 3 salários mínimos. De fato, o estudo observa que “(…) famílias mais pobres […] tem efeito negativo 20% maior que a média. Famílias de classes média e alta tendem a perder menos e próximo à média”. Dessa maneira, os efeitos econômicos da pandemia do Coronavírus serão mais profundas para a população mais pobre.
Contudo, deve-se ressaltar que, embora o isolamento social seja prejudicial para a renda da população mais pobre, não cabe romper com essa medida. O discurso fácil adotado pelo presidente de que acabar com o isolamento social [9] neste momento seria benéfico para a classe trabalhadora é falacioso.
Em março deste ano foi publicado pelo National Bureau of Economics Research (NBER) [8] um estudo que investiga a interação entre as decisões econômicas e as para enfrentar epidemias. O resultado encontrado é de que a decisão das pessoas em cortar seu consumo e trabalho reduz a severidade das epidemias, refletindo-se em um número menor de mortes. Mais do que isso, o resultado desse tipo de decisão supera o tamanho de uma recessão causadas pela epidemia. Ou seja, optar pelas pessoas, ao invés do lucro, é uma saída melhor, inclusive para a economia.
Diante disso, pode-se perguntar o que fazer? De que maneira o estado pode atuar, a fim de romper com a lógica neoliberal e escolher pelas pessoas? O que este breve texto defende, é a suspensão das políticas de austeridade fiscal implementadas no país a partir de 2015 e aprofundadas nos últimos 5 anos. Principalmente, aquela medida que mais nos sufoca: a EC/95, o teto dos gastos. Embora o governo já venha implementando e aprovado medidas para combater os efeitos da epidemia do Coronavírus (sendo a “Renda Básica Emergencial” a principal delas), o que esse cenário adverso mostrou foi que esse tipo de ação não pode ser meramente emergencial.
Impera a necessidade de se estabelecer meios que fortaleçam nossa saúde pública e pesquisa científica, únicos caminhos possíveis tanto para enfrentar quanto prevenir esse tipo de cenário de calamidade. Por essa razão, suspender o teto dos gastos é fundamental.
O teto dos gastos congela as despesas primárias (onde estão os investimentos em educação, ciência e o SUS) do Governo Federal, em seus valores reais de 2016, por até 20 anos. Inicialmente, essa emenda previa o respeito ao piso constitucional dessas áreas (18% das receitas correntes líquidas do Governo Federal para educação e 15% para saúde). Porém, a partir de 2018 os pisos constitucionais se desvincularam das receitas da união e passou a ser um valor de referência, no caso, o montante de 2017 corrigido pela inflação.
Segundo Esther Dweck [10], o valor mínimo gasto em saúde em 2019, que deveria ser de R$ 131,3 bilhões, foi de somente R$ 117,3 (sendo de fato gastos R$ 122,3 bilhões, uma queda de R$ 9 bilhões).
Já o caso da pesquisa científica é ainda mais grave. Os gastos destinados a essa área (como bolsas de estudo, gerenciamento de políticas de educação, capacitação de servidores públicos, funcionamento de instituições de educação profissional e tecnológica etc.) são discricionários, ou seja, são despesas não estabelecidas rigidamente pela CF/88 e sobre as quais o governo tem algum poder decisório. Esses gastos não cabem no orçamento público desde 2017 [12].
De acordo com estudo técnico n.22/2016 [11], publicado pela Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados (CONOF), estava previsto pela Lei Orçamentária Anual de 2017 um gasto de R$51,6 bilhões em Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE). Sendo destinado desse montante R$ 1,63 bilhão às despesas discricionárias, enquanto elas precisavam de um orçamento de R$ 24,7 bilhões para serem financiadas. Ou seja, já em 2017 não havia recursos para pesquisa científica em razão da regra do teto dos gastos.
A situação se agrava mais, à medida que o principal financiador de pesquisa científica no país, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), tem seu orçamento reduzindo ano após ano – por exemplo, a redução do orçamento de 2020 em relação ao executado em 2019 é de 32,8%.
De acordo com Dweck, a área de Ciência e Tecnologia apresentou uma queda real de 38% do volume efetivamente executado de 2016 para 2019, complementado por um corte de 31% na educação nesse mesmo período. Deste modo, melhorias tanto na ciência quanto na saúde são inviabilizadas pelo teto dos gastos.
Logo, suspender as medidas de austeridade fiscal nesse momento possibilitaria não só eliminar barreiras fiscais para combater a epidemia com maior efetividade, como criaria espaço para se implementar políticas de estímulo econômico, através de expansão de gastos públicos, para se realizar a retomada de investimentos que propiciarão o crescimento no próximo período. Assim como para ampliar os investimentos nessas duas áreas mais essenciais do que nunca: saúde e ciência.
* Agradeço os comentários e sugestões de Cristina Pereira Vieceli e Julia Giles Wunsch, eximindo-as de qualquer erro ou omissão que este texto porventura apresentar.
Referências utilizadas:
[3] https://ufmg.br/comunicacao/publicacoes/boletim/edicao/2075/austeridade-e-desigualdade
[5] https://static.poder360.com.br/2020/02/pnad-continua-4t2019.pdf
[7] https://www.bcb.gov.br/content/focus/focus/R20200403.pdf
[8] https://www.nber.org/papers/w26882
Jonattan Rodriguez Castelli é doutor em economia e professor efetivo de departamento de ciências econômicas da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS).
A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.
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